(...)
O real deve ser descrito, não construído ou constituído. Isso quer dizer
que não posso assimilar a percepção às sínteses que são da ordem do juízo, dos
atos ou da predicação. A cada momento, meu campo perceptivo é preenchido de
reflexos, de estalidos, de impressões táteis fugazes que não posso ligar de
maneira precisa ao contexto percebido e que, todavia, eu situo imediatamente no
mundo, sem confundi-los nunca com minhas divagações. A cada instante também eu
fantasio acerca de coisas, imagino objetos ou pessoas cuja presença aqui não é
incompatível com o contexto, e todavia eles não se misturam ao mundo, eles
estão adiante do mundo, no teatro do imaginário. Se a realidade de minha
percepção só estivesse fundada na coerência intrínseca das “representações”,
ela deveria ser sempre hesitante e, abandonado às minhas conjecturas prováveis,
eu deveria a cada momento desfazer sínteses ilusórias e reintegrar ao real
fenômenos aberrantes que primeiramente eu teria excluído dele. Não é nada
disso. O real é um tecido sólido, ele não espera nossos juízos para anexar a
si os fenômenos mais aberrantes, nem para rejeitar nossas imaginações mais
verossímeis. A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato,
uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se
destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual possuo
comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus
pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não “habita”
apenas o “homem interior”, ou, antes, não existe homem interior, o homem
está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a partir
do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, encontro não um foco
de verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo.
(...)
Merlau-Ponty, Maurice. Fenomenologia
da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p.5-6.
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