Marilena Chauí, em entrevista para a CULT, Jun/2000, p.51.
Espaço aberto para discutir Filosofia e Sociologia Nota: o conteúdo desta página, em forma de textos e fragmentos de texto, verbetes, etc. serve como esboço para estudo aos alunos do Ensino Médio, nas disciplinas de Filosofia e Sociologia do Bom Jesus/IELUSC (www.ielusc.br). Este material é incompleto e não conclusivo; apenas tem a função de instigar a discussão e debate em sala de aula, bem como a reflexão. Alfons Gossen
terça-feira, 10 de fevereiro de 2015
Ética e o Agente Moral
... A ética contém a divisão social das classes. E que por isso existe a moral "deles" e a "nossa". Bom, quanto à questão da moral de esquerda e da ´tica de esquerda, vamos começar justamente por essa universalidade abstrata. No nível de uma universalidade abstrata, nós dizemos que só existe ética se algumas condições forem realizadas. A primeira condição é a existência de um agente que se reconheça como sujeito da sua ação e, portanto - segunda condição -, ele só pode se reconhecer como sujeito da sua ação se ele for livre para realizá-la. Terceira condição: ele só será livre para realizá-la se ele tiver consciência da ação que realiza. Portanto, se ele puder determinar a sua própria ação. E, portanto - quarta condição -, se for capaz de responder por ela. Então, genericamente, abstratamente, universalmente, a ética pressupõe a existência de um sujeito racional, consciente, livre, responsável, que é capaz de se autodeterminar para a ação.
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Marilena Chauí
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015
Percepção
(...)
O real deve ser descrito, não construído ou constituído. Isso quer dizer
que não posso assimilar a percepção às sínteses que são da ordem do juízo, dos
atos ou da predicação. A cada momento, meu campo perceptivo é preenchido de
reflexos, de estalidos, de impressões táteis fugazes que não posso ligar de
maneira precisa ao contexto percebido e que, todavia, eu situo imediatamente no
mundo, sem confundi-los nunca com minhas divagações. A cada instante também eu
fantasio acerca de coisas, imagino objetos ou pessoas cuja presença aqui não é
incompatível com o contexto, e todavia eles não se misturam ao mundo, eles
estão adiante do mundo, no teatro do imaginário. Se a realidade de minha
percepção só estivesse fundada na coerência intrínseca das “representações”,
ela deveria ser sempre hesitante e, abandonado às minhas conjecturas prováveis,
eu deveria a cada momento desfazer sínteses ilusórias e reintegrar ao real
fenômenos aberrantes que primeiramente eu teria excluído dele. Não é nada
disso. O real é um tecido sólido, ele não espera nossos juízos para anexar a
si os fenômenos mais aberrantes, nem para rejeitar nossas imaginações mais
verossímeis. A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato,
uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se
destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual possuo
comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus
pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não “habita”
apenas o “homem interior”, ou, antes, não existe homem interior, o homem
está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a partir
do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, encontro não um foco
de verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo.
(...)
Merlau-Ponty, Maurice. Fenomenologia
da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p.5-6.
Ciência e Filosofia
(...)
Jaspers
fixa os limites do saber científico. Esses limites podem ser brevemente
caracterizados do seguinte modo:
a) O conhecimento científico
das coisas não é conhecimento do ser
O conhecimento científico se
refere a objetos determinados: ele “não saber o que é o próprio ser”.
b) “O conhecimento científico
não está em condições de dar nenhuma orientação para a vida. Ele não estabelece
valores válidos. A ciência não pode guiar a vida; por sua clareza e decisão,
ela remete a outro fundamento da nossa vida”.
c) “A ciência não pode dar
nenhuma resposta à pergunta relativa ao seu verdadeiro sentido: o fato de que a
ciência existe baseia-se em impulsos que não podem ser, sequer eles,
demonstrados cientificamente como verdadeiros e como devendo existir”.
Nenhum
ser conhecido é o ser
(...)
Além
do intelecto (isto é, a ciência),
existe a razão. E é exatamente à
razão que Jaspers confia aquela iluminação-da-existência
em que consiste a filosofia. Escreve Jaspers: “Existe um pensar no qual não
é conhecido nada que tenha validade universal e force a sentimento, mas que
pode revelar conteúdos que servem de sustentação e norma para a vida. Esse
pensar penetra e abre caminho, iluminando e não mais conhecendo... Nesse caso,
o pensamento não me propicia conhecimentos de coisas até então estranhas para
mim, mas me torna claro o que eu verdadeiramente entendo, o que eu creio. Nesse
caso, o pensamento cria e determina para mim o fundo claro de minha
auto-consciência”.
(...)
A
exatidão pura e simples não nos
satisfaz. A verdade é algo infinitamente mais do que a exatidão científica. O
homem pode ser estudado (através da biologia, psicologia, etc.) como um objeto
do mundo. Mas nesse estudo, diz Jaspers, deixa e sempre deixará fora de si a existência. Em sua concretude,
singularidade e irreptível excepcionalidade, a existência não pode ser objeto
ou exemplar indiferente ou substituível de teorias ou discursos universais. A
existência é sempre a minha existência,
singular, inconfundível. Tanto para um como para o outro, “compreender a si
mesmo (...) é o caminho para a verdade”.
(...)
O
homem é dado, não é um dado de fato: ele pode
ser. Mas o que pode ser o homem? Sua escolha, afirma Jaspers, está no
reconhecimento e na aceitação daquela possibilidade – na única possibilidade - que é
a situação em que o homem se encontra: “o meu eu é idêntico ao lugar da realidade em que me encontro”.
A minha situação se identifica comigo mesmo, pois não posso ser senão o que sou
e não posso me tornar senão o que sou: “eu estou em situação histórica se me
identifico com uma realidade e com a sua tarefa imensa (...). Eu posso
pertencer somente a um único povo, posso ter apenas estes genitores e não
outros, posso amar somente a uma única mulher”. Claro, eu posso trair. As se eu
traio, estou traindo a mim mesmo, já que eu sou a minha situação e essa é a
realidade intranscindível. Eu só posso me tornar o que eu sou. E a única
escolha autêntica está na consciência e na aceitação da situação em que se
está. A liberdade não é o instrumento das alternativas, (...).
Reale, Giovanni & Antiseri,
Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulinas, 1991, vol. III.
A Teologia Racional e as provas tradicionais da existência de Deus
A terceira Idéia da razão é Deus (a Idéia de um
incondicionado supremo, de um absolutamente incondicionado e condição de todas
as coisas). Neste caso, diz Kant, mais do que de uma Idéia, trata-se de um
"Ideal", aliás, o Ideal por excelência da razão. Mas, escreve Kant,
"ele é também o único ideal verdadeiro de que a razão humana é capaz, já
que somente nele é conhecido um conceito em si mesmo universal de uma coisa,
completamente determinado por si mesmo e como representação de um
indivíduo". Deus é "ideal" porque é modelo de todas as coisas,
que, na qualidade de cópias, ficam infinitamente distantes dele, como aquilo
que é derivado fica longe daquilo que é originário: Deus é o ser do qual dependem
todos os seres, é a perfeição absoluta.
Mas essa Idéia ou Ideal que formamos com a razão nos
deixa "na total ignorância sobre a existência de um ser de tão excepcional
proeminência". Daí as "provas" ou "caminhos" para
provar a existência de Deus que a metafísica elaborou desde a Antigüidade.
Segundo Kant, esses caminhos são apenas três.
l) A prova ontológica a priori, que parte do puro
conceito de Deus como absoluta perfeição para deduzir a sua existência. Essa é
a célebre prova formulada pela primeira vez por santo Anselmo e retomada nos
tempos modernos por Descartes e Leibniz.
2) A prova cosmológica, que parte da experiência e
infere Deus como causa. Kant a resume assim: "Se existe algo, deve existir
um Ser absolutamente necessário. Ora, eu mesmo, pelo menos, existo; portanto,
existe um Ser absolutamente necessário. A menor contém uma experiência, a maior
contém uma ilação de uma experiência em geral à existência do necessário.
Portanto, a prova parte propriamente da experiência; assim, não é conduzida
inteiramente a priori ou ontologicamente; e, como o objeto de toda experiência
possível é o mundo, então essa prova é chamada de cosmológica."
3) A terceira prova é a físico-teológica (mas seria
melhor chama-la físico-teleológica), que, partindo da variedade, da ordem, da
finalidade e da beleza do mundo, remonta a Deus, considerado como Ser último e
supremo, acima de toda possível perfeição e considerado como causa.
l) Ora, Kant observa que o argumento ontológico cai
no erro (na ilusão transcendental) de trocar o predicado lógico pelo real. O
conceito de ente perfeitíssimo não só é alcançado pela razão, mas é necessário
à razão. Entretanto, não se pode extrair a existência real de tal conceito ou
Idéia, porque a proposição que afirma a existência de uma coisa não é
analítica, mas sintética. A existência de uma coisa não é um conceito que se
acrescenta ao conceito daquela coisa, mas sim a posição real da coisa. Ora, a
existência dos objetos que pertencem à esfera do sensível nos é dada pela
experiência, "mas, no caso dos objetos do pensamento puro, não há
absolutamente meio de conhecer a sua existência, já que eles deveriam ser
conhecidos inteiramente a priori"; mas, para tanto, deveríamos ter uma
"intuição intelectual", que não temos.
2) Na prova cosmológica, Kant encontra verdadeiro
viveiro de erros (erros transcendentais, isto é, erros em que se incorre
necessariamente, quando se toma esse caminho). Destaquemos os dois principais.
Em primeiro lugar, o princípio que leva a inferir do contingente uma sua causa
"Só tem significado no mundo sensível, mas fora dele não tem nenhum
sentido", porque o princípio de causa-efeito em que se baseia a
experiência só pode dar lugar a uma proposição sintética no âmbito da
experiência (a inferência de uma coisa não contingente representa portanto uma
aplicação da categoria fora do seu correto âmbito). Mas, sobretudo, Kant
destaca que a prova cosmológica, no fim das contas, repropõe o argumento
ontológico camuflado: com efeito, uma vez que se chega ao Ser necessário como
condição do contingente, fica por provar precisa- mente aquilo de que se
tratava, ou seja, a sua existência real, que, como sabemos, não pode ser
extraída analiticamente, porque a existência é uma posição e o juízo de
existência (como dissemos) é sintético a priori, o que significa que, para
captar a existência de Deus, devemos intuí-la intelectualmente.
3) Raciocínio
análogo vale também contra a prova físico-teleológica (pela qual, aliás, Kant
nutre grande simpatia). Diz Kant que ela "poderia quando muito demonstrar
um arquiteto do mundo, que seria sempre muito limitado pela capacidade da
matéria por ele elaborada, mas não um criador do mundo, a cuja idéia tudo se
submete". Para demonstrá-lo, a prova físico-teleológica "pula para a
prova cosmológica", que, como se disse, por seu turno, "nada mais é
do que uma prova ontológica mascarada".
REALE,
Giovanni & ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Do Iluminismo a Kant.
São Paulo: Paulinas, 1990, p. 903-4.
Ética de Apel
(...)
O A Priori da Comunidade de Comunicação e os Fundamentos
da Ética: O Problema de uma Fundamentação Racional da Ética na Era da Ciência
A PARADOXALIDADE DA SITUAÇÃO-PROBLEMA
Quem reflete
sobre a relação entre ciência e ética na moderna sociedade industrial
planetária se defronta, a meu ver, com uma situação paradoxal. Pois, de um
lado, a carência de uma ética universal, isto é, vinculadora para toda a
sociedade humana, nunca foi tão premente como em nossa era, que se constitui
numa civilização unitária, em função das conseqüências tecnológicas promovidas
pela ciência. De outro lado, a tarefa filosófica de uma fundamentação racional
de uma ética universal jamais parece ter sido tão complexa, e mesmo sem
perspectiva, do que na idade da ciência. Isso porque a idéia da validez
intersubjetiva é, nesta era, igualmente prejudicada pela ciência: a saber, pela
idéia cientificista da “objetividade” normalmente neutra ou isenta de
valoração.
Contemplemos
primeiramente um lado desta situação paradoxal: a carência atual de uma ética
universal (preferiria dizer: de uma macro-ética da humanidade nessa terra
limitada). As conseqüências tecnológicas da ciência produziram, nos dias de
hoje, uma tal extensão e alcance para as ações e omissões humanas, a ponto de
não ser mais possível contentar-se com normas morais, que regulamentem a
convivência humana em pequenos grupos e confiem as relações entre os grupos à
luta pela sobrevivência, no sentido darwiniano. Se a hipótese dos etólogos for
correta, de que já o canibalismo entre os homens pré-históricos deva ser
entendido como conseqüência do machado de punho, isto é, como decorrência da
perturbação (constitutiva para o homo
faber) do equilíbrio entre os órgãos de agressão disponíveis e os instintos
repressivos analogamente morais, então esta desproporção se ampliou
desmedidamente pelo desenvolvimento moderno
dos sistemas armamentistas. A isso, porém, acresce, na atualidade, que as
morais de grupos, geralmente enraizadas em instituições e tradições arcaicas,
já não conseguem mais compensar aquela perturbação de equilíbrio constitutiva
para o homo faber. Pois não há,
certamente, exemplo mais típico para o “descompasso” de setores culturais da
humanidade, do que a desproporção entre a expansão de possibilidades técnico-científicas
e a tendência conservadora de morais específicas de grupos.
Se, em vista das
conseqüências, hoje possíveis, de ações humanas, distinguirmos entre uma
microesfera (família, matrimônio, vizinhança), uma mesoesfera (patamar da
política nacional) e uma macroesfera (destino da humanidade), então será
facilmente demonstrável que as normas morais, atualmente eficazes entre todos
os povos, ainda estão sempre predominantemente concentradas na esfera íntima
(sobretudo na regulamentação das relações sexuais); já na mesoesfera da
política nacional elas estão, em larga escala, reduzidas ao impulso arcaico do
egoísmo grupal e da identificação grupal, enquanto as decisões propriamente
políticas valem como “razão de estado” moralmente neutra. Mas, quando é atingida
a macroesfera dos interesses humanos vitais, o cuidado por elas ainda parece
estar confiado, primariamente, a relativamente poucos iniciados. A esta
situação no setor da moral conservadora, no entanto, se contrapõe recentemente
uma situação de natureza totalmente diversa, na esfera dos efeitos de ações
humanas, sobretudo de seus riscos: como resultantes da expansão planetária e
envolvimento internacional da civilização técnico-científica, os efeitos das
ações humanas - por exemplo no âmbito da produção industrial - devem ser
localizados atualmente, em larga escala, na macroesfera dos interesses vitais
comuns da humanidade. A dimensão, eticamente relevante, deste fenômeno se torna
ainda mais nítida se tomarmos em consideração o risco procedural, ou seja, a
ameaça que paira sobre a vida humana. Se até pouco tempo atrás a guerra podia
ser interpretada como instrumento de seleção biológica e, entre outros
aspectos, de expansão espacial da espécie humana, através do confinamento dos
eventualmente mais fracos em regiões desabitadas, esta concepção está hoje
definitivamente superada pela invenção da bomba atômica: desde então o risco
destruidor das ações bélicas não se restringe mais à micro ou mesoesfera de
possíveis conseqüências, mas ameaça a existência da humanidade no seu todo. O
mesmo se dá hoje em dia com os efeitos principais e colaterais da técnica
industrial. Isso se tornou gritantemente claro nos últimos anos com a
descoberta da progressiva poluição ambiental. Esta problemática ecológica dos
efeitos colaterais da civilização técnica, entre outros aspectos, levantou a
questão, se a opinião corrente do crescimento econômico-tecnológico não deva
ser radicalmente revidada, caso a salvação da ecosfera humana ainda deva ser
exitosa.
Essas poucas
indicações devem ser suficientes para deixar claro que os resultados da ciência
representam um desafio moral para a humanidade. A civilização
técnico-científica confrontou todos os povos, raças e culturas, sem
consideração de suas tradições morais grupalmente específicas e culturalmente
relativas, com uma problemática ética comum a todos. Pela primeira vez, na
história da espécie humana, os homens foram praticamente colocados ante a tarefa de assumir a responsabilidade
solidária pelos efeitos de suas ações em medida planetária. Deveríamos ser de
opinião que, a essa compulsão por uma responsabilidade solidária, deveria
corresponder a validez intersubjetiva das normas, ou pelo menos do princípio
básico de uma ética da responsabilidade. - Baste isso para o primeiro aspecto
da situação-problema, como ela nos é proposta pelo tema: “Ética na era da
ciência”.
O segundo
aspecto da situação-problema, que, como já mencionamos, o transforma em um
paradoxo, se impõe ao filósofo profissional, quando ele toma um consideração a
situação teorética - ou melhor: metateorética - do problema da relação entre
ciência e ética. Pois esta se caracteriza pela convicção, muito difundida
precisamente entre pensadores não temerosos e honrados, que a possibilidade da
validez intersubjetiva de argumentos em geral vai exatamente tão longe como a
possibilidade de se obter objetividade científica no âmbito das ciências
formais lógico-matemáticas ou no âmbito das ciências reais empírico-analíticas.
Ora, como jamais podem ser deduzidas normas ou juízos de valor, seja a partir
do formalismo de conclusões lógico-matemáticas, seja a partir de conclusões
induzidas de fatos, então a idéia da objetividade científica parece direcionar
a pretensão da validade de normas morais ou juízos de valor para o âmbito da subjetividade
descompromissada. As pretensões de validade da ética, implícita ou
explicitamente defendidas em contextos cosmovidivo-ideológicos, devem - assim
parece, ser reduzidas a reações irracionais. Racionalmente fundamentáveis, são,
conseqüentemente, não as normas éticas como tais, mas apenas as descrições
isentas de valoração das normas de moral cumpridas de fato e, respectivamente,
as explicações causais ou estatísticas do surgimento de normas morais ou
sistemas de valor, pelas assim ditas ciências sociais empíricas.
Estas ciências,
por sua vez, às quais ainda se acrescentam, neste contexto, a História e a
Antropologia Cultural, bem como a Sociologia e a Psicologia, parecem propor
ainda, de sua parte, um argumento empírico adicional para a subjetividade e
irracionalidade das normas de moral e dos valores, já postulada
cientificamente. É que elas chegam - como se ouve com freqüência - ao juízo de
fato, objetivamente válido, de que as normas de moral, aceitas ou praticamente
seguidas por seres humanos, são, em alta escala, relativamente culturais ou,
respectivamente, epocais, e isso quer dizer novamente: subjetivas.
Por isso parece
ser plenamente conseqüente, se a filosofia profissional, que se entende
científica, ultimamente abriu mão mesmo do negócio da ética, no sentido de
fundamentação imediata de normas éticas, e, respectivamente, de um princípio
último de normas éticas. Da ética tradicional ou filosofia prática resultou,
neste contexto, a “metaética” analítica, que em geral se entende a si própria como
descrição científico-teórica, não valorativa, do uso da linguagem ou das regras
lógicas do assim chamado “discurso moral”. Toda filosofia que não se conforma
com essa transformação, isto é, toda filosofia que procura superar a “tese da
neutralidade” da metaética analítica em favor de uma fundamentação de normas
morais, parece deduzir normas de fatos e, com isso, faltar contra o princípio
humesiano da distinção entre o que é e o que deve ser. Dessa forma, toda ética normativa parece estar superada.
Suas bases, bem como as do “direito natural”, são desmascaradas pela filosofia
“científica” como dogmáticas e, respectivamente, ideológicas, e sua pretensão
de validade é estigmatizada, conforme o caso, como lastimável ilusão ou como
repressão autoritária e ameaça para a liberdade humana (neste último aspecto é,
em todo caso, interessante o engajamento quase-moral da filosofia “científica”,
que pode tornar-se uma crítica ideológica em nome do liberalismo. Voltaremos a
esse aspecto). Baste isso - por enquanto - sobre o segundo aspecto da paradoxal
situação-problema, com a qual nos defronta a pergunta pela relação entre ética
e ciência. Uma ética universal, isto é, intersubjetivamente válida, de
responsabilidade solidária, parece, de acordo com isso, ser ao mesmo tempo
necessária e impossível.
(...)
APEL, Karl-Otto. Estudos
de Moral Moderna. Petrópolis: Vozes, 1996.
Caim
Quaisquer
que sejam as interpretações históricas da Bíblia (Gênesis, 4, 1:24), em
nada são elas afetadas pelas significações simbólicas que o tema implica.
Noutras palavras, o fato de que também se vejam símbolos no drama que é
descrito nesse capítulo bíblico não exclui, em princípio, a existência do
acontecimento; significa apenas dar-lhe uma dimensão que ultrapassa sua
contingência. E mesmo que o acontecimento não se tenha produzido exatamente
como a Bíblia o apresenta, seu simbolismo permanece. Luc Estang discerniu de
maneira notável os valores em Le jour de
Caïn (Paris, 1967).
De
acordo com o próprio Gênesis, Caim é o primeiro homem nascido do homem e da
mulher; é o primeiro lavrador; o primeiro sacrificador cuja oferenda não é bem
recebida por Deus; o primeiro assassino; o revelador da morte; jamais se havia
visto, antes de seu fratricídio, o rosto de um homem morto. Caim é o primeiro errante à procura de uma terra fértil e
o primeiro construtor de cidade. Ele é também o homem marcado por Deus, “a fim de que não fosse morto por quem o
encontrasse”. E é o primeiro homem a retirar-se da presença de Jeová e partir, numa infinda caminhada, em direção
ao sol levante.
A
aventura é de uma grandeza inigualável: é a aventura do homem entregue a si
mesmo, assumindo todos os riscos da existência e todas as conseqüências de seus
atos. Caim é o símbolo da responsabilidade
humana.
Seu
nome significa posse; sua mãe
chamou-o de Caim porque ele foi sua primeira aquisição de um homem, o primeiro
nascimento humano. Mas a posse com a qual ele próprio sonhou foi a posse da
terra e, a fim de possuir o resto. Tu me
tiveste segundo o desejo e com a assistência de Deus, diz ele à sua mãe. Muito cedo compreendi que ele em nada me
ajudaria, e que eu não poder contar senão com minha própria vontade. Sabei,
todos vós, que eu tive de conquistar por mim mesmo tudo o que vós me atribuís:
o ardor e a rudeza, a força e a obstinação (Luc Estang, 88).
Ele
deseja acrescentar à terra de Deus o fruto do trabalho do homem, a fim de ser
verdadeiramente o senhor de seus atos:
Sonhei em reconciliar a terra com Deus
(84). Deseja construir uma cidade que será uma manifestação ainda melhor dos
feitos humanos do que a terra cultivada. Eu
via a cidade como uma outra lavoura, como uma outra semeadura, como uma nova
messe. Que estou a dizer! Era como um despertar da terra para fora de si mesma,
era, na verdade, sua elevação vertical à imagem do homem, pelo homem, que assim
estabelecia sua própria soberania... Suas muralhas teriam circunscrito o espaço
onde eu nada esperava dele (de Deus) (112-113). A cidade, prolegômeno de todo
futuro ateísmo.
Mas
o Deus não aceitava de bom grado os sacrifícios do lavrador e desse sonhador de
cidades. Por quê? Caim não podia aceitar ser
o mal-amado de Deus. Estava pronto para qualquer renúncia, se ele, de início, não tivesse aceitado. Por
pouco amável que eu fosse, era dessa maneira que me importava ser amado.
Depois, não me teria custado nada satisfazê-lo. Rejeitado, porém, endureci-me
na provocação, quando um único olhar dele me tria enternecido (41).
Além
do mais, Deus não recompensava seu encarniçado trabalho. Que me compreendam bem, diz Caim, o que eu deplorava não era o fato de
que Abel tivesse tantas vantagens, mas som que eu não tivesse nenhuma... O Deus
permaneceu insensível ao meu sacrifício, surdo à minha queixa (82-92).
Então Caim se revoltou, não só por ele, mas
pro todos nós. Por todos aqueles que não aceitam esse mistério de predestinação, que divide os homens em rejeitados e
eleitos, todos aqueles que não compreendem o desprezo de Deus pelas grandezas terrenas e sua predileção pelos
humildes. É contra essa ordem de
Deus que ele se revolta quando abre com uma pedra afiada a garganta de Abel, o favorito do céu. Mas é possível que o
segredo dessa atitude de Deus para com ele se explique pelo fato de que a
oferenda de Caim não era total, pois ele atribuía a si próprio parte de seu
trabalho, sem reconhecer que até mesmo essa parte ele devia a Deus. E assim,
com ciúme do irmão, orgulhoso de seu trabalho e revoltado contra Deus, Caim
matou, afirmou o valor próprio de seu esforço, renunciou a Deus.
Daí
por diante, é condenado à condição de errante, de quem parte em busca de um
futuro a ser indefinidamente construído: Partiremos
para o deserto dos homens, e que os homens, inumeravelmente, povoarão. Nós nos guiaremos
pela aurora sempre renovada... E será por não nos determos em parte alguma que
estaremos sempre em toda parte. Nossa vida errante nos permitirá medir a terra
e, ao mesmo tempo, nós a edificaremos (125). Caim parte, em busca do devenir do homem fora da presença de Jeová
(126).
Entretanto,
foi-lhe preciso matar o irmão – um outro aspecto de si mesmo – e precipitar a
hora da morte. A fim de liberar-se, chegou ao extremo do crime. A morte é ser obrigado a dormir sem jamais poder
despertar(24). Ele a impôs brutalmente, diante dos olhos da primeira das
mães: Temor antigo, castigo misterioso, ó
morte! eis-te pois revelada! Tens o rosto de todos nós, sob a máscara de Abel,
e por tua causa nós não nos diferenciamos dos animais (25). No sentir de
Adão e Eva, a morte é o último fruto da árvore da sabedoria; diante dos
despojos de Abel, Adão exclamará: aqui,
neste instante, nós esgotaremos o sabor do fruto da sabedoria; mas do que nunca
ele é amargo (53). Entretanto, ele dirá a Eva: Fomos nós que transmitimos o gérmen da morte ao corpo de Abel – Então,
transmitir a vida não passa de mera vaidade! replicará Eva, no auge da
revolta (55). Ah! É como se ele tivesse
aberto em mim uma brecha: meus filhos jamais terminarão de matar-se uns aos
outros (74). Todavia, Temec, procurando justificar seu marido Caim, diz: Que triunfe a vida, ainda que o preço seja a
morte (57).
É
verdade que a morte inelutavelmente haveria de sobrevir, portanto era o castigo
do pecado original. O erro de Caim foi, na realidade, o de ter-se adiantado aos desígnios de Jeová. Ele
acrescentou novo mal ao mal cujo castigo é a morte (77). Caim foi o iniciador da morte.
Daí
por diante, sobre a fronte de Caim, e de todo homem, todos poderão ler: Perigo de morte! Embora devam perceber
também, nessa advertência, o signo protetor que designa a criatura de Deus –
não um estigma infamante, mas a marca do filho de Adão. O signo que me reprova me protege, diz Caim. Na verdade, o Deus
concede-me a graça de que meu crime intimide os vingadores, porque o crime
deles contra mim terá de ser expiado sete vezes! Misericórdia, ao preço de um
castigo pesado demais (50). Agora, o homem, segundo Caim, não afronta nada
mais de Deus a não ser a ausência. Resta-lhe, porém, sua própria presença de
homem a afrontar. Como relembra Temec, a impiedosa esposa: Tua própria presença, Caim! Doravante, na sucessão dos homens: Caim
presente em cada um deles. No espelho de sua consciência, todo homem
refletirá os traços de um Caim. Como disse Adão: Meu filho Caim é essa segunda parte de mim mesmo, que não acabava mais
de se projetar. Vós que o seguis, sabei-o: sois o enxame de minhas ilusões
(126).
Se
se quisesse encontrar, forçosamente, uma comparação na tradição grega,
poder-se-ia pensar no mito de Prometeu, que desejou conquistar para a
humanidade um poder divino; liberá-la de uma dependência total, atribuindo-lhe
o fogo, princípio de todas as mutações futuras, quer seja o fogo do espírito,
quer seja o fogo da matéria. Tal como Prometeu, Caim é o símbolo do homem que reivindica sua parte na obra da criação.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p.162-164.
Crítica do homem abstracto de Rousseau
“Para uma sociedade de
produtores de mercadorias, cuja relação de produção consiste geralmente em
estar em relação com os seus próprios produtos enquanto mercadorias e,
portanto, valores, e em referir os seus próprios trabalhos privados um ao outro
desta forma objectiva como igual trabalho humano, o cristianismo, com o seu
culto do homem abstracto, e em especial no seu desenvolvimento burguês, no
protestantismo, deismo, etc., é a forma de religião mais apropriada”.
“A esfera da circulação, ou
seja, da troca de mercadorias, na qual se efectua a venda e a compra da força
de trabalho, é de facto um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem”.
(Marx,
in Emílio, IV).
A “consciência moral” consiste, para Rousseau, pai espiritual
da democracia moderna, no “sentimento da humanidade” ou amor humanitário. “O
amor dos homens”, diz ele, “derivado do amor
a si [não deve confundir-se com o particularista “amor-próprio”], é o
princípio da justiça humana”, ou seja, “é do sistema moral formado por esta dupla relação a si próprio e aos seus semelhantes que nasce o impulso da consciência”, que “torna o homem
semelhante a Deus”. A explicação desta dupla relação, que é a consciência, é a
seguinte: dado que “o amor para com o Autor
do próprio ser [...] se confunde com
este mesmo amor a si”, o amor a si e
o amor aos seus semelhantes confundem-se ou
coincidem, por sua vez; esta dupla relação deriva pois da fundamental relação
de união (amor) de cada um de nós próprios com Deus, com o universal transcendente, onde se confirma e precisa a afirmação de
que é por amor a Deus que se deve amar o próximo, isto é, o semelhante, como a si próprio. Nada menos (mas também nada mais) do que um egotismo, diríamos, religioso e, nesse sentido, moral,
apresenta-se-nos portanto na conhecida declaração rousseauiana: “Quando a força
de uma alma expansiva me identifica
com o meu semelhante, e eu me sinto, por assim dizer, nele, é para não sofrer
que quero que ele não sofra e interesso-me por ele por amor a mim próprio”.
Precisamente em nome deste egotismo sui generis - em que se articula praticamente a pessoa, ou
indivíduo-valor, enquanto pessoa originária,
ou seja, a priori, pré-social ou pré-histórica, sendo, essa pessoa,
unidade (gratuita, dogmática) do indivíduo ou particular com um universal que transcende absolutamente a história, em
lugar de unidade com o universal histórico que é o género humano –, justamente
por isso se compreende que Rousseau possa mesmo dizer que “a maior idéia que
posso conceber da Providência é que cada ser material esteja disposto da melhor
forma possível em relação ao todo, e
cada ser inteligente e sensível da melhor forma possível em relação a si próprio”; e ainda “eu digo-vos, em nome de Deus,
que a parte é maior que o todo”; e possa,
assim, aceitar plenamente o paradoxo do
individualismo abstracto, cristão, isto é, que para o indivíduo humano não vale a lei da relação do singular
com o todo, do indivíduo com o género (confrontar o seu eco kierke-gaardiano:
“O género humano tem a propriedade, precisamente porque cada um é feito à semelhança de Deus, de o singular ser mais elevado do que o género”:
Tagebücher, II).
Assim se compreende o significado moral verdadeiro,
integral, das fórmulas famosas do “homem da
natureza” e do “regresso à natureza”, porque se compreende o fundo apriorístico, platónico-cristão e romântico avant la lettre do
individualismo do Rousseau que diz pela boca do cura saboiano: “A razão
engana-nos com demasiada frequência [...], mas a consciência [isto é, o sentimento
inato do amor a si, que é o amor ao próximo, sendo amor a Deus]
nunca nos engana: quem a segue obedece à natureza
[...]. Reentramos em nós mesmos”; do
Rousseau que, ao abordar o problema da sociedade política, isto é, o problema
típico do género histórico, que é o género humano, adverte que “tudo está em
não deteriorar o homem da natureza ao
adapta-lo à sociedade”.
Mas, neste ponto, compreende-se também a dificuldade imensa
com que se defrontou o Rousseau político pelas
suas próprias premissas gerais, metafísicas e éticas; pelo axioma dogmático do homem da natureza, do indivíduo livre e independente no
sentido que lhe confere a sua consciência
originária, a priori; assim como
pelo corolário inevitável: que, ao tornar-se social-político, o homem da natureza
salve a sua específica integridade de pessoa
originária ou indivíduo investido de valor a priori, pela sua semelhança com Deus, isto é, pela sua união com
o universal transcendente, meta-histórico, que é Deus.
Uma dificuldade está já manifesta na famosa fórmula do
“problema fundamental”, de que o “contrato social” deveria ser a solução,
fórmula em que se enuncia a exigência de “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com
toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado [ou seja, tutele o direito de propriedade e
os outros direitos “naturais” conexos, racionais e puros, isto é, as pretensões
privadas absolutas da pessoa originária, pré-social, que é o homem da
natureza], e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça senão a si
próprio e permaneça livre como dantes”.
A dificuldade rousseauiana é, portanto, a de ter de fundamentar a sociedade
política, ou seja, aquele organismo histórico temporal que ela é, em elementos
tão refractários como os “imprescritíveis” direitos originários, pré-sociais,
absolutos, do homem da natureza, isto é, do indivíduo que é indivíduo-valor ou
pessoa, e por isso tem direitos, pela união com um universal ou género que
transcende a historicidade, por uma espécie de investidura extra-temporal, extra-histórica;
e não pela união com o seu género histórico:
o humano.
É certo que a tentativa de solucionar tão grande dificuldade
mediante a cláusula do “contrato”, cláusula da “alienação total de cada
associado com todos os seus direitos [naturais, originários] a toda a comunidade”, pelo que “cada um
dando-se a todos não se dá a nenhum”,
contribuiu historicamente para realizar a igualdade humanitária – isto é, de
tipo cristão – no campo do direito
“civil” ou político, com a substituição pela “lei”, como expressão da
“vontade geral” nascida do “contrato”, das “determinações”, “diplomas” e
“edictos” reais: a igualdade política
instaurada pela Revolução Francesa. Donde proveio a emancipação – política – do
homem “comum”. Mas também é certo que, tendo a “vontade geral”, que constitui o
novo “corpo político”, O seu fundamento ideológico na “consciência moral”, como
“sentimento da humanidade” ou amor humanitário, e não sendo este último nada
mais do que o egotismo religioso de
que acima se fala, em que se transforma o individualismo cristão tradicional,
deve concluir-se que a igualdade instituída por e para um tal corpo político só
pode ser justificada como aquele tipo de igualdade que aquele egotismo permite.
Ou seja: a igualdade-desigualdade que resulta do facto de se
conceber a igualdade em função da
liberdade, mas não o inverso. Não
o inverso, precisamente porque a pessoa,
com quem a liberdade coincide, é
aquele indivíduo abstracto, solitário, pré-social, pré-histórico, que é a pessoa originária, cristã, princípio e
fim daquele egotismo que é o amor humanitário (enquanto laicização
típica da caritas).
Consequentemente, uma igualdade como a descrita pode ser
quando muito uma igualdade extrínseca, formal,
abstracta e jurídica, no sentido de
que el.a é apenas a tradução “legal” ou “artificial” de pretensões ou direitos
“naturais”: em suma, a legitimação de
uma liberdade ou independência originária, extra-histórica, mítica; mas não
pode ser a igualdade intrínseca, substancial,
real, que é a igualdade social, isto
é, requerida pelo acto histórico, da convivência
que caracteriza aquele ser humano concreto, não separado do seu género;
aquela igualdade real que por si só comporta uma liberdade real enquanto
liberdade social, a qual, sendo
liberdade na e pela comunidade, é verdadeiramente
liberdade de todos.
Compreende-se assim o desequilíbrio de liberdade e de
justiça ou igualdade que atinge esta sociedade
política rousseauiana e, Por reflexo, a “democracia burguesa”. Daí aconteceu
que Rousseau ao pretender emancipar o “peuple”
emancipando aquele “roturier” ou
plebeu em que ele via particularmente incarnado o seu tipo de “homem” (comum),
isto é, o artífice, o pequeno agricultor, etc., o pequeno e médio burguês em
suma, forneceu assim as razões ideais da emancipação não de todo o povo, ou
seja, do povo simplesmente, mas
apenas da burguesia, de toda a
burguesia, pequena e grande, de uma classe somente; com base justamente (do
ponto de vista ideológico) na sua concepção fundamental do indivíduo humano
como indivíduo-valor, ou pessoa, enquanto é aquele homem da natureza, cujo carácter
absoluto ou independência originária (donde a “livre iniciativa”, etc.) é
caracter peculiar: enquanto, em concreto, homem
comum-burguês.
Compreende-se já como deveria permanecer fora deste quadro
ideológico o proletário, isto é, o
homem comum enquanto especificamente operário e, como tal, homem de massa, ou seja, homem social por excelência, em virtude de se
manifestar com ele, de modo eminente, a natureza orgânica e organizadora do
trabalho.
Concluindo acerca deste
Rousseau, parece claro que os limites ideológicos desta sua democracia se
resumem [1] na carência peculiar do princípio do “sentimento da humanidade” ou
do humanitarismo, e do implícito
conceito do homem como “homem da natureza”, ou homem-a priori, ou pessoa
originária. Aqui reside toda a justificação ideológica rousseauiana de uma
sociedade dividida em classes, e por isso ainda fragmentada por desigualdades
(que ele não podia ver): porque, se uma sociedade classista comporta em geral
uma concepção de direitos que são em
grande parte privilégios alargados,
como negar que estão destinados a ser privilégios [2] aqueles direitos que
querem ser tal enquanto deduzíveis da
dignidade originária de um indivíduo
humano abstraído – por isso – da sociedade histórica com o seu género?
Pense-se no carácter absoluto
e abstracto e, por isso, inumano que
marca, por exemplo, o direito tradicional, burguês, de “propriedade”,
justificado por via do direito natural, rousseauianamente, por um conceito apriorístico ou teológico do caracter
“sacro” da pessoa “humana”; e ter-se-á de admitir que ele é actualmente mais um
privilégio do que um direito, já que a este último lhe falta a capacidade de
ser realmente geral. E compreende-se,
porque, para o pressuposto apriorístico, não é a generalidade ou universalidade
real histórica própria do género humano que justifica aquele
pressuposto direito (de propriedade privada, etc.), mas sim a generalidade ou
universalidade irreal de um género que
transcende o humano. Donde não pode deixar de concluir-se a insuficiência
actual de toda a justificação apriorística ou teológica em sentido lato dos
valores morais (neste caso concreto). A consciência humana continua (e
continuará) a exigir direitos, mas a teologia (mesmo a mais laica) já não pode garantir senão privilégios. É a paradoxal, se se
quiser, mas já declarada e incurável impotência
axiológica – ou seja, de garantia de valores – de todo o apriorismo ou espiritualismo.
DELLA VOLPE,
Galvano. Rousseau e Marx: A Liberdade Igualitária. Lisboa: Edições 70,
1982.
A inocência original
Antes que as artes e as luzes se tenham propagado, o fato humano não está suficientemente
desenvolvido para opor-se a um direito ainda não expresso: o homem primitivo
é “bom” porque não é bastante ativo para
fazer o mal. É um julgamento retrospectivo do moralista que decide dessa
bondade. Quanto ao homem da natureza, vive
“ingenuamente” em um mundo amoral, ou pré-moral. A diferença do bem e do
mal não existe para a sua consciência limitada. Então, verdadeiramente não há
acordo entre o fato e o direito: seu conflito ainda não surgiu. No horizonte
limitado do estado de natureza, o homem vive em um equilíbrio que não o opõe
ainda ao mundo, nem a ele próprio. Ele não conhece nem o trabalho (que o oporá
à natureza), nem a reflexão (que o oporá a si mesmo e aos seus semelhantes):
Seus desejos não ultrapassam de modo nenhum suas
necessidades físicas... Sua imaginação não lhe pinta nada; seu coração não lhe
pede nada. Suas módicas necessidades se acham tão facilmente sob sua mão, e ele
está tão longe do grau de conhecimento preciso para desejar adquirir outras
maiores, que não pode ter previdência, nem curiosidade... Sua alma, que nada
agita, entrega-se apenas ao sentimento de sua existência atual.
Nessa suficiência perfeita, o homem não tem necessidade de
transformar o mundo para satisfazer suas necessidades. Está aí uma
variante “animal” e “sensitiva” do ideal estóico de autarquia. O
homem não sai de si mesmo, não sai do instante presente; em uma palavra, vive
no imediato. E se cada sensação é
nova para ele, essa descontinuidade aparente é somente uma maneira de viver a continuidade do imediato. Nada se
interpõe entre seus “desejos limitados”
e seu objeto, a intercessão da linguagem é pouco necessária; a sensação se abre
diretamente para o mundo, a ponto de o homem mal saber distinguir-se daquilo
que o cerca. O homem experimenta então um contato límpido com as coisas, que
ainda não é turvado pelo erro: os sentidos, limitados a si mesmos, não
contaminados pelo juízo e pela reflexão, não sofrem nenhuma distorção. Do mesmo
modo que Rousseau confere retrospectivamente a qualificação moral da bondade à
situação pré-moral, atribui retrospectivamente um valor de verdade à
experiência pré-reflexiva, que ele supõe perfeitamente passiva. A esse estado em
que se supõe que o homem viva aquém da distinção do verdadeiro e do falso,
Rousseau concede o privilégio da posse imediata da verdade. Como declara o
próprio Rousseau, esse é bem um estado de infância, e que uma criança de hoje
poderia ainda viver se não fosse
“corrompida” precocemente. Emílio está
“inteiro em seu ser atual, mas gozando de uma plenitude de vida que
parece querer estender-se fora dele... seus sentidos ainda puros estão isentos
de ilusões”.
A maneira pela qual Rousseau fala da “verdade dos sentidos” não é diferente do que
propõe a filosofia de Condillac, para quem o erro só começa a partir do momento
em que julgamos os dados sensíveis.
Não há erro, nem obscuridade, nem confusão naquilo que se
passa em nós, assim como na relação que disso fazemos com o exterior... se o
erro sobrevém, é apenas na medida em que julgamos.
A sensação sempre tem razão, mas não sabe que tem razão.
A síntese pela Educação
A interpretação de Engels une o Contrato ao segundo Discurso,
passando pela idéia da revolução (a “negação da negação"). Kant e mais
recentemente Cassirer também consideram o pensamento teórico de Rousseau como
um todo coerente. Nele encontram a mesma dialética, o mesmo ritmo ternário do
pensamento. No entanto, para chegar à reconciliação dos termos opostos, eles
não passam pela idéia de revolução, mas atribuem uma importância decisiva à educação. O momento final é o mesmo: a
reconciliação da natureza e da cultura em uma sociedade que redescobre a
natureza e supera as injustiças da civilização. As duas interpretações diferem
essencialmente sobre o que constitui a transição entre o segundo Discurso e o Contrato. Não tendo Rousseau explicitado essa transição, o exegeta
deve construí-la, com a ajuda dos indícios que pode encontrar, e dos quais
nenhum é decisivo. Uma certa arbitrariedade é inevitável, já que é preciso
pensar o pensamento de Rousseau para além daquilo que ele afirmou. Engels
escolhe passar pelas duas ou três últimas páginas do segundo Discurso, em que Rousseau evoca o retomo
da igualdade e a revolta dos escravos. Kant e Cassirer escolhem intercalar o
Emílio e as teorias pedagógicas de Rousseau, para estabelecer o elo necessário
entre as análises do segundo Discurso
e a construção positiva do Contrato.
Revolução ou educação: esse é o ponto capital sobre o qual se opõem essa
leitura “marxista” e essa leitura “idealista” de Rousseau, uma vez estabelecido
o seu acordo sobre a necessidade de uma interpretação global de seu pensamento
teórico.
Kant é um dos primeiros a afirmar que o pensamento de
Rousseau segue um plano racional: aqueles que o acusam de contradizer-se não o
compreendem. Rousseau, segundo Kant, não apenas denunciou o conflito da cultura
e da natureza, mas procurou-lhe a solução. Rousseau esforçou-se em pensar as
condições de um progresso da cultura
“que permitisse à humanidade desenvolver suas disposições (Anlagen) enquanto espécie moral (sittliche Gattung) sem desobedecer à sua
determinação (zu ihrer Bestimmung gehörig),
de modo a superar o conflito que a opõe a si mesma enquanto espécie natural (natürliche Gattung)". Reencontramos a natureza no momento em que a arte e
a cultura atingem seu mais alto grau de perfeição: “A arte consumada torna-se novamente
natureza". O que Kant chama de arte é a instituição jurídica, a ordem livre e racional a que o homem decide
conformar sua existência. A função suprema da educação e do direito, ambos
fundados na liberdade humana, é permitir que a natureza desabroche na cultura.
A partir desse momento (acrescentará Cassirer), os homens redescobrem o
imediato de que gozavam anteriormente em sua existência natural. O que
descobrem agora, porém, já não é apenas o imediato primitivo da sensação ou do
sentimento, mas o imediato da vontade autônoma e da consciência racional.
Aliás, desde o final do primeiro Discurso, Rousseau deixava
entrever a possibilidade de uma reconciliação: se os homens, e sobretudo os
príncipes, o quisessem, a separação poderia ser superada, uma verdadeira
comunidade poderia restabelecer-se... O mal não reside essencialmente no saber
e na arte (ou na técnica), mas na desintegração da unidade social. Constata-se,
nas circunstâncias atuais, que as artes e as ciências favorecem essa
desintegração e aceleram-na. Entretanto, nada impede que sirvam a fins
melhores. Desse modo, o propósito de Rousseau não é banir irremediavelmente as
artes e as ciências, mas restaurar a totalidade social, recorrendo ao
imperativo da virtude, a única capaz
de criar a coesão necessária:
[...] É apenas então que se verá o que podem a
virtude, a ciência e a autoridade animadas de uma nobre emulação e trabalhando
de acordo com a felicidade do gênero humano. Mas enquanto o poder estiver
sozinho de um lado, as luzes e a sabedoria sozinhas de um outro, os sábios
raramente pensarão grandes coisas, os príncipes mais raramente as farão belas,
e os povos continuarão a ser vis, corrompidos e infelizes.
O que Rousseau deplora é que o poder político e a cultura
visem a fins discordantes. Pois ele está pronto a absolver a cultura, com a
condição de que se tome parte integrante de uma totalidade harmoniosa, e não
incite mais os homens a buscar vantagens e prazeres separados. Portanto, ele
não sonha de modo nenhum com a extinção da ciência; ao contrário, aconselha
conservá-la, mas suprimindo o conflito que opõe atualmente “o poder” e
“as luzes"... Rousseau apela aos príncipes e às academias (sem
dúvida por polidez em relação à Academia de Dijon). Mas, por trás da adulação
de certas fórmulas, percebe-se nitidamente o voto de um retomo à unidade, de um
despertar da confiança, de uma comunicação reconquistada. Então, nada do que os
homens pensaram e inventaram seria rejeitado, tudo seria retomado na felicidade
de uma vida reconciliada.
STAROBINSKI,
Jean. Jean-Jacques Rousseau: A Transparência e o Obstáculo. São Paulo:
Paulinas, 1991, pp. 37-8 e 42-4.
A Estoá
(Esboço apenas para estudo)
(...)
O
ser, dizem os estóicos, é só aquilo que tem a capacidade de agir e sofrer. Mas
este é apenas o corpo: “ser e corpo são idênticos” é, portanto, a sua
conclusão. Corpóreos são também as virtudes e corpóreos os vícios, o bem e a
verdade.
(...)
Os
estóicos falam, na verdade, de dois
princípios do universo, um “passivo” e um “ativo”, mas identificam o primeiro
com a matéria e o segundo com a forma (ou melhor, com o princípio enformante) e
sustentam que um é inseparável do outro.
(...)
“Segundo
os estóicos, os princípios do universo são dois, o ativo e o passivo. O
princípio passivo é a substância sem qualidade, a matéria; o princípio ativo é
a razão na matéria, isto é, Deus. E Deus, que é eterno, é demiurgo criador de
todas as coisas no processo no processo da matéria”; “Os discípulos de Zenão
concordam em sustentar que Deus penetra em toda a realidade e que ora é
inteligência, ora alma, ora natureza [...].”
(...)
Dado
que o princípio ativo, que é Deus, é inseparável da matéria e como não existe matéria
sem forma, Deus está em tudo e Deus é tudo. Deus coincide com o cosmos. Dizem
as fontes antigas “Zenão indica o cosmos inteiro e o céu como substância de
Deus”. Ou ainda: “Chamam de Deus o cosmo inteiro e as suas partes”.
(...)
Com
base no que aqui foi precisado, é possível compreender plenamente a curiosa
posição que os estóicos assumiram em relação ao “incorpóreo”. A redução do ser
ao corpo comporta, como conseqüência necessária, a redução do in-corpóreo
(daquilo que é privado de corpo) a algo que é privado de ser.
(...)
A
Providência estóica, afirma-se, nada tem a ver com a Providência de um Deus
pessoal. É o finalismo universal que faz com que cada coisa (mesmo a menor das
coisas) seja feita como é bom e como é melhor que seja. É uma Providência imanente
e não transcendente, que coincide com o Artífice imanente, com a Alma do mundo.
(...)
Mas,
no contexto desse fatalismo, como se salva a liberdade do homem? A verdadeira
liberdade do sábio consiste em conformar a própria vontade à do Destino, consiste
em querer, com o Fado, aquilo que o Fado quer. Isto é “liberdade”, enquanto aceitação racional do Fado, que é
racionalidade: com efeito, o Destino é o Logos; por isso, querer os quereres
dos Destino é querer os quereres do Logos. Liberdade, pois, é pôr vida em total
sintonia com o Logos.
(...)
Nas
plantas e vegetais em geral, essa tendência é inconsciente; nos animais, é
consignada a um preciso instinto ou impulso primigênio; já no homem esse
impulso é especificado e sujeito à intervenção da razão. Viver “conforme à natureza” significa, pois, viver
realizando plenamente essa apropriação ou conciliação do próprio ser e daquilo
que o conserva e ativa. Em particular,
posto que o homem não é simplesmente ser vivente mas é ser racional, o viver
segundo a natureza será um viver
“conciliando-se” com o próprio ser racional, conservando-o e atualizando-o
plenamente.
(...)
Posto
que o instinto de conservação e a tendência ao incremento do ser são primeiros
e originários, então “bem” é aquilo que
conserva e incrementa o nosso ser e, ao contrário, “mal” é aquilo que o
danifica e o diminui. Ao primeiro instinto está pois estruturalmente ligada
a tendência a avaliar no sentido de que todas as coisas são reguladas pelo
instinto primeiro; à medida que se mostrem benévolas ou malévolas, as coisas
serão consideradas “bem” ou “mal”. O bem
é portanto vantajoso e útil; mal é o nocivo.
(...)
Pois
bem, segundo os estóicos, o bem moral é exatamente aquilo que incrementa
o logos e o mal é aquilo que lhe causa dano. O verdadeiro bem, para o homem, é
somente a virtude; o verdadeiro mal é só o vício.
(...)
Um
último ponto a considerar: a célebre doutrina da :apatia”. As paixões, das
quais depende a infelicidade do homem, são, para os estóicos, erros da razão
ou, de qualquer modo, conseqüências
deles.
(...)
“A
misericórdia é parte dos defeitos e vícios da alma: misericordioso é o homem
estulto e leviano. (...) O sábio não se comove em favor de quem quer que seja;
não condena ninguém por uma culpa cometida. Não é próprio do homem forte deixar-se
vencer pelas imprecações e afastar-se da justa severidade”.
REALE,
Giovanni & ANTISERI, Dario. História da Filosofia - Antigüidade e Idade
Média. Edições Paulinas, São Paulo, 1990, vol.I, p.256-265.
A Crítica do Juízo
A posição da terceira Crítica em relação às duas anteriores
A Critica da razão
pura ocupou-se da faculdade teórica, ou seja, do aspecto cognoscitivo da
razão humana, concluindo que a esfera por ela dominada é a da experiência (real
ou possível), que é a esfera dos fenômenos. O intelecto humano impõe a lei aos
fenômenos e estes, regulados pelas leis do intelecto, constituem a natureza.
Essa natureza é caracterizada pela causalidade mecânica e pela necessidade, que
é a necessidade mesma que lhe imprime o intelecto, como se viu amplamente.
Já a Crítica da razão
prática tratou de um tipo diverso de legislação, caracterizada pela liberdade. Tal legislação, porém, não se
explica em um âmbito teórico, mas prático, como também vimos.
Portanto, o domínio da razão pura não pode de modo algum nos
representar seus objetos como coisas em si, mas somente como fenômenos; já o
domínio prático pode nos representar seus próprios objetos como coisas em si
(supra-sensíveis), mas não pode conhecê-los teoricamente. Às coisas em si e aos
númenos só podemos dar realidade prática.
E evidente que essa “ruptura” entre “fenômeno” e “númeno” devia
atormentar Kant, ainda mais que a) já na primeira Crítica, ele havia admitido (embora com uma série de cautelas e
distinções) que a coisa em si é o substrato numênico do fenômeno (sendo
pensável, ainda que não cognoscível) e b) na segunda Crítica, havia admitido o acesso por via prático-moral ao mundo das
coisas em si e dos númenos.
Na Crítica do juízo,
ele se propõe então a tarefa de tentar uma mediação entre os dois mundos e, de
certa forma, captar a sua unidade, embora reafirmando firmemente que essa
mediação não poderá ser de caráter “cognoscitivo” e “teórico”.
Eis as afirmações programáticas de Kant: “Ora, embora exista
um abismo imensurável entre o domínio do conceito de natureza ou o sensível e o
domínio do conceito de liberdade ou o supra-sensível, de modo que não é
possível nenhuma passagem do primeiro para o segundo (através do uso teórico da
razão), como se fossem dois mundos tão diversos que o primeiro não possa ter
qualquer influência sobre o segundo. Entretanto, o segundo deve ter uma
influência sobre o primeiro, isto é, o conceito da liberdade deve realizar no
mundo sensível o objetivo proposto através de suas leis e, conseqüentemente, a
natureza deve poder ser pensada de modo que a conformidade às leis que
constituem a sua forma possa pelo menos se harmonizar com a possibilidade dos
objetivos, que devem se concretizar nela segundo as leis da liberdade. Desse
modo, deve haver um fundamento da unidade entre o supra-sensível que é o
fundamento da natureza e aquilo que o conceito da liberdade contém
praticamente, um fundamento cujo
conceito, na verdade, é insuficiente para dar seu conhecimento, tanto teórica
como praticamente, não tendo portanto nenhum domínio próprio, mas que, apesar
disso, permite a passagem do modo de pensar segundo os princípios de um ao modo
de pensar segundo os princípios do outro”.
Esse fundamento é uma terceira faculdade, que Kant
identifica como intermediária entre o intelecto (= faculdade cognoscitiva) e a
razão (= faculdade prática) e que chama de faculdade
do juízo, que se revela estreitamente vinculado com o sentimento puro.
Para compreender a nova Crítica,
é necessário esclarecer bem o novo significado
e “juízo” e estabelecer com exatidão em que ele se diferencia do “juízo”
teórico de que fala a Crítica da razão
pura.
"Juízo determinante” e “juízo reflexivo"
Segundo Kant, o juízo em geral é a faculdade de assumir o “particular”
no “universal", ou seja, a faculdade de pensar o particular contido no
universal. Ora, a esse respeito, dois casos são possíveis.
1) No
primeiro caso, podem se dar tanto o “particular” como o “universal”. Nesse
caso, o juízo que opera a adoção do particular (já dado) pelo universal (também
já dado) é determinante. Todos os
juízos da Crítica da razão pura são determinantes, porque são dados tanto o
particular (o múltiplo sensível) como o universal (as categorias e os princípios a
priori). Kant chama esse juízo de “determinante” porque ele determina
teoricamente o objeto (o constitui como objeto, como já vimos).
2) Ou
então, no segundo caso, pode ser dado só o
“particular", devendo o “universal” ser procurado. E é precisamente o juízo que deve procurá-lo. Nesse caso, o juízo se chama “reflexivo”. E chama-se “reflexivo”
porque esse “universal que se deve encontrar” não é uma lei a priori do
intelecto, mas, diz Kant, deriva de um “princípio da reflexão sobre objetos para os quais, objetivamente, nos falta em
absoluto uma lei” (Note-se que, aqui, “reflexão” assume sentido, não genérico,
mas técnico: para Kant, “reflexão” significa comparar e conjugar representações
entre si e coloca-las em relação com as nossas faculdades do conhecimento.)
Como veremos, esse princípio “universal” da reflexão é
diferente do universal do intelecto e é análogo ao das Idéias da razão: ele consiste na Idéia de finalidade.
Note-se, ademais, que, enquanto no juízo determinante os
dados particulares são os fornecidos pela sensibilidade e, portanto, são dados
informes que são “enformados” pelas categorias, no juízo reflexivo os dados são
constituídos pelos objetos já determinados pelo “juízo determinante” ou
teórico. Assim, podemos fizer que o “juízo reflexivo” reflete sobre esses
objetos já teoricamente determinados (sobre as representações desses objetos) a
fim de “encontrar” e “recuperar” a concordância entre si e com o sujeito (com
as suas faculdades cognoscitivas e com as suas exigência morais,
particularmente com a liberdade). No juízo reflexivo, nós captamos as coisas
como em harmonia umas com as outras e também em harmonia conosco.
Como dissemos, o universal próprio do juízo reflexivo não é
de natureza lógica, porquanto se trata de um universal que, muito mais, corresponde às Idéias da razão e ao seu uso
normativo. Com efeito, nos simples juízos reflexivos, para poder remontar
do particular ao universal que deve ser “encontrado” (ou seja, para encontrar a
unidade sob a qual reunir os vários objetos e os vários casos), temos
necessidade de um princípio-guia a priori, que, segundo Kant, outra coisa não é
senão a hipótese da finalidade da
natureza em seus múltiplos casos e manifestações, ou melhor, a consideração
da natureza e de tudo o que nela foi deixado indeterminado pelo nosso intelecto
“segundo uma unidade que possa ter sido estabelecida por um intelecto (ainda
que não o nosso)", precisa Kant, ou seja, segundo uma unidade “que possa
ter sido estabelecida por um intelecto divino”. E evidente que, considerada
desse ponto de vista, vale dizer, como a realização do projeto de uma mente
divina, toda a realidade da natureza, particularmente todos os acontecimentos
que nos aparecem como contingentes, manifestam-se então sob uma luz
completamente diferente, ou seja, à luz de um objetivo e de um fim.
Desse modo, o conceito de fim, que fora excluído da Razão
pura, ingressa na filosofia kantiana nessa fórmula complicadíssima do “juízo
reflexivo", aliás bastante sugestiva. O conceito de “fim” não é um
conceito teórico, como já recordamos, mas algo que se radica em uma necessidade
e em uma instância estrutural da sujeito. Entretanto, embora dentro desses
limites, o juízo reflexiva “fornece o conceito intermediário entre o conceito
da natureza e o da liberdade”. Concebida
“teleologicamente", a natureza se harmoniza com a “finalidade moral",
porque a finalidade faz a natureza perder a sua rigidez mecanicista e torna
possível a sua harmonização com a liberdade.
Mas nós podemos “encontrar” o finalismo na natureza de dois
modos diferentes, ainda que conjugados entre si: a) refletindo sobre a beleza ou então b)refletindo sobre o ordenamento da natureza. Daí a distinção
kantiana de dois tipos de “juízo reflexivo": a) o juízo estético e b) o
juízo teleológico, que agora examinaremos.
O juízo estético
A existência de juízos estéticos é um dado de fato evidente
por si só. Mas, diante da existência do juízo estético, colocam-se dois
problemas: 1) em primeiro lugar, o de estabelecer o que seja propriamente o belo que nele se manifesta; 2) em
segundo lugar, o de remontar ao fundamento que o torna possível.
E eis a solução kantiana para esses dois problemas.
1) Para
Kant, o belo, obviamente, não pode ser uma propriedade objetiva das coisas (o
belo ontológico), mas sim algo que nasce da relação entre o objeto e o sujeito.
Mais precisamente, é aquela propriedade que nasce da relação dos objetos
comparados com o nosso sentimento de
prazer e que nós atribuímos aos
próprios objetos. A imagem do objeto
referida ao sentimento do prazer,
comparada a este e por este avaliada dá lugar ao juízo de gosto. Esse juízo não
é cognoscitivo, porque o sentimento não é um conceito e, portanto, os juízos de
gosto não são juízos teóricos. Belo, portanto, é aquilo que agrada segundo o
juízo de gosto, o que implica em quatro características (que Kant deduz das quatro
classes de categorias).
a) Belo
é o objeto de “prazer sem interesse”. Falar de prazer sem interesse significa
falar de prazer que não está ligado ao grosseiro prazer dos sentidos e que não
está ligado sequer ao útil econômico ou ao bem moral.
b) Belo
é “aquilo que agrada universalmente, sem conceito”. O prazer do bem é
universal, porque vale para todos os
homens e, portanto, se distingue dos gostos individuais; entretanto, essa
universalidade não é de caráter conceitual e cognoscitivo. Trata-se portanto de
uma universalidade “subjetiva", no sentido de que Vale para cada sujeito
(referida que é ao sentimento de cada um).
c) "A
beleza é a forma da finalidade de um
objeto, enquanto é percebido sem a representação de objetivo”. G. de Ruggiero
explica muito bem essa característica no seguinte texto: “O belo nos dá uma
impressão de ordem e de harmonia, isto é, de um fim para o qual estão voltados
os elementos do objeto representado. Mas, se analisarmos essa impressão,
veremos que nenhum fim determinado e particular pode nos dar razão. Não é o fim
egoísta da satisfação de uma nossa necessidade, pois sentimos que o prazer da
beleza é desinteressado. Não é o fim utilitário, pelo qual o belo estada
subordinado a alguma coisa, pois sentimos que o belo é tal em si mesmo e não a
serviço de outro. Não é o fim de uma perfeição intrínseca, ética e lógica, pois
a essa nós chegamos através de uma reflexão conceitual, ao passo que o belo
agrada imediatamente. Excluindo-se assim qualquer fim determinado, resta a
própria idéia da finalidade, em seu aspecto formal e subjetivo, como idéia de uma concordância quase
intencional de partes em um todo harmônico. Essa característica pode ser
mais bem entendida quando consideramos a relação entre o belo da natureza, de
que se fala, com o belo na arte. Diante do belo da natureza, nós percebemos
como que a presença de um desígnio intencional pelo qual o objeto belo se nos
configura como obra de arte. Ao contrário diante de uma obra de arte, que segue
um desígnio intencional, nós sentimos que ela é verdadeiramente bela quando
aquela intencionalidade se oblitera e o objeto parece uma criação espontânea da
natureza. Reunindo as duas qualidades, que parecem em contraste, mas são
convergentes, podemos dizer que no belo, da natureza ou da arte, é preciso que
exista e não exista fim, ou seja, exista como se não existisse, isto é, que a
intencionalidade e a espontaneidade estejam fundidas de tal maneira que a
natureza pareça arte e a arte pareça natureza".
d) "O
belo é aquilo que é reconhecido, sem conceito, como objeto de prazer necessário.” Trata-se, obviamente (como
também no caso da universalidade), não de uma necessidade lógica, mas sim subjetiva, no sentido de que se trata de
algo que se impõe a todos os homens.
2) Resolvido
o primeiro problema, vejamos o segundo: qual é o fundamento do juízo
(reflexivo) estético? O fundamento do juízo estético é o “livre jogo e harmonia
das nossas faculdades espirituais” (a harmonia entre a representação e o nosso
intelecto, entre a fantasia e o intelecto) que o objeto produz no sujeito. O
juízo de gosto, portanto, é o efeito desse livre jogo das faculdades
cognoscitivas. São compreensíveis, portanto, as conclusões de Kant: “Esse juízo
puramente subjetivo (estético) do objeto ou da representação com que ele nos é
dado precede o prazer pelo objeto e é o fundamento
desse prazer pela harmonia das
faculdades do conhecer: mas só se funda na universalidade das condições
subjetivos no juízo dos objetos essa
validade subjetiva universal do prazer que nós ligamos à representação do
objeto que chamamos belo'.
A concepção do sublime
O sublime é afim ao belo, porque também agrada “por si mesmo”
e, do mesmo modo, pressupõe um “juízo de reflexão", A diferença está no
fato de que o belo diz respeito à forma do objeto e a forma é caracterizada pela
limitação (de-terminação), ao passo que o sublime também diz respeito àquilo
que é informe e que, enquanto tal, implica a representação do ilimitado.
Ademais, o belo produz um prazer positivo, enquanto o sublime produz um prazer
negativo (por vezes, Kant chega a dizer que produz um sentimento de desprazer).
Escreve Kant: “O sublime não pode se unir a algo atrativo; e, como o espírito
não é simplesmente atraído pelo objeto, mas alternadamente atraído e repelido,
o prazer do sublime não é tanto uma alegria positiva, mas muito mais um
contínuo maravilhamento e estima, isto é, merece ser chamado um prazer negativo”.
E, por fim, o espírito tende à comoção ao se representar o sublime, ao passo
que, representando-se o belo, “goza de calma contemplação".
Mas o sublime não está
nas coisas e sim no homem. O sublime é de duas espécies: matemático e
dinâmico; o primeiro é dado pelo infinitamente grande e o segundo pelo
infinitamente potente, Diante do imensamente grande (oceano, céu etc.) ou do
imensamente potente (terremotos, vulcões etc.) o homem, por um lado, se
descobre pequeno e se sente esmagado, mas, por outro lado, descobre ser
superior àquele imensamente grande ou potente de caráter físico (oceano, céu,
terremotos e vulcões são fenômenos físicos), dado que leva em si as Idéias da
razão, que são Idéias da totalidade absoluta, que superam aquilo que, à
primeira vista, parecia superar o próprio homem.
Eis as eloqüentes palavras de Kant: “O verdadeiro sublime
não pode estar contido em alguma forma sensível, mas diz respeito somente às
Idéias da razão, as quais, embora nenhuma exibição lhes possa ser adequada,
aliás, precisamente por tal desproporção que
se pode exibir sensivelmente, são
evocadas e despertadas em nosso espírito. Assim, o imenso oceano erguido
pela tempestade não pode ser chamado de sublime: a sua visão é terrível. E é
preciso que o espírito já tenha sido preenchido por tais idéias se, através de
tal intuição, deve ser determinado a um sentimento, que é ele próprio sublime, enquanto o espírito é levado a abandonar a
sensibilidade e se ocupar de Idéias que contém uma finalidade superior”. Em
conclusão, a definição mais apropriada de sublime é a seguinte: “Sublime é
aquilo que, pelo falo mesmo de poder só pensa-lo, atesta uma faculdade de
espírito superior a toda medida dos sentidos."
O juízo teleológico e as conclusões da Crítica do juízo
A finalidade do juízo estético é uma finalidade “sem
objetivo", como vimos, isto é, uma finalidade para o sujeito (o objeto parece feito de propósito para o sujeito, a fim de pôr
harmonicamente em movimento as suas faculdades). No juízo teleológico, ao
contrário, considera-se a finalidade da natureza, que Kant recupera,
precisamente, ao nível do “juízo reflexivo".
Essa é a parte mais atormentada da terceira Crítica, porque muitas considerações de
Kant o levariam a conclusões metafísicas, que ele, no entanto, repele por causa
dos preconceitos que carrega desde a primeira Crítica.
As conclusões do filósofo são as que se seguem.
Nós não sabemos como a natureza é em si mesma (considerada
numenicamente), já que só a conhecemos fenomenicamente. Entretanto, nós não
podemos deixar de considerá-la como organizada finalisticamente, dado que em nós há uma tendência irrefreável
a considerá-la desse modo.
Aliás, Kant admite inclusive que alguns produtos da natureza
física (os organismos) não podem ser explicados segundo leis puramente
mecânicas, exigindo “uma lei de causalidade inteiramente diferente", isto
é, a causalidade finalística.
Entretanto, não é possível a extensão do finalismo a toda a natureza, do ponto de vista
cognoscitivo, pelas razões que já vimos (deveríamos ter um intelecto intuitivo
e poder construir uma metafísica como ciência). Kant encontra a solução (não
sem ter que forçar um pouco) precisamente graças ao juízo teleológico entendido como simples “juízo reflexivo”.
As seguintes palavras de Kant resumem claramente a sua
posição: “Há uma diferença absoluta entre dizer que a produção de certas coisas
da natureza ou até de toda a natureza não é possível senão através de uma causa
que se determina a agir intencionalmente e fizer que, segundo a natureza particular de minha faculdade cognoscitiva, eu não
posso julgar da possibilidade daquelas coisas e de sua produção senão pensando
uma causa que age intencionalmente e, portanto, um ser que produz analogamente
à causalidade de um intelecto. No primeiro caso, quero afirmar algo do
objeto e sou levado a demonstrar a realidade objetiva de um conceito que eu
admito; no segundo, a razão nada mais faz do que determinar o uso de minhas
faculdades cognoscitivas, em conformidade com a sua natureza e com as condições
essenciais de sua dimensão e dos seus limites. De modo que o primeiro é um
principio objetivo pelo juízo determinante e o segundo um princípio subjetivo que serve simplesmente pelo juízo
reflexivo e, portanto, uma máxima que lhe é atribuída pela razão.” .
Entretanto, Kant reconhece expressamente que a consideração
teleológica tem uso normativo e até eurístico,
ou seja, válido “para investigar as leis particulares da natureza”.
Mas a conclusão da Crítica
do juízo é que, vista pela ótica do juízo reflexivo, a realização do fim
moral do homem é o objetivo da natureza e que “segundo os princípios da razão,
existem motivos suficientes (...) para que o juízo reflexivo considere o homem
não somente como fim da natureza, como todos os seres organizados, mas também como objetivo da natureza sobre a
terra, de modo que, em relação a ele, todas as outras coisas naturais
constituem um sistema de fins”. Sem o homem, o mundo seria um deserto
vazio. E só a “boa vontade” constitui um objetivo último.
Essa foi a obra que teve maior influência sobre os
contemporâneos de Kant e também sobre a geração seguinte: para Goethe, para
Schiller e para os poetas românticos, Kant foi sobretudo o autor da terceira Crítica.
Conclusões: “o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim” como marca espiritual de Kant como homem e pensador
Já acenamos à afirmação simbólica de Kant segundo a qual as
duas coisas que mais o enchiam de admiração eram o céu estrelado e a lei moral.
Agora, como conclusão, é tempo de ler essa passagem na íntegra:
"Duas coisas enchem-me o espírito de admiração e
reverência sempre novas e crescentes, quanto mais freqüente e longamente o
pensamento nelas se detém: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim.
Não tenho que buscar essas duas coisas fora do alcance da minha vista,
envolvidas em obscuridade, ou no transcendente. Nem devo, simplesmente,
presumi-las. Eu as vejo diante de mim e as vinculo imediatamente à consciência
da minha existência. A primeira começa do lugar que ocupo no mundo sensível
externo e estende a conexão em que me encontro a grandezas imensuráveis, com
mundos sobre mundos e sistemas de sistemas e, além disso, aos tempos sem
fronteiras do seu movimento periódico, do seu início e da sua duração. A
segunda parte do meu Eu invisível, da minha personalidade, representando-me em
um mundo que tem uma infinitude verdadeira, mas que só é perceptível pelo
intelecto, com o qual (mas, por isso e ao mesmo tempo, com todos aqueles mundos
visíveis) me reconheço em uma conexão não simplesmente acidental, como no
primeiro caso, mas universal e necessária. A primeira visão, de um conjunto
inumerável de mundos, aniquila, por assim dizer, a minha importância de criatura
animal, que deverá restituir a matéria de que é feita ao planeta (um simples
ponto no universo), depois de ter sido dotada por breve tempo (não se sabe
como) de força vital. A segunda, ao contrário, eleva infinitamente o meu valor,
como valor de uma inteligência, graças à minha personalidade, na qual a lei
moral me revela uma vida independente da animalidade e até mesmo de todo o
mundo sensível, pelo menos por aquilo que se pode deduzir da destinação final
de minha existência em virtude dessa lei, destinação que não se limita às
condições e às fronteiras desta vida, mas que vai até o infinito."
E assim, para Kant, o homem, que na Razão pura revelou-se fenomênico, finito, mas dotado (como razão)
de estrutural abertura para o infinito (as
Idéias) e de uma necessidade irrefreável de infinito, agora na Razão prática (da qual foi extraída essa
passagem) revela-se também efetivamente
destinado ao infinito.
O destino do homem, portanto, é o infinito.
Com essas posições, nos preparamos para transcender os
horizontes do iluminismo e chegamos aos umbrais do romantismo, que, em sua
poesia e em sua filosofia, estará todo voltado precisamente para o infinito.
REALE,
Giovanni & ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do Humanismo a Kant –
vol.2. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 924-932.
Como vejo o mundo
Minha condição humana me fascina. Conheço o limite de minha
existência e ignoro por que estou nesta terra, mas às vezes o pressinto. Pela
experiência cotidiana, concreta e intuitiva, eu me descubro vivo para alguns
homens, porque o sorriso e a felicidade deles me condicionam inteiramente, mas
ainda para outros que, por acaso, descobri terem emoções semelhantes às minhas.
E cada dia, milhares de vezes, sinto minha vida — corpo e
alma — integralmente tributária do trabalho dos vivos e dos mortos. Gostaria de
dar tanto quanto recebo e não paro de receber. Mas depois experimento o
sentimento satisfeito de minha solidão e quase demonstro má consciência ao
exigir ainda alguma coisa de outrem. Vejo os homens se diferenciarem pelas
classes sociais e sei que nada as justifica a não ser pela violência. Sonho ser
acessível e desejável para todos uma vida simples e natural, de corpo e de
espírito.
Recuso-me a crer na liberdade e neste conceito filosófico.
Eu não sou livre, e sim às vezes constrangido por pressões estranhas a mim,
outras vezes por convicções íntimas. Ainda jovem, fiquei impressionado pela
máxima de Schopenhauer: “O homem pode, é certo, fazer o que quer, mas não pode
querer o que quer”; e hoje, diante do espetáculo aterrador das injustiças
humanas, esta moral me tranquiliza e me educa. Aprendo a tolerar aquilo que me
faz sofrer. Suporto então melhor meu sentimento de responsabilidade. Ele já não
me esmaga e deixo de me levar, a mim ou aos outros, a sério demais. Vejo então
o mundo com bom humor. Não posso me preocupar com o sentido ou a finalidade de
minha existência, nem da dos outros, porque, do ponto de vista estritamente
objetivo, é absurdo. E no entanto, como homem, alguns ideais dirigem minhas
ações e orientam meus juízos. Porque jamais considerei o prazer e a felicidade
como um fim em si e deixo este tipo de satisfação aos indivíduos reduzidos a
instintos de grupo.
Em compensação, foram ideais que suscitaram meus esforços e
me permitiram viver. Chamam-se o bem, a beleza, a verdade. Se não me identifico
com outras sensibilidades semelhantes à minha e se não me obstino
incansavelmente em perseguir este ideal eternamente inacessível na arte e na
ciência, a vida perde todo o sentido para mim. Ora, a humanidade se apaixona
por finalidades irrisórias que têm por nome a riqueza, a glória, o luxo. Desde
moço já as desprezava. Tenho forte amor pela justiça, pelo compromisso social.
Mas com muita dificuldade me integro com os homens e em suas comunidades. Não
lhes sinto a falta porque sou profundamente um solitário. Sinto-me realmente
ligado ao Estado, à pátria, a meus amigos, a minha família no sentido completo
do termo. Mas meu coração experimenta, diante desses laços, curioso sentimento
de estranheza, de afastamento e a idade vem acentuando ainda mais essa distância.
Conheço com lucidez e sem prevenção as
fronteiras da comunicação e da harmonia entre mim e os outros homens.
Com isso perdi algo da ingenuidade ou da inocência, mas
ganhei minha independência. Já não mais firmo uma opinião, um hábito ou um
julgamento sobre outra pessoa. Testei o homem. É inconsistente.
Albert Einstein, in “Como Vejo O
Mundo”
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