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O A Priori da Comunidade de Comunicação e os Fundamentos
da Ética: O Problema de uma Fundamentação Racional da Ética na Era da Ciência
A PARADOXALIDADE DA SITUAÇÃO-PROBLEMA
Quem reflete
sobre a relação entre ciência e ética na moderna sociedade industrial
planetária se defronta, a meu ver, com uma situação paradoxal. Pois, de um
lado, a carência de uma ética universal, isto é, vinculadora para toda a
sociedade humana, nunca foi tão premente como em nossa era, que se constitui
numa civilização unitária, em função das conseqüências tecnológicas promovidas
pela ciência. De outro lado, a tarefa filosófica de uma fundamentação racional
de uma ética universal jamais parece ter sido tão complexa, e mesmo sem
perspectiva, do que na idade da ciência. Isso porque a idéia da validez
intersubjetiva é, nesta era, igualmente prejudicada pela ciência: a saber, pela
idéia cientificista da “objetividade” normalmente neutra ou isenta de
valoração.
Contemplemos
primeiramente um lado desta situação paradoxal: a carência atual de uma ética
universal (preferiria dizer: de uma macro-ética da humanidade nessa terra
limitada). As conseqüências tecnológicas da ciência produziram, nos dias de
hoje, uma tal extensão e alcance para as ações e omissões humanas, a ponto de
não ser mais possível contentar-se com normas morais, que regulamentem a
convivência humana em pequenos grupos e confiem as relações entre os grupos à
luta pela sobrevivência, no sentido darwiniano. Se a hipótese dos etólogos for
correta, de que já o canibalismo entre os homens pré-históricos deva ser
entendido como conseqüência do machado de punho, isto é, como decorrência da
perturbação (constitutiva para o homo
faber) do equilíbrio entre os órgãos de agressão disponíveis e os instintos
repressivos analogamente morais, então esta desproporção se ampliou
desmedidamente pelo desenvolvimento moderno
dos sistemas armamentistas. A isso, porém, acresce, na atualidade, que as
morais de grupos, geralmente enraizadas em instituições e tradições arcaicas,
já não conseguem mais compensar aquela perturbação de equilíbrio constitutiva
para o homo faber. Pois não há,
certamente, exemplo mais típico para o “descompasso” de setores culturais da
humanidade, do que a desproporção entre a expansão de possibilidades técnico-científicas
e a tendência conservadora de morais específicas de grupos.
Se, em vista das
conseqüências, hoje possíveis, de ações humanas, distinguirmos entre uma
microesfera (família, matrimônio, vizinhança), uma mesoesfera (patamar da
política nacional) e uma macroesfera (destino da humanidade), então será
facilmente demonstrável que as normas morais, atualmente eficazes entre todos
os povos, ainda estão sempre predominantemente concentradas na esfera íntima
(sobretudo na regulamentação das relações sexuais); já na mesoesfera da
política nacional elas estão, em larga escala, reduzidas ao impulso arcaico do
egoísmo grupal e da identificação grupal, enquanto as decisões propriamente
políticas valem como “razão de estado” moralmente neutra. Mas, quando é atingida
a macroesfera dos interesses humanos vitais, o cuidado por elas ainda parece
estar confiado, primariamente, a relativamente poucos iniciados. A esta
situação no setor da moral conservadora, no entanto, se contrapõe recentemente
uma situação de natureza totalmente diversa, na esfera dos efeitos de ações
humanas, sobretudo de seus riscos: como resultantes da expansão planetária e
envolvimento internacional da civilização técnico-científica, os efeitos das
ações humanas - por exemplo no âmbito da produção industrial - devem ser
localizados atualmente, em larga escala, na macroesfera dos interesses vitais
comuns da humanidade. A dimensão, eticamente relevante, deste fenômeno se torna
ainda mais nítida se tomarmos em consideração o risco procedural, ou seja, a
ameaça que paira sobre a vida humana. Se até pouco tempo atrás a guerra podia
ser interpretada como instrumento de seleção biológica e, entre outros
aspectos, de expansão espacial da espécie humana, através do confinamento dos
eventualmente mais fracos em regiões desabitadas, esta concepção está hoje
definitivamente superada pela invenção da bomba atômica: desde então o risco
destruidor das ações bélicas não se restringe mais à micro ou mesoesfera de
possíveis conseqüências, mas ameaça a existência da humanidade no seu todo. O
mesmo se dá hoje em dia com os efeitos principais e colaterais da técnica
industrial. Isso se tornou gritantemente claro nos últimos anos com a
descoberta da progressiva poluição ambiental. Esta problemática ecológica dos
efeitos colaterais da civilização técnica, entre outros aspectos, levantou a
questão, se a opinião corrente do crescimento econômico-tecnológico não deva
ser radicalmente revidada, caso a salvação da ecosfera humana ainda deva ser
exitosa.
Essas poucas
indicações devem ser suficientes para deixar claro que os resultados da ciência
representam um desafio moral para a humanidade. A civilização
técnico-científica confrontou todos os povos, raças e culturas, sem
consideração de suas tradições morais grupalmente específicas e culturalmente
relativas, com uma problemática ética comum a todos. Pela primeira vez, na
história da espécie humana, os homens foram praticamente colocados ante a tarefa de assumir a responsabilidade
solidária pelos efeitos de suas ações em medida planetária. Deveríamos ser de
opinião que, a essa compulsão por uma responsabilidade solidária, deveria
corresponder a validez intersubjetiva das normas, ou pelo menos do princípio
básico de uma ética da responsabilidade. - Baste isso para o primeiro aspecto
da situação-problema, como ela nos é proposta pelo tema: “Ética na era da
ciência”.
O segundo
aspecto da situação-problema, que, como já mencionamos, o transforma em um
paradoxo, se impõe ao filósofo profissional, quando ele toma um consideração a
situação teorética - ou melhor: metateorética - do problema da relação entre
ciência e ética. Pois esta se caracteriza pela convicção, muito difundida
precisamente entre pensadores não temerosos e honrados, que a possibilidade da
validez intersubjetiva de argumentos em geral vai exatamente tão longe como a
possibilidade de se obter objetividade científica no âmbito das ciências
formais lógico-matemáticas ou no âmbito das ciências reais empírico-analíticas.
Ora, como jamais podem ser deduzidas normas ou juízos de valor, seja a partir
do formalismo de conclusões lógico-matemáticas, seja a partir de conclusões
induzidas de fatos, então a idéia da objetividade científica parece direcionar
a pretensão da validade de normas morais ou juízos de valor para o âmbito da subjetividade
descompromissada. As pretensões de validade da ética, implícita ou
explicitamente defendidas em contextos cosmovidivo-ideológicos, devem - assim
parece, ser reduzidas a reações irracionais. Racionalmente fundamentáveis, são,
conseqüentemente, não as normas éticas como tais, mas apenas as descrições
isentas de valoração das normas de moral cumpridas de fato e, respectivamente,
as explicações causais ou estatísticas do surgimento de normas morais ou
sistemas de valor, pelas assim ditas ciências sociais empíricas.
Estas ciências,
por sua vez, às quais ainda se acrescentam, neste contexto, a História e a
Antropologia Cultural, bem como a Sociologia e a Psicologia, parecem propor
ainda, de sua parte, um argumento empírico adicional para a subjetividade e
irracionalidade das normas de moral e dos valores, já postulada
cientificamente. É que elas chegam - como se ouve com freqüência - ao juízo de
fato, objetivamente válido, de que as normas de moral, aceitas ou praticamente
seguidas por seres humanos, são, em alta escala, relativamente culturais ou,
respectivamente, epocais, e isso quer dizer novamente: subjetivas.
Por isso parece
ser plenamente conseqüente, se a filosofia profissional, que se entende
científica, ultimamente abriu mão mesmo do negócio da ética, no sentido de
fundamentação imediata de normas éticas, e, respectivamente, de um princípio
último de normas éticas. Da ética tradicional ou filosofia prática resultou,
neste contexto, a “metaética” analítica, que em geral se entende a si própria como
descrição científico-teórica, não valorativa, do uso da linguagem ou das regras
lógicas do assim chamado “discurso moral”. Toda filosofia que não se conforma
com essa transformação, isto é, toda filosofia que procura superar a “tese da
neutralidade” da metaética analítica em favor de uma fundamentação de normas
morais, parece deduzir normas de fatos e, com isso, faltar contra o princípio
humesiano da distinção entre o que é e o que deve ser. Dessa forma, toda ética normativa parece estar superada.
Suas bases, bem como as do “direito natural”, são desmascaradas pela filosofia
“científica” como dogmáticas e, respectivamente, ideológicas, e sua pretensão
de validade é estigmatizada, conforme o caso, como lastimável ilusão ou como
repressão autoritária e ameaça para a liberdade humana (neste último aspecto é,
em todo caso, interessante o engajamento quase-moral da filosofia “científica”,
que pode tornar-se uma crítica ideológica em nome do liberalismo. Voltaremos a
esse aspecto). Baste isso - por enquanto - sobre o segundo aspecto da paradoxal
situação-problema, com a qual nos defronta a pergunta pela relação entre ética
e ciência. Uma ética universal, isto é, intersubjetivamente válida, de
responsabilidade solidária, parece, de acordo com isso, ser ao mesmo tempo
necessária e impossível.
(...)
APEL, Karl-Otto. Estudos
de Moral Moderna. Petrópolis: Vozes, 1996.
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