segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

A inocência original

Antes que as artes e as luzes se tenham propagado, o fato humano não está suficientemente desenvolvido para opor-se a um direito ainda não expresso: o homem primitivo é  “bom” porque não é bastante ativo para fazer o mal. É um julgamento retrospectivo do moralista que decide dessa bondade. Quanto ao homem da natureza, vive  “ingenuamente” em um mundo amoral, ou pré-moral. A diferença do bem e do mal não existe para a sua consciência limitada. Então, verdadeiramente não há acordo entre o fato e o direito: seu conflito ainda não surgiu. No horizonte limitado do estado de natureza, o homem vive em um equilíbrio que não o opõe ainda ao mundo, nem a ele próprio. Ele não conhece nem o trabalho (que o oporá à natureza), nem a reflexão (que o oporá a si mesmo e aos seus semelhantes):

Seus desejos não ultrapassam de modo nenhum suas necessidades físicas... Sua imaginação não lhe pinta nada; seu coração não lhe pede nada. Suas módicas necessidades se acham tão facilmente sob sua mão, e ele está tão longe do grau de conhecimento preciso para desejar adquirir outras maiores, que não pode ter previdência, nem curiosidade... Sua alma, que nada agita, entrega-se apenas ao sentimento de sua existência atual.

Nessa suficiência perfeita, o homem não tem necessidade de transformar o mundo para satisfazer suas necessidades. Está aí uma variante  “animal” e  “sensitiva” do ideal estóico de autarquia. O homem não sai de si mesmo, não sai do instante presente; em uma palavra, vive no imediato. E se cada sensação é nova para ele, essa descontinuidade aparente é somente uma maneira de viver a continuidade do imediato. Nada se interpõe entre seus  “desejos limitados” e seu objeto, a intercessão da linguagem é pouco necessária; a sensação se abre diretamente para o mundo, a ponto de o homem mal saber distinguir-se daquilo que o cerca. O homem experimenta então um contato límpido com as coisas, que ainda não é turvado pelo erro: os sentidos, limitados a si mesmos, não contaminados pelo juízo e pela reflexão, não sofrem nenhuma distorção. Do mesmo modo que Rousseau confere retrospectivamente a qualificação moral da bondade à situação pré-moral, atribui retrospectivamente um valor de verdade à experiência pré-reflexiva, que ele supõe perfeitamente passiva. A esse estado em que se supõe que o homem viva aquém da distinção do verdadeiro e do falso, Rousseau concede o privilégio da posse imediata da verdade. Como declara o próprio Rousseau, esse é bem um estado de infância, e que uma criança de hoje poderia ainda viver se não fosse  “corrompida” precocemente. Emílio está  “inteiro em seu ser atual, mas gozando de uma plenitude de vida que parece querer estender-se fora dele... seus sentidos ainda puros estão isentos de ilusões”.
A maneira pela qual Rousseau fala da  “verdade dos sentidos” não é diferente do que propõe a filosofia de Condillac, para quem o erro só começa a partir do momento em que julgamos os dados sensíveis.
Não há erro, nem obscuridade, nem confusão naquilo que se passa em nós, assim como na relação que disso fazemos com o exterior... se o erro sobrevém, é apenas na medida em que julgamos.
A sensação sempre tem razão, mas não sabe que tem razão.

A síntese pela Educação

A interpretação de Engels une o Contrato ao segundo Discurso, passando pela idéia da revolução (a “negação da negação"). Kant e mais recentemente Cassirer também consideram o pensamento teórico de Rousseau como um todo coerente. Nele encontram a mesma dialética, o mesmo ritmo ternário do pensamento. No entanto, para chegar à reconciliação dos termos opostos, eles não passam pela idéia de revolução, mas atribuem uma importância decisiva à educação. O momento final é o mesmo: a reconciliação da natureza e da cultura em uma sociedade que redescobre a natureza e supera as injustiças da civilização. As duas interpretações diferem essencialmente sobre o que constitui a transição entre o segundo Discurso e o Contrato. Não tendo Rousseau explicitado essa transição, o exegeta deve construí-la, com a ajuda dos indícios que pode encontrar, e dos quais nenhum é decisivo. Uma certa arbitrariedade é inevitável, já que é preciso pensar o pensamento de Rousseau para além daquilo que ele afirmou. Engels escolhe passar pelas duas ou três últimas páginas do segundo Discurso, em que Rousseau evoca o retomo da igualdade e a revolta dos escravos. Kant e Cassirer escolhem intercalar o Emílio e as teorias pedagógicas de Rousseau, para estabelecer o elo necessário entre as análises do segundo Discurso e a construção positiva do Contrato. Revolução ou educação: esse é o ponto capital sobre o qual se opõem essa leitura  “marxista” e essa leitura  “idealista” de Rousseau, uma vez estabelecido o seu acordo sobre a necessidade de uma interpretação global de seu pensamento teórico.
Kant é um dos primeiros a afirmar que o pensamento de Rousseau segue um plano racional: aqueles que o acusam de contradizer-se não o compreendem. Rousseau, segundo Kant, não apenas denunciou o conflito da cultura e da natureza, mas procurou-lhe a solução. Rousseau esforçou-se em pensar as condições de um progresso da cultura  “que permitisse à humanidade desenvolver suas disposições (Anlagen) enquanto espécie moral (sittliche Gattung) sem desobedecer à sua determinação (zu ihrer Bestimmung gehörig), de modo a superar o conflito que a opõe a si mesma enquanto espécie natural (natürliche Gattung)". Reencontramos a natureza no momento em que a arte e a cultura atingem seu mais alto grau de perfeição:  “A arte consumada torna-se novamente natureza". O que Kant chama de arte é a instituição jurídica, a ordem livre e racional a que o homem decide conformar sua existência. A função suprema da educação e do direito, ambos fundados na liberdade humana, é permitir que a natureza desabroche na cultura. A partir desse momento (acrescentará Cassirer), os homens redescobrem o imediato de que gozavam anteriormente em sua existência natural. O que descobrem agora, porém, já não é apenas o imediato primitivo da sensação ou do sentimento, mas o imediato da vontade autônoma e da consciência racional.
Aliás, desde o final do primeiro Discurso, Rousseau deixava entrever a possibilidade de uma reconciliação: se os homens, e sobretudo os príncipes, o quisessem, a separação poderia ser superada, uma verdadeira comunidade poderia restabelecer-se... O mal não reside essencialmente no saber e na arte (ou na técnica), mas na desintegração da unidade social. Constata-se, nas circunstâncias atuais, que as artes e as ciências favorecem essa desintegração e aceleram-na. Entretanto, nada impede que sirvam a fins melhores. Desse modo, o propósito de Rousseau não é banir irremediavelmente as artes e as ciências, mas restaurar a totalidade social, recorrendo ao imperativo da virtude, a única capaz de criar a coesão necessária:

[...] É apenas então que se verá o que podem a virtude, a ciência e a autoridade animadas de uma nobre emulação e trabalhando de acordo com a felicidade do gênero humano. Mas enquanto o poder estiver sozinho de um lado, as luzes e a sabedoria sozinhas de um outro, os sábios raramente pensarão grandes coisas, os príncipes mais raramente as farão belas, e os povos continuarão a ser vis, corrompidos e infelizes.

O que Rousseau deplora é que o poder político e a cultura visem a fins discordantes. Pois ele está pronto a absolver a cultura, com a condição de que se tome parte integrante de uma totalidade harmoniosa, e não incite mais os homens a buscar vantagens e prazeres separados. Portanto, ele não sonha de modo nenhum com a extinção da ciência; ao contrário, aconselha conservá-la, mas suprimindo o conflito que opõe atualmente  “o poder” e  “as luzes"... Rousseau apela aos príncipes e às academias (sem dúvida por polidez em relação à Academia de Dijon). Mas, por trás da adulação de certas fórmulas, percebe-se nitidamente o voto de um retomo à unidade, de um despertar da confiança, de uma comunicação reconquistada. Então, nada do que os homens pensaram e inventaram seria rejeitado, tudo seria retomado na felicidade de uma vida reconciliada.


STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: A Transparência e o Obstáculo. São Paulo: Paulinas, 1991, pp. 37-8 e 42-4. 

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