A posição da terceira Crítica em relação às duas anteriores
A Critica da razão
pura ocupou-se da faculdade teórica, ou seja, do aspecto cognoscitivo da
razão humana, concluindo que a esfera por ela dominada é a da experiência (real
ou possível), que é a esfera dos fenômenos. O intelecto humano impõe a lei aos
fenômenos e estes, regulados pelas leis do intelecto, constituem a natureza.
Essa natureza é caracterizada pela causalidade mecânica e pela necessidade, que
é a necessidade mesma que lhe imprime o intelecto, como se viu amplamente.
Já a Crítica da razão
prática tratou de um tipo diverso de legislação, caracterizada pela liberdade. Tal legislação, porém, não se
explica em um âmbito teórico, mas prático, como também vimos.
Portanto, o domínio da razão pura não pode de modo algum nos
representar seus objetos como coisas em si, mas somente como fenômenos; já o
domínio prático pode nos representar seus próprios objetos como coisas em si
(supra-sensíveis), mas não pode conhecê-los teoricamente. Às coisas em si e aos
númenos só podemos dar realidade prática.
E evidente que essa “ruptura” entre “fenômeno” e “númeno” devia
atormentar Kant, ainda mais que a) já na primeira Crítica, ele havia admitido (embora com uma série de cautelas e
distinções) que a coisa em si é o substrato numênico do fenômeno (sendo
pensável, ainda que não cognoscível) e b) na segunda Crítica, havia admitido o acesso por via prático-moral ao mundo das
coisas em si e dos númenos.
Na Crítica do juízo,
ele se propõe então a tarefa de tentar uma mediação entre os dois mundos e, de
certa forma, captar a sua unidade, embora reafirmando firmemente que essa
mediação não poderá ser de caráter “cognoscitivo” e “teórico”.
Eis as afirmações programáticas de Kant: “Ora, embora exista
um abismo imensurável entre o domínio do conceito de natureza ou o sensível e o
domínio do conceito de liberdade ou o supra-sensível, de modo que não é
possível nenhuma passagem do primeiro para o segundo (através do uso teórico da
razão), como se fossem dois mundos tão diversos que o primeiro não possa ter
qualquer influência sobre o segundo. Entretanto, o segundo deve ter uma
influência sobre o primeiro, isto é, o conceito da liberdade deve realizar no
mundo sensível o objetivo proposto através de suas leis e, conseqüentemente, a
natureza deve poder ser pensada de modo que a conformidade às leis que
constituem a sua forma possa pelo menos se harmonizar com a possibilidade dos
objetivos, que devem se concretizar nela segundo as leis da liberdade. Desse
modo, deve haver um fundamento da unidade entre o supra-sensível que é o
fundamento da natureza e aquilo que o conceito da liberdade contém
praticamente, um fundamento cujo
conceito, na verdade, é insuficiente para dar seu conhecimento, tanto teórica
como praticamente, não tendo portanto nenhum domínio próprio, mas que, apesar
disso, permite a passagem do modo de pensar segundo os princípios de um ao modo
de pensar segundo os princípios do outro”.
Esse fundamento é uma terceira faculdade, que Kant
identifica como intermediária entre o intelecto (= faculdade cognoscitiva) e a
razão (= faculdade prática) e que chama de faculdade
do juízo, que se revela estreitamente vinculado com o sentimento puro.
Para compreender a nova Crítica,
é necessário esclarecer bem o novo significado
e “juízo” e estabelecer com exatidão em que ele se diferencia do “juízo”
teórico de que fala a Crítica da razão
pura.
"Juízo determinante” e “juízo reflexivo"
Segundo Kant, o juízo em geral é a faculdade de assumir o “particular”
no “universal", ou seja, a faculdade de pensar o particular contido no
universal. Ora, a esse respeito, dois casos são possíveis.
1) No
primeiro caso, podem se dar tanto o “particular” como o “universal”. Nesse
caso, o juízo que opera a adoção do particular (já dado) pelo universal (também
já dado) é determinante. Todos os
juízos da Crítica da razão pura são determinantes, porque são dados tanto o
particular (o múltiplo sensível) como o universal (as categorias e os princípios a
priori). Kant chama esse juízo de “determinante” porque ele determina
teoricamente o objeto (o constitui como objeto, como já vimos).
2) Ou
então, no segundo caso, pode ser dado só o
“particular", devendo o “universal” ser procurado. E é precisamente o juízo que deve procurá-lo. Nesse caso, o juízo se chama “reflexivo”. E chama-se “reflexivo”
porque esse “universal que se deve encontrar” não é uma lei a priori do
intelecto, mas, diz Kant, deriva de um “princípio da reflexão sobre objetos para os quais, objetivamente, nos falta em
absoluto uma lei” (Note-se que, aqui, “reflexão” assume sentido, não genérico,
mas técnico: para Kant, “reflexão” significa comparar e conjugar representações
entre si e coloca-las em relação com as nossas faculdades do conhecimento.)
Como veremos, esse princípio “universal” da reflexão é
diferente do universal do intelecto e é análogo ao das Idéias da razão: ele consiste na Idéia de finalidade.
Note-se, ademais, que, enquanto no juízo determinante os
dados particulares são os fornecidos pela sensibilidade e, portanto, são dados
informes que são “enformados” pelas categorias, no juízo reflexivo os dados são
constituídos pelos objetos já determinados pelo “juízo determinante” ou
teórico. Assim, podemos fizer que o “juízo reflexivo” reflete sobre esses
objetos já teoricamente determinados (sobre as representações desses objetos) a
fim de “encontrar” e “recuperar” a concordância entre si e com o sujeito (com
as suas faculdades cognoscitivas e com as suas exigência morais,
particularmente com a liberdade). No juízo reflexivo, nós captamos as coisas
como em harmonia umas com as outras e também em harmonia conosco.
Como dissemos, o universal próprio do juízo reflexivo não é
de natureza lógica, porquanto se trata de um universal que, muito mais, corresponde às Idéias da razão e ao seu uso
normativo. Com efeito, nos simples juízos reflexivos, para poder remontar
do particular ao universal que deve ser “encontrado” (ou seja, para encontrar a
unidade sob a qual reunir os vários objetos e os vários casos), temos
necessidade de um princípio-guia a priori, que, segundo Kant, outra coisa não é
senão a hipótese da finalidade da
natureza em seus múltiplos casos e manifestações, ou melhor, a consideração
da natureza e de tudo o que nela foi deixado indeterminado pelo nosso intelecto
“segundo uma unidade que possa ter sido estabelecida por um intelecto (ainda
que não o nosso)", precisa Kant, ou seja, segundo uma unidade “que possa
ter sido estabelecida por um intelecto divino”. E evidente que, considerada
desse ponto de vista, vale dizer, como a realização do projeto de uma mente
divina, toda a realidade da natureza, particularmente todos os acontecimentos
que nos aparecem como contingentes, manifestam-se então sob uma luz
completamente diferente, ou seja, à luz de um objetivo e de um fim.
Desse modo, o conceito de fim, que fora excluído da Razão
pura, ingressa na filosofia kantiana nessa fórmula complicadíssima do “juízo
reflexivo", aliás bastante sugestiva. O conceito de “fim” não é um
conceito teórico, como já recordamos, mas algo que se radica em uma necessidade
e em uma instância estrutural da sujeito. Entretanto, embora dentro desses
limites, o juízo reflexiva “fornece o conceito intermediário entre o conceito
da natureza e o da liberdade”. Concebida
“teleologicamente", a natureza se harmoniza com a “finalidade moral",
porque a finalidade faz a natureza perder a sua rigidez mecanicista e torna
possível a sua harmonização com a liberdade.
Mas nós podemos “encontrar” o finalismo na natureza de dois
modos diferentes, ainda que conjugados entre si: a) refletindo sobre a beleza ou então b)refletindo sobre o ordenamento da natureza. Daí a distinção
kantiana de dois tipos de “juízo reflexivo": a) o juízo estético e b) o
juízo teleológico, que agora examinaremos.
O juízo estético
A existência de juízos estéticos é um dado de fato evidente
por si só. Mas, diante da existência do juízo estético, colocam-se dois
problemas: 1) em primeiro lugar, o de estabelecer o que seja propriamente o belo que nele se manifesta; 2) em
segundo lugar, o de remontar ao fundamento que o torna possível.
E eis a solução kantiana para esses dois problemas.
1) Para
Kant, o belo, obviamente, não pode ser uma propriedade objetiva das coisas (o
belo ontológico), mas sim algo que nasce da relação entre o objeto e o sujeito.
Mais precisamente, é aquela propriedade que nasce da relação dos objetos
comparados com o nosso sentimento de
prazer e que nós atribuímos aos
próprios objetos. A imagem do objeto
referida ao sentimento do prazer,
comparada a este e por este avaliada dá lugar ao juízo de gosto. Esse juízo não
é cognoscitivo, porque o sentimento não é um conceito e, portanto, os juízos de
gosto não são juízos teóricos. Belo, portanto, é aquilo que agrada segundo o
juízo de gosto, o que implica em quatro características (que Kant deduz das quatro
classes de categorias).
a) Belo
é o objeto de “prazer sem interesse”. Falar de prazer sem interesse significa
falar de prazer que não está ligado ao grosseiro prazer dos sentidos e que não
está ligado sequer ao útil econômico ou ao bem moral.
b) Belo
é “aquilo que agrada universalmente, sem conceito”. O prazer do bem é
universal, porque vale para todos os
homens e, portanto, se distingue dos gostos individuais; entretanto, essa
universalidade não é de caráter conceitual e cognoscitivo. Trata-se portanto de
uma universalidade “subjetiva", no sentido de que Vale para cada sujeito
(referida que é ao sentimento de cada um).
c) "A
beleza é a forma da finalidade de um
objeto, enquanto é percebido sem a representação de objetivo”. G. de Ruggiero
explica muito bem essa característica no seguinte texto: “O belo nos dá uma
impressão de ordem e de harmonia, isto é, de um fim para o qual estão voltados
os elementos do objeto representado. Mas, se analisarmos essa impressão,
veremos que nenhum fim determinado e particular pode nos dar razão. Não é o fim
egoísta da satisfação de uma nossa necessidade, pois sentimos que o prazer da
beleza é desinteressado. Não é o fim utilitário, pelo qual o belo estada
subordinado a alguma coisa, pois sentimos que o belo é tal em si mesmo e não a
serviço de outro. Não é o fim de uma perfeição intrínseca, ética e lógica, pois
a essa nós chegamos através de uma reflexão conceitual, ao passo que o belo
agrada imediatamente. Excluindo-se assim qualquer fim determinado, resta a
própria idéia da finalidade, em seu aspecto formal e subjetivo, como idéia de uma concordância quase
intencional de partes em um todo harmônico. Essa característica pode ser
mais bem entendida quando consideramos a relação entre o belo da natureza, de
que se fala, com o belo na arte. Diante do belo da natureza, nós percebemos
como que a presença de um desígnio intencional pelo qual o objeto belo se nos
configura como obra de arte. Ao contrário diante de uma obra de arte, que segue
um desígnio intencional, nós sentimos que ela é verdadeiramente bela quando
aquela intencionalidade se oblitera e o objeto parece uma criação espontânea da
natureza. Reunindo as duas qualidades, que parecem em contraste, mas são
convergentes, podemos dizer que no belo, da natureza ou da arte, é preciso que
exista e não exista fim, ou seja, exista como se não existisse, isto é, que a
intencionalidade e a espontaneidade estejam fundidas de tal maneira que a
natureza pareça arte e a arte pareça natureza".
d) "O
belo é aquilo que é reconhecido, sem conceito, como objeto de prazer necessário.” Trata-se, obviamente (como
também no caso da universalidade), não de uma necessidade lógica, mas sim subjetiva, no sentido de que se trata de
algo que se impõe a todos os homens.
2) Resolvido
o primeiro problema, vejamos o segundo: qual é o fundamento do juízo
(reflexivo) estético? O fundamento do juízo estético é o “livre jogo e harmonia
das nossas faculdades espirituais” (a harmonia entre a representação e o nosso
intelecto, entre a fantasia e o intelecto) que o objeto produz no sujeito. O
juízo de gosto, portanto, é o efeito desse livre jogo das faculdades
cognoscitivas. São compreensíveis, portanto, as conclusões de Kant: “Esse juízo
puramente subjetivo (estético) do objeto ou da representação com que ele nos é
dado precede o prazer pelo objeto e é o fundamento
desse prazer pela harmonia das
faculdades do conhecer: mas só se funda na universalidade das condições
subjetivos no juízo dos objetos essa
validade subjetiva universal do prazer que nós ligamos à representação do
objeto que chamamos belo'.
A concepção do sublime
O sublime é afim ao belo, porque também agrada “por si mesmo”
e, do mesmo modo, pressupõe um “juízo de reflexão", A diferença está no
fato de que o belo diz respeito à forma do objeto e a forma é caracterizada pela
limitação (de-terminação), ao passo que o sublime também diz respeito àquilo
que é informe e que, enquanto tal, implica a representação do ilimitado.
Ademais, o belo produz um prazer positivo, enquanto o sublime produz um prazer
negativo (por vezes, Kant chega a dizer que produz um sentimento de desprazer).
Escreve Kant: “O sublime não pode se unir a algo atrativo; e, como o espírito
não é simplesmente atraído pelo objeto, mas alternadamente atraído e repelido,
o prazer do sublime não é tanto uma alegria positiva, mas muito mais um
contínuo maravilhamento e estima, isto é, merece ser chamado um prazer negativo”.
E, por fim, o espírito tende à comoção ao se representar o sublime, ao passo
que, representando-se o belo, “goza de calma contemplação".
Mas o sublime não está
nas coisas e sim no homem. O sublime é de duas espécies: matemático e
dinâmico; o primeiro é dado pelo infinitamente grande e o segundo pelo
infinitamente potente, Diante do imensamente grande (oceano, céu etc.) ou do
imensamente potente (terremotos, vulcões etc.) o homem, por um lado, se
descobre pequeno e se sente esmagado, mas, por outro lado, descobre ser
superior àquele imensamente grande ou potente de caráter físico (oceano, céu,
terremotos e vulcões são fenômenos físicos), dado que leva em si as Idéias da
razão, que são Idéias da totalidade absoluta, que superam aquilo que, à
primeira vista, parecia superar o próprio homem.
Eis as eloqüentes palavras de Kant: “O verdadeiro sublime
não pode estar contido em alguma forma sensível, mas diz respeito somente às
Idéias da razão, as quais, embora nenhuma exibição lhes possa ser adequada,
aliás, precisamente por tal desproporção que
se pode exibir sensivelmente, são
evocadas e despertadas em nosso espírito. Assim, o imenso oceano erguido
pela tempestade não pode ser chamado de sublime: a sua visão é terrível. E é
preciso que o espírito já tenha sido preenchido por tais idéias se, através de
tal intuição, deve ser determinado a um sentimento, que é ele próprio sublime, enquanto o espírito é levado a abandonar a
sensibilidade e se ocupar de Idéias que contém uma finalidade superior”. Em
conclusão, a definição mais apropriada de sublime é a seguinte: “Sublime é
aquilo que, pelo falo mesmo de poder só pensa-lo, atesta uma faculdade de
espírito superior a toda medida dos sentidos."
O juízo teleológico e as conclusões da Crítica do juízo
A finalidade do juízo estético é uma finalidade “sem
objetivo", como vimos, isto é, uma finalidade para o sujeito (o objeto parece feito de propósito para o sujeito, a fim de pôr
harmonicamente em movimento as suas faculdades). No juízo teleológico, ao
contrário, considera-se a finalidade da natureza, que Kant recupera,
precisamente, ao nível do “juízo reflexivo".
Essa é a parte mais atormentada da terceira Crítica, porque muitas considerações de
Kant o levariam a conclusões metafísicas, que ele, no entanto, repele por causa
dos preconceitos que carrega desde a primeira Crítica.
As conclusões do filósofo são as que se seguem.
Nós não sabemos como a natureza é em si mesma (considerada
numenicamente), já que só a conhecemos fenomenicamente. Entretanto, nós não
podemos deixar de considerá-la como organizada finalisticamente, dado que em nós há uma tendência irrefreável
a considerá-la desse modo.
Aliás, Kant admite inclusive que alguns produtos da natureza
física (os organismos) não podem ser explicados segundo leis puramente
mecânicas, exigindo “uma lei de causalidade inteiramente diferente", isto
é, a causalidade finalística.
Entretanto, não é possível a extensão do finalismo a toda a natureza, do ponto de vista
cognoscitivo, pelas razões que já vimos (deveríamos ter um intelecto intuitivo
e poder construir uma metafísica como ciência). Kant encontra a solução (não
sem ter que forçar um pouco) precisamente graças ao juízo teleológico entendido como simples “juízo reflexivo”.
As seguintes palavras de Kant resumem claramente a sua
posição: “Há uma diferença absoluta entre dizer que a produção de certas coisas
da natureza ou até de toda a natureza não é possível senão através de uma causa
que se determina a agir intencionalmente e fizer que, segundo a natureza particular de minha faculdade cognoscitiva, eu não
posso julgar da possibilidade daquelas coisas e de sua produção senão pensando
uma causa que age intencionalmente e, portanto, um ser que produz analogamente
à causalidade de um intelecto. No primeiro caso, quero afirmar algo do
objeto e sou levado a demonstrar a realidade objetiva de um conceito que eu
admito; no segundo, a razão nada mais faz do que determinar o uso de minhas
faculdades cognoscitivas, em conformidade com a sua natureza e com as condições
essenciais de sua dimensão e dos seus limites. De modo que o primeiro é um
principio objetivo pelo juízo determinante e o segundo um princípio subjetivo que serve simplesmente pelo juízo
reflexivo e, portanto, uma máxima que lhe é atribuída pela razão.” .
Entretanto, Kant reconhece expressamente que a consideração
teleológica tem uso normativo e até eurístico,
ou seja, válido “para investigar as leis particulares da natureza”.
Mas a conclusão da Crítica
do juízo é que, vista pela ótica do juízo reflexivo, a realização do fim
moral do homem é o objetivo da natureza e que “segundo os princípios da razão,
existem motivos suficientes (...) para que o juízo reflexivo considere o homem
não somente como fim da natureza, como todos os seres organizados, mas também como objetivo da natureza sobre a
terra, de modo que, em relação a ele, todas as outras coisas naturais
constituem um sistema de fins”. Sem o homem, o mundo seria um deserto
vazio. E só a “boa vontade” constitui um objetivo último.
Essa foi a obra que teve maior influência sobre os
contemporâneos de Kant e também sobre a geração seguinte: para Goethe, para
Schiller e para os poetas românticos, Kant foi sobretudo o autor da terceira Crítica.
Conclusões: “o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim” como marca espiritual de Kant como homem e pensador
Já acenamos à afirmação simbólica de Kant segundo a qual as
duas coisas que mais o enchiam de admiração eram o céu estrelado e a lei moral.
Agora, como conclusão, é tempo de ler essa passagem na íntegra:
"Duas coisas enchem-me o espírito de admiração e
reverência sempre novas e crescentes, quanto mais freqüente e longamente o
pensamento nelas se detém: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim.
Não tenho que buscar essas duas coisas fora do alcance da minha vista,
envolvidas em obscuridade, ou no transcendente. Nem devo, simplesmente,
presumi-las. Eu as vejo diante de mim e as vinculo imediatamente à consciência
da minha existência. A primeira começa do lugar que ocupo no mundo sensível
externo e estende a conexão em que me encontro a grandezas imensuráveis, com
mundos sobre mundos e sistemas de sistemas e, além disso, aos tempos sem
fronteiras do seu movimento periódico, do seu início e da sua duração. A
segunda parte do meu Eu invisível, da minha personalidade, representando-me em
um mundo que tem uma infinitude verdadeira, mas que só é perceptível pelo
intelecto, com o qual (mas, por isso e ao mesmo tempo, com todos aqueles mundos
visíveis) me reconheço em uma conexão não simplesmente acidental, como no
primeiro caso, mas universal e necessária. A primeira visão, de um conjunto
inumerável de mundos, aniquila, por assim dizer, a minha importância de criatura
animal, que deverá restituir a matéria de que é feita ao planeta (um simples
ponto no universo), depois de ter sido dotada por breve tempo (não se sabe
como) de força vital. A segunda, ao contrário, eleva infinitamente o meu valor,
como valor de uma inteligência, graças à minha personalidade, na qual a lei
moral me revela uma vida independente da animalidade e até mesmo de todo o
mundo sensível, pelo menos por aquilo que se pode deduzir da destinação final
de minha existência em virtude dessa lei, destinação que não se limita às
condições e às fronteiras desta vida, mas que vai até o infinito."
E assim, para Kant, o homem, que na Razão pura revelou-se fenomênico, finito, mas dotado (como razão)
de estrutural abertura para o infinito (as
Idéias) e de uma necessidade irrefreável de infinito, agora na Razão prática (da qual foi extraída essa
passagem) revela-se também efetivamente
destinado ao infinito.
O destino do homem, portanto, é o infinito.
Com essas posições, nos preparamos para transcender os
horizontes do iluminismo e chegamos aos umbrais do romantismo, que, em sua
poesia e em sua filosofia, estará todo voltado precisamente para o infinito.
REALE,
Giovanni & ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do Humanismo a Kant –
vol.2. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 924-932.
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