Quaisquer
que sejam as interpretações históricas da Bíblia (Gênesis, 4, 1:24), em
nada são elas afetadas pelas significações simbólicas que o tema implica.
Noutras palavras, o fato de que também se vejam símbolos no drama que é
descrito nesse capítulo bíblico não exclui, em princípio, a existência do
acontecimento; significa apenas dar-lhe uma dimensão que ultrapassa sua
contingência. E mesmo que o acontecimento não se tenha produzido exatamente
como a Bíblia o apresenta, seu simbolismo permanece. Luc Estang discerniu de
maneira notável os valores em Le jour de
Caïn (Paris, 1967).
De
acordo com o próprio Gênesis, Caim é o primeiro homem nascido do homem e da
mulher; é o primeiro lavrador; o primeiro sacrificador cuja oferenda não é bem
recebida por Deus; o primeiro assassino; o revelador da morte; jamais se havia
visto, antes de seu fratricídio, o rosto de um homem morto. Caim é o primeiro errante à procura de uma terra fértil e
o primeiro construtor de cidade. Ele é também o homem marcado por Deus, “a fim de que não fosse morto por quem o
encontrasse”. E é o primeiro homem a retirar-se da presença de Jeová e partir, numa infinda caminhada, em direção
ao sol levante.
A
aventura é de uma grandeza inigualável: é a aventura do homem entregue a si
mesmo, assumindo todos os riscos da existência e todas as conseqüências de seus
atos. Caim é o símbolo da responsabilidade
humana.
Seu
nome significa posse; sua mãe
chamou-o de Caim porque ele foi sua primeira aquisição de um homem, o primeiro
nascimento humano. Mas a posse com a qual ele próprio sonhou foi a posse da
terra e, a fim de possuir o resto. Tu me
tiveste segundo o desejo e com a assistência de Deus, diz ele à sua mãe. Muito cedo compreendi que ele em nada me
ajudaria, e que eu não poder contar senão com minha própria vontade. Sabei,
todos vós, que eu tive de conquistar por mim mesmo tudo o que vós me atribuís:
o ardor e a rudeza, a força e a obstinação (Luc Estang, 88).
Ele
deseja acrescentar à terra de Deus o fruto do trabalho do homem, a fim de ser
verdadeiramente o senhor de seus atos:
Sonhei em reconciliar a terra com Deus
(84). Deseja construir uma cidade que será uma manifestação ainda melhor dos
feitos humanos do que a terra cultivada. Eu
via a cidade como uma outra lavoura, como uma outra semeadura, como uma nova
messe. Que estou a dizer! Era como um despertar da terra para fora de si mesma,
era, na verdade, sua elevação vertical à imagem do homem, pelo homem, que assim
estabelecia sua própria soberania... Suas muralhas teriam circunscrito o espaço
onde eu nada esperava dele (de Deus) (112-113). A cidade, prolegômeno de todo
futuro ateísmo.
Mas
o Deus não aceitava de bom grado os sacrifícios do lavrador e desse sonhador de
cidades. Por quê? Caim não podia aceitar ser
o mal-amado de Deus. Estava pronto para qualquer renúncia, se ele, de início, não tivesse aceitado. Por
pouco amável que eu fosse, era dessa maneira que me importava ser amado.
Depois, não me teria custado nada satisfazê-lo. Rejeitado, porém, endureci-me
na provocação, quando um único olhar dele me tria enternecido (41).
Além
do mais, Deus não recompensava seu encarniçado trabalho. Que me compreendam bem, diz Caim, o que eu deplorava não era o fato de
que Abel tivesse tantas vantagens, mas som que eu não tivesse nenhuma... O Deus
permaneceu insensível ao meu sacrifício, surdo à minha queixa (82-92).
Então Caim se revoltou, não só por ele, mas
pro todos nós. Por todos aqueles que não aceitam esse mistério de predestinação, que divide os homens em rejeitados e
eleitos, todos aqueles que não compreendem o desprezo de Deus pelas grandezas terrenas e sua predileção pelos
humildes. É contra essa ordem de
Deus que ele se revolta quando abre com uma pedra afiada a garganta de Abel, o favorito do céu. Mas é possível que o
segredo dessa atitude de Deus para com ele se explique pelo fato de que a
oferenda de Caim não era total, pois ele atribuía a si próprio parte de seu
trabalho, sem reconhecer que até mesmo essa parte ele devia a Deus. E assim,
com ciúme do irmão, orgulhoso de seu trabalho e revoltado contra Deus, Caim
matou, afirmou o valor próprio de seu esforço, renunciou a Deus.
Daí
por diante, é condenado à condição de errante, de quem parte em busca de um
futuro a ser indefinidamente construído: Partiremos
para o deserto dos homens, e que os homens, inumeravelmente, povoarão. Nós nos guiaremos
pela aurora sempre renovada... E será por não nos determos em parte alguma que
estaremos sempre em toda parte. Nossa vida errante nos permitirá medir a terra
e, ao mesmo tempo, nós a edificaremos (125). Caim parte, em busca do devenir do homem fora da presença de Jeová
(126).
Entretanto,
foi-lhe preciso matar o irmão – um outro aspecto de si mesmo – e precipitar a
hora da morte. A fim de liberar-se, chegou ao extremo do crime. A morte é ser obrigado a dormir sem jamais poder
despertar(24). Ele a impôs brutalmente, diante dos olhos da primeira das
mães: Temor antigo, castigo misterioso, ó
morte! eis-te pois revelada! Tens o rosto de todos nós, sob a máscara de Abel,
e por tua causa nós não nos diferenciamos dos animais (25). No sentir de
Adão e Eva, a morte é o último fruto da árvore da sabedoria; diante dos
despojos de Abel, Adão exclamará: aqui,
neste instante, nós esgotaremos o sabor do fruto da sabedoria; mas do que nunca
ele é amargo (53). Entretanto, ele dirá a Eva: Fomos nós que transmitimos o gérmen da morte ao corpo de Abel – Então,
transmitir a vida não passa de mera vaidade! replicará Eva, no auge da
revolta (55). Ah! É como se ele tivesse
aberto em mim uma brecha: meus filhos jamais terminarão de matar-se uns aos
outros (74). Todavia, Temec, procurando justificar seu marido Caim, diz: Que triunfe a vida, ainda que o preço seja a
morte (57).
É
verdade que a morte inelutavelmente haveria de sobrevir, portanto era o castigo
do pecado original. O erro de Caim foi, na realidade, o de ter-se adiantado aos desígnios de Jeová. Ele
acrescentou novo mal ao mal cujo castigo é a morte (77). Caim foi o iniciador da morte.
Daí
por diante, sobre a fronte de Caim, e de todo homem, todos poderão ler: Perigo de morte! Embora devam perceber
também, nessa advertência, o signo protetor que designa a criatura de Deus –
não um estigma infamante, mas a marca do filho de Adão. O signo que me reprova me protege, diz Caim. Na verdade, o Deus
concede-me a graça de que meu crime intimide os vingadores, porque o crime
deles contra mim terá de ser expiado sete vezes! Misericórdia, ao preço de um
castigo pesado demais (50). Agora, o homem, segundo Caim, não afronta nada
mais de Deus a não ser a ausência. Resta-lhe, porém, sua própria presença de
homem a afrontar. Como relembra Temec, a impiedosa esposa: Tua própria presença, Caim! Doravante, na sucessão dos homens: Caim
presente em cada um deles. No espelho de sua consciência, todo homem
refletirá os traços de um Caim. Como disse Adão: Meu filho Caim é essa segunda parte de mim mesmo, que não acabava mais
de se projetar. Vós que o seguis, sabei-o: sois o enxame de minhas ilusões
(126).
Se
se quisesse encontrar, forçosamente, uma comparação na tradição grega,
poder-se-ia pensar no mito de Prometeu, que desejou conquistar para a
humanidade um poder divino; liberá-la de uma dependência total, atribuindo-lhe
o fogo, princípio de todas as mutações futuras, quer seja o fogo do espírito,
quer seja o fogo da matéria. Tal como Prometeu, Caim é o símbolo do homem que reivindica sua parte na obra da criação.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p.162-164.
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