Seus desejos não ultrapassam de modo nenhum suas
necessidades físicas... Sua imaginação não lhe pinta nada; seu coração não lhe
pede nada. Suas módicas necessidades se acham tão facilmente sob sua mão, e ele
está tão longe do grau de conhecimento preciso para desejar adquirir outras
maiores, que não pode ter previdência, nem curiosidade... Sua alma, que nada
agita, entrega-se apenas ao sentimento de sua existência atual.
Nessa suficiência perfeita, o homem não tem necessidade de
transformar o mundo para satisfazer suas necessidades. Está aí uma
variante “animal” e “sensitiva” do ideal estóico de autarquia. O
homem não sai de si mesmo, não sai do instante presente; em uma palavra, vive
no imediato. E se cada sensação é
nova para ele, essa descontinuidade aparente é somente uma maneira de viver a continuidade do imediato. Nada se
interpõe entre seus “desejos limitados”
e seu objeto, a intercessão da linguagem é pouco necessária; a sensação se abre
diretamente para o mundo, a ponto de o homem mal saber distinguir-se daquilo
que o cerca. O homem experimenta então um contato límpido com as coisas, que
ainda não é turvado pelo erro: os sentidos, limitados a si mesmos, não
contaminados pelo juízo e pela reflexão, não sofrem nenhuma distorção. Do mesmo
modo que Rousseau confere retrospectivamente a qualificação moral da bondade à
situação pré-moral, atribui retrospectivamente um valor de verdade à
experiência pré-reflexiva, que ele supõe perfeitamente passiva. A esse estado em
que se supõe que o homem viva aquém da distinção do verdadeiro e do falso,
Rousseau concede o privilégio da posse imediata da verdade. Como declara o
próprio Rousseau, esse é bem um estado de infância, e que uma criança de hoje
poderia ainda viver se não fosse
“corrompida” precocemente. Emílio está
“inteiro em seu ser atual, mas gozando de uma plenitude de vida que
parece querer estender-se fora dele... seus sentidos ainda puros estão isentos
de ilusões”.
A maneira pela qual Rousseau fala da “verdade dos sentidos” não é diferente do que
propõe a filosofia de Condillac, para quem o erro só começa a partir do momento
em que julgamos os dados sensíveis.
Não há erro, nem obscuridade, nem confusão naquilo que se
passa em nós, assim como na relação que disso fazemos com o exterior... se o
erro sobrevém, é apenas na medida em que julgamos.
A sensação sempre tem razão, mas não sabe que tem razão.
A síntese pela Educação
A interpretação de Engels une o Contrato ao segundo Discurso,
passando pela idéia da revolução (a “negação da negação"). Kant e mais
recentemente Cassirer também consideram o pensamento teórico de Rousseau como
um todo coerente. Nele encontram a mesma dialética, o mesmo ritmo ternário do
pensamento. No entanto, para chegar à reconciliação dos termos opostos, eles
não passam pela idéia de revolução, mas atribuem uma importância decisiva à educação. O momento final é o mesmo: a
reconciliação da natureza e da cultura em uma sociedade que redescobre a
natureza e supera as injustiças da civilização. As duas interpretações diferem
essencialmente sobre o que constitui a transição entre o segundo Discurso e o Contrato. Não tendo Rousseau explicitado essa transição, o exegeta
deve construí-la, com a ajuda dos indícios que pode encontrar, e dos quais
nenhum é decisivo. Uma certa arbitrariedade é inevitável, já que é preciso
pensar o pensamento de Rousseau para além daquilo que ele afirmou. Engels
escolhe passar pelas duas ou três últimas páginas do segundo Discurso, em que Rousseau evoca o retomo
da igualdade e a revolta dos escravos. Kant e Cassirer escolhem intercalar o
Emílio e as teorias pedagógicas de Rousseau, para estabelecer o elo necessário
entre as análises do segundo Discurso
e a construção positiva do Contrato.
Revolução ou educação: esse é o ponto capital sobre o qual se opõem essa
leitura “marxista” e essa leitura “idealista” de Rousseau, uma vez estabelecido
o seu acordo sobre a necessidade de uma interpretação global de seu pensamento
teórico.
Kant é um dos primeiros a afirmar que o pensamento de
Rousseau segue um plano racional: aqueles que o acusam de contradizer-se não o
compreendem. Rousseau, segundo Kant, não apenas denunciou o conflito da cultura
e da natureza, mas procurou-lhe a solução. Rousseau esforçou-se em pensar as
condições de um progresso da cultura
“que permitisse à humanidade desenvolver suas disposições (Anlagen) enquanto espécie moral (sittliche Gattung) sem desobedecer à sua
determinação (zu ihrer Bestimmung gehörig),
de modo a superar o conflito que a opõe a si mesma enquanto espécie natural (natürliche Gattung)". Reencontramos a natureza no momento em que a arte e
a cultura atingem seu mais alto grau de perfeição: “A arte consumada torna-se novamente
natureza". O que Kant chama de arte é a instituição jurídica, a ordem livre e racional a que o homem decide
conformar sua existência. A função suprema da educação e do direito, ambos
fundados na liberdade humana, é permitir que a natureza desabroche na cultura.
A partir desse momento (acrescentará Cassirer), os homens redescobrem o
imediato de que gozavam anteriormente em sua existência natural. O que
descobrem agora, porém, já não é apenas o imediato primitivo da sensação ou do
sentimento, mas o imediato da vontade autônoma e da consciência racional.
Aliás, desde o final do primeiro Discurso, Rousseau deixava
entrever a possibilidade de uma reconciliação: se os homens, e sobretudo os
príncipes, o quisessem, a separação poderia ser superada, uma verdadeira
comunidade poderia restabelecer-se... O mal não reside essencialmente no saber
e na arte (ou na técnica), mas na desintegração da unidade social. Constata-se,
nas circunstâncias atuais, que as artes e as ciências favorecem essa
desintegração e aceleram-na. Entretanto, nada impede que sirvam a fins
melhores. Desse modo, o propósito de Rousseau não é banir irremediavelmente as
artes e as ciências, mas restaurar a totalidade social, recorrendo ao
imperativo da virtude, a única capaz
de criar a coesão necessária:
[...] É apenas então que se verá o que podem a
virtude, a ciência e a autoridade animadas de uma nobre emulação e trabalhando
de acordo com a felicidade do gênero humano. Mas enquanto o poder estiver
sozinho de um lado, as luzes e a sabedoria sozinhas de um outro, os sábios
raramente pensarão grandes coisas, os príncipes mais raramente as farão belas,
e os povos continuarão a ser vis, corrompidos e infelizes.
O que Rousseau deplora é que o poder político e a cultura
visem a fins discordantes. Pois ele está pronto a absolver a cultura, com a
condição de que se tome parte integrante de uma totalidade harmoniosa, e não
incite mais os homens a buscar vantagens e prazeres separados. Portanto, ele
não sonha de modo nenhum com a extinção da ciência; ao contrário, aconselha
conservá-la, mas suprimindo o conflito que opõe atualmente “o poder” e
“as luzes"... Rousseau apela aos príncipes e às academias (sem
dúvida por polidez em relação à Academia de Dijon). Mas, por trás da adulação
de certas fórmulas, percebe-se nitidamente o voto de um retomo à unidade, de um
despertar da confiança, de uma comunicação reconquistada. Então, nada do que os
homens pensaram e inventaram seria rejeitado, tudo seria retomado na felicidade
de uma vida reconciliada.
STAROBINSKI,
Jean. Jean-Jacques Rousseau: A Transparência e o Obstáculo. São Paulo:
Paulinas, 1991, pp. 37-8 e 42-4.
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