segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Ética de Apel

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O A Priori da Comunidade de Comunicação e os Fundamentos da Ética: O Problema de uma Fundamentação Racional da Ética na Era da Ciência

A PARADOXALIDADE DA SITUAÇÃO-PROBLEMA

Quem reflete sobre a relação entre ciência e ética na moderna sociedade industrial planetária se defronta, a meu ver, com uma situação paradoxal. Pois, de um lado, a carência de uma ética universal, isto é, vinculadora para toda a sociedade humana, nunca foi tão premente como em nossa era, que se constitui numa civilização unitária, em função das conseqüências tecnológicas promovidas pela ciência. De outro lado, a tarefa filosófica de uma fundamentação racional de uma ética universal jamais parece ter sido tão complexa, e mesmo sem perspectiva, do que na idade da ciência. Isso porque a idéia da validez intersubjetiva é, nesta era, igualmente prejudicada pela ciência: a saber, pela idéia cientificista da “objetividade” normalmente neutra ou isenta de valoração.
Contemplemos primeiramente um lado desta situação paradoxal: a carência atual de uma ética universal (preferiria dizer: de uma macro-ética da humanidade nessa terra limitada). As conseqüências tecnológicas da ciência produziram, nos dias de hoje, uma tal extensão e alcance para as ações e omissões humanas, a ponto de não ser mais possível contentar-se com normas morais, que regulamentem a convivência humana em pequenos grupos e confiem as relações entre os grupos à luta pela sobrevivência, no sentido darwiniano. Se a hipótese dos etólogos for correta, de que já o canibalismo entre os homens pré-históricos deva ser entendido como conseqüência do machado de punho, isto é, como decorrência da perturbação (constitutiva para o homo faber) do equilíbrio entre os órgãos de agressão disponíveis e os instintos repressivos analogamente morais, então esta desproporção se ampliou desmedidamente pelo desenvolvimento moderno dos sistemas armamentistas. A isso, porém, acresce, na atualidade, que as morais de grupos, geralmente enraizadas em instituições e tradições arcaicas, já não conseguem mais compensar aquela perturbação de equilíbrio constitutiva para o homo faber. Pois não há, certamente, exemplo mais típico para o “descompasso” de setores culturais da humanidade, do que a desproporção entre a expansão de possibilidades técnico-científicas e a tendência conservadora de morais específicas de grupos.
Se, em vista das conseqüências, hoje possíveis, de ações humanas, distinguirmos entre uma microesfera (família, matrimônio, vizinhança), uma mesoesfera (patamar da política nacional) e uma macroesfera (destino da humanidade), então será facilmente demonstrável que as normas morais, atualmente eficazes entre todos os povos, ainda estão sempre predominantemente concentradas na esfera íntima (sobretudo na regulamentação das relações sexuais); já na mesoesfera da política nacional elas estão, em larga escala, reduzidas ao impulso arcaico do egoísmo grupal e da identificação grupal, enquanto as decisões propriamente políticas valem como “razão de estado” moralmente neutra. Mas, quando é atingida a macroesfera dos interesses humanos vitais, o cuidado por elas ainda parece estar confiado, primariamente, a relativamente poucos iniciados. A esta situação no setor da moral conservadora, no entanto, se contrapõe recentemente uma situação de natureza totalmente diversa, na esfera dos efeitos de ações humanas, sobretudo de seus riscos: como resultantes da expansão planetária e envolvimento internacional da civilização técnico-científica, os efeitos das ações humanas - por exemplo no âmbito da produção industrial - devem ser localizados atualmente, em larga escala, na macroesfera dos interesses vitais comuns da humanidade. A dimensão, eticamente relevante, deste fenômeno se torna ainda mais nítida se tomarmos em consideração o risco procedural, ou seja, a ameaça que paira sobre a vida humana. Se até pouco tempo atrás a guerra podia ser interpretada como instrumento de seleção biológica e, entre outros aspectos, de expansão espacial da espécie humana, através do confinamento dos eventualmente mais fracos em regiões desabitadas, esta concepção está hoje definitivamente superada pela invenção da bomba atômica: desde então o risco destruidor das ações bélicas não se restringe mais à micro ou mesoesfera de possíveis conseqüências, mas ameaça a existência da humanidade no seu todo. O mesmo se dá hoje em dia com os efeitos principais e colaterais da técnica industrial. Isso se tornou gritantemente claro nos últimos anos com a descoberta da progressiva poluição ambiental. Esta problemática ecológica dos efeitos colaterais da civilização técnica, entre outros aspectos, levantou a questão, se a opinião corrente do crescimento econômico-tecnológico não deva ser radicalmente revidada, caso a salvação da ecosfera humana ainda deva ser exitosa.
Essas poucas indicações devem ser suficientes para deixar claro que os resultados da ciência representam um desafio moral para a humanidade. A civilização técnico-científica confrontou todos os povos, raças e culturas, sem consideração de suas tradições morais grupalmente específicas e culturalmente relativas, com uma problemática ética comum a todos. Pela primeira vez, na história da espécie humana, os homens foram praticamente colocados ante  a tarefa de assumir a responsabilidade solidária pelos efeitos de suas ações em medida planetária. Deveríamos ser de opinião que, a essa compulsão por uma responsabilidade solidária, deveria corresponder a validez intersubjetiva das normas, ou pelo menos do princípio básico de uma ética da responsabilidade. - Baste isso para o primeiro aspecto da situação-problema, como ela nos é proposta pelo tema: “Ética na era da ciência”.
O segundo aspecto da situação-problema, que, como já mencionamos, o transforma em um paradoxo, se impõe ao filósofo profissional, quando ele toma um consideração a situação teorética - ou melhor: metateorética - do problema da relação entre ciência e ética. Pois esta se caracteriza pela convicção, muito difundida precisamente entre pensadores não temerosos e honrados, que a possibilidade da validez intersubjetiva de argumentos em geral vai exatamente tão longe como a possibilidade de se obter objetividade científica no âmbito das ciências formais lógico-matemáticas ou no âmbito das ciências reais empírico-analíticas. Ora, como jamais podem ser deduzidas normas ou juízos de valor, seja a partir do formalismo de conclusões lógico-matemáticas, seja a partir de conclusões induzidas de fatos, então a idéia da objetividade científica parece direcionar a pretensão da validade de normas morais ou juízos de valor para o âmbito da subjetividade descompromissada. As pretensões de validade da ética, implícita ou explicitamente defendidas em contextos cosmovidivo-ideológicos, devem - assim parece, ser reduzidas a reações irracionais. Racionalmente fundamentáveis, são, conseqüentemente, não as normas éticas como tais, mas apenas as descrições isentas de valoração das normas de moral cumpridas de fato e, respectivamente, as explicações causais ou estatísticas do surgimento de normas morais ou sistemas de valor, pelas assim ditas ciências sociais empíricas.
Estas ciências, por sua vez, às quais ainda se acrescentam, neste contexto, a História e a Antropologia Cultural, bem como a Sociologia e a Psicologia, parecem propor ainda, de sua parte, um argumento empírico adicional para a subjetividade e irracionalidade das normas de moral e dos valores, já postulada cientificamente. É que elas chegam - como se ouve com freqüência - ao juízo de fato, objetivamente válido, de que as normas de moral, aceitas ou praticamente seguidas por seres humanos, são, em alta escala, relativamente culturais ou, respectivamente, epocais, e isso quer dizer novamente: subjetivas.
Por isso parece ser plenamente conseqüente, se a filosofia profissional, que se entende científica, ultimamente abriu mão mesmo do negócio da ética, no sentido de fundamentação imediata de normas éticas, e, respectivamente, de um princípio último de normas éticas. Da ética tradicional ou filosofia prática resultou, neste contexto, a “metaética” analítica, que em geral se entende a si própria como descrição científico-teórica, não valorativa, do uso da linguagem ou das regras lógicas do assim chamado “discurso moral”. Toda filosofia que não se conforma com essa transformação, isto é, toda filosofia que procura superar a “tese da neutralidade” da metaética analítica em favor de uma fundamentação de normas morais, parece deduzir normas de fatos e, com isso, faltar contra o princípio humesiano da distinção entre o que é e o que deve ser. Dessa forma, toda ética normativa parece estar superada. Suas bases, bem como as do “direito natural”, são desmascaradas pela filosofia “científica” como dogmáticas e, respectivamente, ideológicas, e sua pretensão de validade é estigmatizada, conforme o caso, como lastimável ilusão ou como repressão autoritária e ameaça para a liberdade humana (neste último aspecto é, em todo caso, interessante o engajamento quase-moral da filosofia “científica”, que pode tornar-se uma crítica ideológica em nome do liberalismo. Voltaremos a esse aspecto). Baste isso - por enquanto - sobre o segundo aspecto da paradoxal situação-problema, com a qual nos defronta a pergunta pela relação entre ética e ciência. Uma ética universal, isto é, intersubjetivamente válida, de responsabilidade solidária, parece, de acordo com isso, ser ao mesmo tempo necessária e impossível.
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APEL, Karl-Otto. Estudos de Moral Moderna. Petrópolis: Vozes, 1996.

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