“Para uma sociedade de
produtores de mercadorias, cuja relação de produção consiste geralmente em
estar em relação com os seus próprios produtos enquanto mercadorias e,
portanto, valores, e em referir os seus próprios trabalhos privados um ao outro
desta forma objectiva como igual trabalho humano, o cristianismo, com o seu
culto do homem abstracto, e em especial no seu desenvolvimento burguês, no
protestantismo, deismo, etc., é a forma de religião mais apropriada”.
“A esfera da circulação, ou
seja, da troca de mercadorias, na qual se efectua a venda e a compra da força
de trabalho, é de facto um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem”.
(Marx,
in Emílio, IV).
A “consciência moral” consiste, para Rousseau, pai espiritual
da democracia moderna, no “sentimento da humanidade” ou amor humanitário. “O
amor dos homens”, diz ele, “derivado do amor
a si [não deve confundir-se com o particularista “amor-próprio”], é o
princípio da justiça humana”, ou seja, “é do sistema moral formado por esta dupla relação a si próprio e aos seus semelhantes que nasce o impulso da consciência”, que “torna o homem
semelhante a Deus”. A explicação desta dupla relação, que é a consciência, é a
seguinte: dado que “o amor para com o Autor
do próprio ser [...] se confunde com
este mesmo amor a si”, o amor a si e
o amor aos seus semelhantes confundem-se ou
coincidem, por sua vez; esta dupla relação deriva pois da fundamental relação
de união (amor) de cada um de nós próprios com Deus, com o universal transcendente, onde se confirma e precisa a afirmação de
que é por amor a Deus que se deve amar o próximo, isto é, o semelhante, como a si próprio. Nada menos (mas também nada mais) do que um egotismo, diríamos, religioso e, nesse sentido, moral,
apresenta-se-nos portanto na conhecida declaração rousseauiana: “Quando a força
de uma alma expansiva me identifica
com o meu semelhante, e eu me sinto, por assim dizer, nele, é para não sofrer
que quero que ele não sofra e interesso-me por ele por amor a mim próprio”.
Precisamente em nome deste egotismo sui generis - em que se articula praticamente a pessoa, ou
indivíduo-valor, enquanto pessoa originária,
ou seja, a priori, pré-social ou pré-histórica, sendo, essa pessoa,
unidade (gratuita, dogmática) do indivíduo ou particular com um universal que transcende absolutamente a história, em
lugar de unidade com o universal histórico que é o género humano –, justamente
por isso se compreende que Rousseau possa mesmo dizer que “a maior idéia que
posso conceber da Providência é que cada ser material esteja disposto da melhor
forma possível em relação ao todo, e
cada ser inteligente e sensível da melhor forma possível em relação a si próprio”; e ainda “eu digo-vos, em nome de Deus,
que a parte é maior que o todo”; e possa,
assim, aceitar plenamente o paradoxo do
individualismo abstracto, cristão, isto é, que para o indivíduo humano não vale a lei da relação do singular
com o todo, do indivíduo com o género (confrontar o seu eco kierke-gaardiano:
“O género humano tem a propriedade, precisamente porque cada um é feito à semelhança de Deus, de o singular ser mais elevado do que o género”:
Tagebücher, II).
Assim se compreende o significado moral verdadeiro,
integral, das fórmulas famosas do “homem da
natureza” e do “regresso à natureza”, porque se compreende o fundo apriorístico, platónico-cristão e romântico avant la lettre do
individualismo do Rousseau que diz pela boca do cura saboiano: “A razão
engana-nos com demasiada frequência [...], mas a consciência [isto é, o sentimento
inato do amor a si, que é o amor ao próximo, sendo amor a Deus]
nunca nos engana: quem a segue obedece à natureza
[...]. Reentramos em nós mesmos”; do
Rousseau que, ao abordar o problema da sociedade política, isto é, o problema
típico do género histórico, que é o género humano, adverte que “tudo está em
não deteriorar o homem da natureza ao
adapta-lo à sociedade”.
Mas, neste ponto, compreende-se também a dificuldade imensa
com que se defrontou o Rousseau político pelas
suas próprias premissas gerais, metafísicas e éticas; pelo axioma dogmático do homem da natureza, do indivíduo livre e independente no
sentido que lhe confere a sua consciência
originária, a priori; assim como
pelo corolário inevitável: que, ao tornar-se social-político, o homem da natureza
salve a sua específica integridade de pessoa
originária ou indivíduo investido de valor a priori, pela sua semelhança com Deus, isto é, pela sua união com
o universal transcendente, meta-histórico, que é Deus.
Uma dificuldade está já manifesta na famosa fórmula do
“problema fundamental”, de que o “contrato social” deveria ser a solução,
fórmula em que se enuncia a exigência de “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com
toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado [ou seja, tutele o direito de propriedade e
os outros direitos “naturais” conexos, racionais e puros, isto é, as pretensões
privadas absolutas da pessoa originária, pré-social, que é o homem da
natureza], e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça senão a si
próprio e permaneça livre como dantes”.
A dificuldade rousseauiana é, portanto, a de ter de fundamentar a sociedade
política, ou seja, aquele organismo histórico temporal que ela é, em elementos
tão refractários como os “imprescritíveis” direitos originários, pré-sociais,
absolutos, do homem da natureza, isto é, do indivíduo que é indivíduo-valor ou
pessoa, e por isso tem direitos, pela união com um universal ou género que
transcende a historicidade, por uma espécie de investidura extra-temporal, extra-histórica;
e não pela união com o seu género histórico:
o humano.
É certo que a tentativa de solucionar tão grande dificuldade
mediante a cláusula do “contrato”, cláusula da “alienação total de cada
associado com todos os seus direitos [naturais, originários] a toda a comunidade”, pelo que “cada um
dando-se a todos não se dá a nenhum”,
contribuiu historicamente para realizar a igualdade humanitária – isto é, de
tipo cristão – no campo do direito
“civil” ou político, com a substituição pela “lei”, como expressão da
“vontade geral” nascida do “contrato”, das “determinações”, “diplomas” e
“edictos” reais: a igualdade política
instaurada pela Revolução Francesa. Donde proveio a emancipação – política – do
homem “comum”. Mas também é certo que, tendo a “vontade geral”, que constitui o
novo “corpo político”, O seu fundamento ideológico na “consciência moral”, como
“sentimento da humanidade” ou amor humanitário, e não sendo este último nada
mais do que o egotismo religioso de
que acima se fala, em que se transforma o individualismo cristão tradicional,
deve concluir-se que a igualdade instituída por e para um tal corpo político só
pode ser justificada como aquele tipo de igualdade que aquele egotismo permite.
Ou seja: a igualdade-desigualdade que resulta do facto de se
conceber a igualdade em função da
liberdade, mas não o inverso. Não
o inverso, precisamente porque a pessoa,
com quem a liberdade coincide, é
aquele indivíduo abstracto, solitário, pré-social, pré-histórico, que é a pessoa originária, cristã, princípio e
fim daquele egotismo que é o amor humanitário (enquanto laicização
típica da caritas).
Consequentemente, uma igualdade como a descrita pode ser
quando muito uma igualdade extrínseca, formal,
abstracta e jurídica, no sentido de
que el.a é apenas a tradução “legal” ou “artificial” de pretensões ou direitos
“naturais”: em suma, a legitimação de
uma liberdade ou independência originária, extra-histórica, mítica; mas não
pode ser a igualdade intrínseca, substancial,
real, que é a igualdade social, isto
é, requerida pelo acto histórico, da convivência
que caracteriza aquele ser humano concreto, não separado do seu género;
aquela igualdade real que por si só comporta uma liberdade real enquanto
liberdade social, a qual, sendo
liberdade na e pela comunidade, é verdadeiramente
liberdade de todos.
Compreende-se assim o desequilíbrio de liberdade e de
justiça ou igualdade que atinge esta sociedade
política rousseauiana e, Por reflexo, a “democracia burguesa”. Daí aconteceu
que Rousseau ao pretender emancipar o “peuple”
emancipando aquele “roturier” ou
plebeu em que ele via particularmente incarnado o seu tipo de “homem” (comum),
isto é, o artífice, o pequeno agricultor, etc., o pequeno e médio burguês em
suma, forneceu assim as razões ideais da emancipação não de todo o povo, ou
seja, do povo simplesmente, mas
apenas da burguesia, de toda a
burguesia, pequena e grande, de uma classe somente; com base justamente (do
ponto de vista ideológico) na sua concepção fundamental do indivíduo humano
como indivíduo-valor, ou pessoa, enquanto é aquele homem da natureza, cujo carácter
absoluto ou independência originária (donde a “livre iniciativa”, etc.) é
caracter peculiar: enquanto, em concreto, homem
comum-burguês.
Compreende-se já como deveria permanecer fora deste quadro
ideológico o proletário, isto é, o
homem comum enquanto especificamente operário e, como tal, homem de massa, ou seja, homem social por excelência, em virtude de se
manifestar com ele, de modo eminente, a natureza orgânica e organizadora do
trabalho.
Concluindo acerca deste
Rousseau, parece claro que os limites ideológicos desta sua democracia se
resumem [1] na carência peculiar do princípio do “sentimento da humanidade” ou
do humanitarismo, e do implícito
conceito do homem como “homem da natureza”, ou homem-a priori, ou pessoa
originária. Aqui reside toda a justificação ideológica rousseauiana de uma
sociedade dividida em classes, e por isso ainda fragmentada por desigualdades
(que ele não podia ver): porque, se uma sociedade classista comporta em geral
uma concepção de direitos que são em
grande parte privilégios alargados,
como negar que estão destinados a ser privilégios [2] aqueles direitos que
querem ser tal enquanto deduzíveis da
dignidade originária de um indivíduo
humano abstraído – por isso – da sociedade histórica com o seu género?
Pense-se no carácter absoluto
e abstracto e, por isso, inumano que
marca, por exemplo, o direito tradicional, burguês, de “propriedade”,
justificado por via do direito natural, rousseauianamente, por um conceito apriorístico ou teológico do caracter
“sacro” da pessoa “humana”; e ter-se-á de admitir que ele é actualmente mais um
privilégio do que um direito, já que a este último lhe falta a capacidade de
ser realmente geral. E compreende-se,
porque, para o pressuposto apriorístico, não é a generalidade ou universalidade
real histórica própria do género humano que justifica aquele
pressuposto direito (de propriedade privada, etc.), mas sim a generalidade ou
universalidade irreal de um género que
transcende o humano. Donde não pode deixar de concluir-se a insuficiência
actual de toda a justificação apriorística ou teológica em sentido lato dos
valores morais (neste caso concreto). A consciência humana continua (e
continuará) a exigir direitos, mas a teologia (mesmo a mais laica) já não pode garantir senão privilégios. É a paradoxal, se se
quiser, mas já declarada e incurável impotência
axiológica – ou seja, de garantia de valores – de todo o apriorismo ou espiritualismo.
DELLA VOLPE,
Galvano. Rousseau e Marx: A Liberdade Igualitária. Lisboa: Edições 70,
1982.
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