segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

A Teologia Racional e as provas tradicionais da existência de Deus

A terceira Idéia da razão é Deus (a Idéia de um incondicionado supremo, de um absolutamente incondicionado e condição de todas as coisas). Neste caso, diz Kant, mais do que de uma Idéia, trata-se de um "Ideal", aliás, o Ideal por excelência da razão. Mas, escreve Kant, "ele é também o único ideal verdadeiro de que a razão humana é capaz, já que somente nele é conhecido um conceito em si mesmo universal de uma coisa, completamente determinado por si mesmo e como representação de um indivíduo". Deus é "ideal" porque é modelo de todas as coisas, que, na qualidade de cópias, ficam infinitamente distantes dele, como aquilo que é derivado fica longe daquilo que é originário: Deus é o ser do qual dependem todos os seres, é a perfeição absoluta.
Mas essa Idéia ou Ideal que formamos com a razão nos deixa "na total ignorância sobre a existência de um ser de tão excepcional proeminência". Daí as "provas" ou "caminhos" para provar a existência de Deus que a metafísica elaborou desde a Antigüidade. Segundo Kant, esses caminhos são apenas três.
l) A prova ontológica a priori, que parte do puro conceito de Deus como absoluta perfeição para deduzir a sua existência. Essa é a célebre prova formulada pela primeira vez por santo Anselmo e retomada nos tempos modernos por Descartes e Leibniz.
2) A prova cosmológica, que parte da experiência e infere Deus como causa. Kant a resume assim: "Se existe algo, deve existir um Ser absolutamente necessário. Ora, eu mesmo, pelo menos, existo; portanto, existe um Ser absolutamente necessário. A menor contém uma experiência, a maior contém uma ilação de uma experiência em geral à existência do necessário. Portanto, a prova parte propriamente da experiência; assim, não é conduzida inteiramente a priori ou ontologicamente; e, como o objeto de toda experiência possível é o mundo, então essa prova é chamada de cosmológica."
3) A terceira prova é a físico-teológica (mas seria melhor chama-la físico-teleológica), que, partindo da variedade, da ordem, da finalidade e da beleza do mundo, remonta a Deus, considerado como Ser último e supremo, acima de toda possível perfeição e considerado como causa. 
l) Ora, Kant observa que o argumento ontológico cai no erro (na ilusão transcendental) de trocar o predicado lógico pelo real. O conceito de ente perfeitíssimo não só é alcançado pela razão, mas é necessário à razão. Entretanto, não se pode extrair a existência real de tal conceito ou Idéia, porque a proposição que afirma a existência de uma coisa não é analítica, mas sintética. A existência de uma coisa não é um conceito que se acrescenta ao conceito daquela coisa, mas sim a posição real da coisa. Ora, a existência dos objetos que pertencem à esfera do sensível nos é dada pela experiência, "mas, no caso dos objetos do pensamento puro, não há absolutamente meio de conhecer a sua existência, já que eles deveriam ser conhecidos inteiramente a priori"; mas, para tanto, deveríamos ter uma "intuição intelectual", que não temos.
2) Na prova cosmológica, Kant encontra verdadeiro viveiro de erros (erros transcendentais, isto é, erros em que se incorre necessariamente, quando se toma esse caminho). Destaquemos os dois principais. Em primeiro lugar, o princípio que leva a inferir do contingente uma sua causa "Só tem significado no mundo sensível, mas fora dele não tem nenhum sentido", porque o princípio de causa-efeito em que se baseia a experiência só pode dar lugar a uma proposição sintética no âmbito da experiência (a inferência de uma coisa não contingente representa portanto uma aplicação da categoria fora do seu correto âmbito). Mas, sobretudo, Kant destaca que a prova cosmológica, no fim das contas, repropõe o argumento ontológico camuflado: com efeito, uma vez que se chega ao Ser necessário como condição do contingente, fica por provar precisa- mente aquilo de que se tratava, ou seja, a sua existência real, que, como sabemos, não pode ser extraída analiticamente, porque a existência é uma posição e o juízo de existência (como dissemos) é sintético a priori, o que significa que, para captar a existência de Deus, devemos intuí-la intelectualmente.
3) Raciocínio análogo vale também contra a prova físico-teleológica (pela qual, aliás, Kant nutre grande simpatia). Diz Kant que ela "poderia quando muito demonstrar um arquiteto do mundo, que seria sempre muito limitado pela capacidade da matéria por ele elaborada, mas não um criador do mundo, a cuja idéia tudo se submete". Para demonstrá-lo, a prova físico-teleológica "pula para a prova cosmológica", que, como se disse, por seu turno, "nada mais é do que uma prova ontológica mascarada".


REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Do Iluminismo a Kant. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 903-4.

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