segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Crítica do homem abstracto de Rousseau

“Para uma sociedade de produtores de mercadorias, cuja relação de produção consiste geralmente em estar em relação com os seus próprios produtos enquanto mercadorias e, portanto, valores, e em referir os seus próprios trabalhos privados um ao outro desta forma objectiva como igual trabalho humano, o cristianismo, com o seu culto do homem abstracto, e em especial no seu desenvolvimento burguês, no protestantismo, deismo, etc., é a forma de religião mais apropriada”.
“A esfera da circulação, ou seja, da troca de mercadorias, na qual se efectua a venda e a compra da força de trabalho, é de facto um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem”.
(Marx, in Emílio, IV).


A “consciência moral” consiste, para Rousseau, pai espiritual da democracia moderna, no “sentimento da humanidade” ou amor humanitário. “O amor dos homens”, diz ele, “derivado do amor a si [não deve confundir-se com o particularista “amor-próprio”], é o princípio da justiça humana”, ou seja, “é do sistema moral formado por esta dupla relação a si próprio e aos seus semelhantes que nasce o impulso da consciência”, que “torna o homem semelhante a Deus”. A explicação desta dupla relação, que é a consciência, é a seguinte: dado que “o amor para com o Autor do próprio ser [...] se confunde com este mesmo amor a si”, o amor a si e o amor aos seus semelhantes confundem-se ou coincidem, por sua vez; esta dupla relação deriva pois da fundamental relação de união (amor) de cada um de nós próprios com Deus, com o universal transcendente, onde se confirma e precisa a afirmação de que é por amor a Deus que se deve amar o próximo, isto é, o semelhante, como a si próprio. Nada menos (mas também nada mais) do que um egotismo, diríamos, religioso e, nesse sentido, moral, apresenta-se-nos portanto na conhecida declaração rousseauiana: “Quando a força de uma alma expansiva me identifica com o meu semelhante, e eu me sinto, por assim dizer, nele, é para não sofrer que quero que ele não sofra e interesso-me por ele por amor a mim próprio”.
Precisamente em nome deste egotismo sui generis - em que se articula praticamente a pessoa, ou indivíduo-valor, enquanto pessoa originária, ou seja, a priori, pré-social ou pré-histórica, sendo, essa pessoa, unidade (gratuita, dogmática) do indivíduo ou particular com um universal que transcende absolutamente a história, em lugar de unidade com o universal histórico que é o género humano –, justamente por isso se compreende que Rousseau possa mesmo dizer que “a maior idéia que posso conceber da Providência é que cada ser material esteja disposto da melhor forma possível em relação ao todo, e cada ser inteligente e sensível da melhor forma possível em relação a si próprio”; e ainda “eu digo-vos, em nome de Deus, que a parte é maior que o todo”; e possa, assim, aceitar plenamente o paradoxo do individualismo abstracto, cristão, isto é, que para o indivíduo humano não vale a lei da relação do singular com o todo, do indivíduo com o género (confrontar o seu eco kierke-gaardiano: “O género humano tem a propriedade, precisamente porque cada um é feito à semelhança de Deus, de o singular ser mais elevado do que o género”: Tagebücher, II).
Assim se compreende o significado moral verdadeiro, integral, das fórmulas famosas do “homem da natureza” e do “regresso à natureza”, porque se compreende o fundo apriorístico, platónico-cristão e romântico avant la lettre do individualismo do Rousseau que diz pela boca do cura saboiano: “A razão engana-nos com demasiada frequência [...], mas a consciência [isto é, o sentimento inato do amor a si, que é o amor ao próximo, sendo amor a Deus] nunca nos engana: quem a segue obedece à natureza [...]. Reentramos em nós mesmos”; do Rousseau que, ao abordar o problema da sociedade política, isto é, o problema típico do género histórico, que é o género humano, adverte que “tudo está em não deteriorar o homem da natureza ao adapta-lo à sociedade”.
Mas, neste ponto, compreende-se também a dificuldade imensa com que se defrontou o Rousseau político pelas suas próprias premissas gerais, metafísicas e éticas; pelo axioma dogmático do homem da natureza, do indivíduo livre e independente no sentido que lhe confere a sua consciência originária, a priori; assim como pelo corolário inevitável: que, ao tornar-se social-político, o homem da natureza salve a sua específica integridade de pessoa originária ou indivíduo investido de valor a priori, pela sua semelhança com Deus, isto é, pela sua união com o universal transcendente, meta-histórico, que é Deus.
Uma dificuldade está já manifesta na famosa fórmula do “problema fundamental”, de que o “contrato social” deveria ser a solução, fórmula em que se enuncia a exigência de “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado [ou seja, tutele o direito de propriedade e os outros direitos “naturais” conexos, racionais e puros, isto é, as pretensões privadas absolutas da pessoa originária, pré-social, que é o homem da natureza], e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça senão a si próprio e permaneça livre como dantes”. A dificuldade rousseauiana é, portanto, a de ter de fundamentar a sociedade política, ou seja, aquele organismo histórico temporal que ela é, em elementos tão refractários como os “imprescritíveis” direitos originários, pré-sociais, absolutos, do homem da natureza, isto é, do indivíduo que é indivíduo-valor ou pessoa, e por isso tem direitos, pela união com um universal ou género que transcende a historicidade, por uma espécie de investidura extra-temporal, extra-histórica; e não pela união com o seu género histórico: o humano.
É certo que a tentativa de solucionar tão grande dificuldade mediante a cláusula do “contrato”, cláusula da “alienação total de cada associado com todos os seus direitos [naturais, originários] a toda a comunidade”, pelo que “cada um dando-se a todos não se dá a nenhum”, contribuiu historicamente para realizar a igualdade humanitária – isto é, de tipo cristão – no campo do direito “civil” ou político, com a substituição pela “lei”, como expressão da “vontade geral” nascida do “contrato”, das “determinações”, “diplomas” e “edictos” reais: a igualdade política instaurada pela Revolução Francesa. Donde proveio a emancipação – política – do homem “comum”. Mas também é certo que, tendo a “vontade geral”, que constitui o novo “corpo político”, O seu fundamento ideológico na “consciência moral”, como “sentimento da humanidade” ou amor humanitário, e não sendo este último nada mais do que o egotismo religioso de que acima se fala, em que se transforma o individualismo cristão tradicional, deve concluir-se que a igualdade instituída por e para um tal corpo político só pode ser justificada como aquele tipo de igualdade que aquele egotismo permite.
Ou seja: a igualdade-desigualdade que resulta do facto de se conceber a igualdade em função da liberdade, mas não o inverso. Não o inverso, precisamente porque a pessoa, com quem a liberdade coincide, é aquele indivíduo abstracto, solitário, pré-social, pré-histórico, que é a pessoa originária, cristã, princípio e fim daquele egotismo que é o amor humanitário (enquanto laicização típica da caritas).
Consequentemente, uma igualdade como a descrita pode ser quando muito uma igualdade extrínseca, formal, abstracta e jurídica, no sentido de que el.a é apenas a tradução “legal” ou “artificial” de pretensões ou direitos “naturais”: em suma, a legitimação de uma liberdade ou independência originária, extra-histórica, mítica; mas não pode ser a igualdade intrínseca, substancial, real, que é a igualdade social, isto é, requerida pelo acto histórico, da convivência que caracteriza aquele ser humano concreto, não separado do seu género; aquela igualdade real que por si só comporta uma liberdade real enquanto liberdade social, a qual, sendo liberdade na e pela comunidade, é verdadeiramente liberdade de todos.
Compreende-se assim o desequilíbrio de liberdade e de justiça ou igualdade que atinge esta sociedade política rousseauiana e, Por reflexo, a “democracia burguesa”. Daí aconteceu que Rousseau ao pretender emancipar o “peuple” emancipando aquele “roturier” ou plebeu em que ele via particularmente incarnado o seu tipo de “homem” (comum), isto é, o artífice, o pequeno agricultor, etc., o pequeno e médio burguês em suma, forneceu assim as razões ideais da emancipação não de todo o povo, ou seja, do povo simplesmente, mas apenas da burguesia, de toda a burguesia, pequena e grande, de uma classe somente; com base justamente (do ponto de vista ideológico) na sua concepção fundamental do indivíduo humano como indivíduo-valor, ou pessoa, enquanto é aquele homem da natureza, cujo carácter absoluto ou independência originária (donde a “livre iniciativa”, etc.) é caracter peculiar: enquanto, em concreto, homem comum-burguês.
Compreende-se já como deveria permanecer fora deste quadro ideológico o proletário, isto é, o homem comum enquanto especificamente operário e, como tal, homem de massa, ou seja, homem social por excelência, em virtude de se manifestar com ele, de modo eminente, a natureza orgânica e organizadora do trabalho.
Concluindo acerca deste Rousseau, parece claro que os limites ideológicos desta sua democracia se resumem [1] na carência peculiar do princípio do “sentimento da humanidade” ou do humanitarismo, e do implícito conceito do homem como “homem da natureza”, ou homem-a priori, ou pessoa originária. Aqui reside toda a justificação ideológica rousseauiana de uma sociedade dividida em classes, e por isso ainda fragmentada por desigualdades (que ele não podia ver): porque, se uma sociedade classista comporta em geral uma concepção de direitos que são em grande parte privilégios alargados, como negar que estão destinados a ser privilégios [2] aqueles direitos que querem ser tal enquanto deduzíveis da dignidade originária de um indivíduo humano abstraído – por isso – da sociedade histórica com o seu género?
Pense-se no carácter absoluto e abstracto e, por isso, inumano que marca, por exemplo, o direito tradicional, burguês, de “propriedade”, justificado por via do direito natural, rousseauianamente, por um conceito apriorístico ou teológico do caracter “sacro” da pessoa “humana”; e ter-se-á de admitir que ele é actualmente mais um privilégio do que um direito, já que a este último lhe falta a capacidade de ser realmente geral. E compreende-se, porque, para o pressuposto apriorístico, não é a generalidade ou universalidade real histórica própria do género humano que justifica aquele pressuposto direito (de propriedade privada, etc.), mas sim a generalidade ou universalidade irreal de um género que transcende o humano. Donde não pode deixar de concluir-se a insuficiência actual de toda a justificação apriorística ou teológica em sentido lato dos valores morais (neste caso concreto). A consciência humana continua (e continuará) a exigir direitos, mas a teologia (mesmo a mais laica) não pode garantir senão privilégios. É a paradoxal, se se quiser, mas já declarada e incurável impotência axiológica – ou seja, de garantia de valores – de todo o apriorismo ou espiritualismo.


DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: A Liberdade Igualitária. Lisboa: Edições 70, 1982. 

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