segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

A Crítica do Juízo

A posição da terceira Crítica em relação às duas anteriores

A Critica da razão pura ocupou-se da faculdade teórica, ou seja, do aspecto cognoscitivo da razão humana, concluindo que a esfera por ela dominada é a da experiência (real ou possível), que é a esfera dos fenômenos. O intelecto humano impõe a lei aos fenômenos e estes, regulados pelas leis do intelecto, constituem a natureza. Essa natureza é caracterizada pela causalidade mecânica e pela necessidade, que é a necessidade mesma que lhe imprime o intelecto, como se viu amplamente.
Já a Crítica da razão prática tratou de um tipo diverso de legislação, caracterizada pela liberdade. Tal legislação, porém, não se explica em um âmbito teórico, mas prático, como também vimos.
Portanto, o domínio da razão pura não pode de modo algum nos representar seus objetos como coisas em si, mas somente como fenômenos; já o domínio prático pode nos representar seus próprios objetos como coisas em si (supra-sensíveis), mas não pode conhecê-los teoricamente. Às coisas em si e aos númenos só podemos dar realidade prática.
E evidente que essa “ruptura” entre “fenômeno” e “númeno” devia atormentar Kant, ainda mais que a) já na primeira Crítica, ele havia admitido (embora com uma série de cautelas e distinções) que a coisa em si é o substrato numênico do fenômeno (sendo pensável, ainda que não cognoscível) e b) na segunda Crítica, havia admitido o acesso por via prático-moral ao mundo das coisas em si e dos númenos.
Na Crítica do juízo, ele se propõe então a tarefa de tentar uma mediação entre os dois mundos e, de certa forma, captar a sua unidade, embora reafirmando firmemente que essa mediação não poderá ser de caráter “cognoscitivo” e “teórico”.
Eis as afirmações programáticas de Kant: “Ora, embora exista um abismo imensurável entre o domínio do conceito de natureza ou o sensível e o domínio do conceito de liberdade ou o supra-sensível, de modo que não é possível nenhuma passagem do primeiro para o segundo (através do uso teórico da razão), como se fossem dois mundos tão diversos que o primeiro não possa ter qualquer influência sobre o segundo. Entretanto, o segundo deve ter uma influência sobre o primeiro, isto é, o conceito da liberdade deve realizar no mundo sensível o objetivo proposto através de suas leis e, conseqüentemente, a natureza deve poder ser pensada de modo que a conformidade às leis que constituem a sua forma possa pelo menos se harmonizar com a possibilidade dos objetivos, que devem se concretizar nela segundo as leis da liberdade. Desse modo, deve haver um fundamento da unidade entre o supra-sensível que é o fundamento da natureza e aquilo que o conceito da liberdade contém praticamente, um fundamento cujo conceito, na verdade, é insuficiente para dar seu conhecimento, tanto teórica como praticamente, não tendo portanto nenhum domínio próprio, mas que, apesar disso, permite a passagem do modo de pensar segundo os princípios de um ao modo de pensar segundo os princípios do outro”.
Esse fundamento é uma terceira faculdade, que Kant identifica como intermediária entre o intelecto (= faculdade cognoscitiva) e a razão (= faculdade prática) e que chama de faculdade do juízo, que se revela estreitamente vinculado com o sentimento puro.
Para compreender a nova Crítica, é necessário esclarecer bem o novo significado  e “juízo” e estabelecer com exatidão em que ele se diferencia do “juízo” teórico de que fala a Crítica da razão pura.

"Juízo determinante” e “juízo reflexivo"

Segundo Kant, o juízo em geral é a faculdade de assumir o “particular” no “universal", ou seja, a faculdade de pensar o particular contido no universal. Ora, a esse respeito, dois casos são possíveis.
1)      No primeiro caso, podem se dar tanto o “particular” como o “universal”. Nesse caso, o juízo que opera a adoção do particular (já dado) pelo universal (também já dado) é determinante. Todos os juízos da Crítica da razão pura são determinantes, porque são dados tanto o particular (o múltiplo sensível) como o universal (as categorias e os princípios a priori). Kant chama esse juízo de “determinante” porque ele determina teoricamente o objeto (o constitui como objeto, como já vimos).
2)      Ou então, no segundo caso, pode ser dado o “particular", devendo o “universal” ser procurado. E é precisamente o juízo que deve procurá-lo. Nesse caso, o juízo se chama “reflexivo”. E chama-se “reflexivo” porque esse “universal que se deve encontrar” não é uma lei a priori do intelecto, mas, diz Kant, deriva de um “princípio da reflexão sobre objetos para os quais, objetivamente, nos falta em absoluto uma lei” (Note-se que, aqui, “reflexão” assume sentido, não genérico, mas técnico: para Kant, “reflexão” significa comparar e conjugar representações entre si e coloca-las em relação com as nossas faculdades do conhecimento.)
Como veremos, esse princípio “universal” da reflexão é diferente do universal do intelecto e é análogo ao das Idéias da razão: ele consiste na Idéia de finalidade.
Note-se, ademais, que, enquanto no juízo determinante os dados particulares são os fornecidos pela sensibilidade e, portanto, são dados informes que são “enformados” pelas categorias, no juízo reflexivo os dados são constituídos pelos objetos já determinados pelo “juízo determinante” ou teórico. Assim, podemos fizer que o “juízo reflexivo” reflete sobre esses objetos já teoricamente determinados (sobre as representações desses objetos) a fim de “encontrar” e “recuperar” a concordância entre si e com o sujeito (com as suas faculdades cognoscitivas e com as suas exigência morais, particularmente com a liberdade). No juízo reflexivo, nós captamos as coisas como em harmonia umas com as outras e também em harmonia conosco.
Como dissemos, o universal próprio do juízo reflexivo não é de natureza lógica, porquanto se trata de um universal que, muito mais, corresponde às Idéias da razão e ao seu uso normativo. Com efeito, nos simples juízos reflexivos, para poder remontar do particular ao universal que deve ser “encontrado” (ou seja, para encontrar a unidade sob a qual reunir os vários objetos e os vários casos), temos necessidade de um princípio-guia a priori, que, segundo Kant, outra coisa não é senão a hipótese da finalidade da natureza em seus múltiplos casos e manifestações, ou melhor, a consideração da natureza e de tudo o que nela foi deixado indeterminado pelo nosso intelecto “segundo uma unidade que possa ter sido estabelecida por um intelecto (ainda que não o nosso)", precisa Kant, ou seja, segundo uma unidade “que possa ter sido estabelecida por um intelecto divino”. E evidente que, considerada desse ponto de vista, vale dizer, como a realização do projeto de uma mente divina, toda a realidade da natureza, particularmente todos os acontecimentos que nos aparecem como contingentes, manifestam-se então sob uma luz completamente diferente, ou seja, à luz de um objetivo e de um fim.
Desse modo, o conceito de fim, que fora excluído da Razão pura, ingressa na filosofia kantiana nessa fórmula complicadíssima do “juízo reflexivo", aliás bastante sugestiva. O conceito de “fim” não é um conceito teórico, como já recordamos, mas algo que se radica em uma necessidade e em uma instância estrutural da sujeito. Entretanto, embora dentro desses limites, o juízo reflexiva “fornece o conceito intermediário entre o conceito da natureza e o da liberdade”. Concebida “teleologicamente", a natureza se harmoniza com a “finalidade moral", porque a finalidade faz a natureza perder a sua rigidez mecanicista e torna possível a sua harmonização com a liberdade.
Mas nós podemos “encontrar” o finalismo na natureza de dois modos diferentes, ainda que conjugados entre si: a) refletindo sobre a beleza ou então b)refletindo sobre o ordenamento da natureza. Daí a distinção kantiana de dois tipos de “juízo reflexivo": a) o juízo estético e b) o juízo teleológico, que agora examinaremos.

O juízo estético

A existência de juízos estéticos é um dado de fato evidente por si só. Mas, diante da existência do juízo estético, colocam-se dois problemas: 1) em primeiro lugar, o de estabelecer o que seja propriamente o belo que nele se manifesta; 2) em segundo lugar, o de remontar ao fundamento que o torna possível.
E eis a solução kantiana para esses dois problemas.
1)      Para Kant, o belo, obviamente, não pode ser uma propriedade objetiva das coisas (o belo ontológico), mas sim algo que nasce da relação entre o objeto e o sujeito. Mais precisamente, é aquela propriedade que nasce da relação dos objetos comparados com o nosso sentimento de prazer e que nós atribuímos aos próprios objetos. A imagem do objeto referida ao sentimento do prazer, comparada a este e por este avaliada dá lugar ao juízo de gosto. Esse juízo não é cognoscitivo, porque o sentimento não é um conceito e, portanto, os juízos de gosto não são juízos teóricos. Belo, portanto, é aquilo que agrada segundo o juízo de gosto, o que implica em quatro características (que Kant deduz das quatro classes de categorias).
a)      Belo é o objeto de “prazer sem interesse”. Falar de prazer sem interesse significa falar de prazer que não está ligado ao grosseiro prazer dos sentidos e que não está ligado sequer ao útil econômico ou ao bem moral.
b)      Belo é “aquilo que agrada universalmente, sem conceito”. O prazer do bem é universal, porque vale para todos os homens e, portanto, se distingue dos gostos individuais; entretanto, essa universalidade não é de caráter conceitual e cognoscitivo. Trata-se portanto de uma universalidade “subjetiva", no sentido de que Vale para cada sujeito (referida que é ao sentimento de cada um).
c)      "A beleza é a forma da finalidade de um objeto, enquanto é percebido sem a representação de objetivo”. G. de Ruggiero explica muito bem essa característica no seguinte texto: “O belo nos dá uma impressão de ordem e de harmonia, isto é, de um fim para o qual estão voltados os elementos do objeto representado. Mas, se analisarmos essa impressão, veremos que nenhum fim determinado e particular pode nos dar razão. Não é o fim egoísta da satisfação de uma nossa necessidade, pois sentimos que o prazer da beleza é desinteressado. Não é o fim utilitário, pelo qual o belo estada subordinado a alguma coisa, pois sentimos que o belo é tal em si mesmo e não a serviço de outro. Não é o fim de uma perfeição intrínseca, ética e lógica, pois a essa nós chegamos através de uma reflexão conceitual, ao passo que o belo agrada imediatamente. Excluindo-se assim qualquer fim determinado, resta a própria idéia da finalidade, em seu aspecto formal e subjetivo, como idéia de uma concordância quase intencional de partes em um todo harmônico. Essa característica pode ser mais bem entendida quando consideramos a relação entre o belo da natureza, de que se fala, com o belo na arte. Diante do belo da natureza, nós percebemos como que a presença de um desígnio intencional pelo qual o objeto belo se nos configura como obra de arte. Ao contrário diante de uma obra de arte, que segue um desígnio intencional, nós sentimos que ela é verdadeiramente bela quando aquela intencionalidade se oblitera e o objeto parece uma criação espontânea da natureza. Reunindo as duas qualidades, que parecem em contraste, mas são convergentes, podemos dizer que no belo, da natureza ou da arte, é preciso que exista e não exista fim, ou seja, exista como se não existisse, isto é, que a intencionalidade e a espontaneidade estejam fundidas de tal maneira que a natureza pareça arte e a arte pareça natureza".
d)     "O belo é aquilo que é reconhecido, sem conceito, como objeto de prazer necessário.” Trata-se, obviamente (como também no caso da universalidade), não de uma necessidade lógica, mas sim subjetiva, no sentido de que se trata de algo que se impõe a todos os homens.
2)      Resolvido o primeiro problema, vejamos o segundo: qual é o fundamento do juízo (reflexivo) estético? O fundamento do juízo estético é o “livre jogo e harmonia das nossas faculdades espirituais” (a harmonia entre a representação e o nosso intelecto, entre a fantasia e o intelecto) que o objeto produz no sujeito. O juízo de gosto, portanto, é o efeito desse livre jogo das faculdades cognoscitivas. São compreensíveis, portanto, as conclusões de Kant: “Esse juízo puramente subjetivo (estético) do objeto ou da representação com que ele nos é dado precede o prazer pelo objeto e é o fundamento desse prazer pela harmonia das faculdades do conhecer: mas só se funda na universalidade das condições subjetivos no juízo dos objetos essa validade subjetiva universal do prazer que nós ligamos à representação do objeto que chamamos belo'.

A concepção do sublime

O sublime é afim ao belo, porque também agrada “por si mesmo” e, do mesmo modo, pressupõe um “juízo de reflexão", A diferença está no fato de que o belo diz respeito à forma do objeto e a forma é caracterizada pela limitação (de-terminação), ao passo que o sublime também diz respeito àquilo que é informe e que, enquanto tal, implica a representação do ilimitado. Ademais, o belo produz um prazer positivo, enquanto o sublime produz um prazer negativo (por vezes, Kant chega a dizer que produz um sentimento de desprazer). Escreve Kant: “O sublime não pode se unir a algo atrativo; e, como o espírito não é simplesmente atraído pelo objeto, mas alternadamente atraído e repelido, o prazer do sublime não é tanto uma alegria positiva, mas muito mais um contínuo maravilhamento e estima, isto é, merece ser chamado um prazer negativo”. E, por fim, o espírito tende à comoção ao se representar o sublime, ao passo que, representando-se o belo, “goza de calma contemplação".
Mas o sublime não está nas coisas e sim no homem. O sublime é de duas espécies: matemático e dinâmico; o primeiro é dado pelo infinitamente grande e o segundo pelo infinitamente potente, Diante do imensamente grande (oceano, céu etc.) ou do imensamente potente (terremotos, vulcões etc.) o homem, por um lado, se descobre pequeno e se sente esmagado, mas, por outro lado, descobre ser superior àquele imensamente grande ou potente de caráter físico (oceano, céu, terremotos e vulcões são fenômenos físicos), dado que leva em si as Idéias da razão, que são Idéias da totalidade absoluta, que superam aquilo que, à primeira vista, parecia superar o próprio homem.
Eis as eloqüentes palavras de Kant: “O verdadeiro sublime não pode estar contido em alguma forma sensível, mas diz respeito somente às Idéias da razão, as quais, embora nenhuma exibição lhes possa ser adequada, aliás, precisamente por tal desproporção que se pode exibir sensivelmente, são evocadas e despertadas em nosso espírito. Assim, o imenso oceano erguido pela tempestade não pode ser chamado de sublime: a sua visão é terrível. E é preciso que o espírito já tenha sido preenchido por tais idéias se, através de tal intuição, deve ser determinado a um sentimento, que é ele próprio sublime, enquanto o espírito é levado a abandonar a sensibilidade e se ocupar de Idéias que contém uma finalidade superior”. Em conclusão, a definição mais apropriada de sublime é a seguinte: “Sublime é aquilo que, pelo falo mesmo de poder só pensa-lo, atesta uma faculdade de espírito superior a toda medida dos sentidos."

O juízo teleológico e as conclusões da Crítica do juízo

A finalidade do juízo estético é uma finalidade “sem objetivo", como vimos, isto é, uma finalidade para o sujeito (o objeto parece feito de propósito para o sujeito, a fim de pôr harmonicamente em movimento as suas faculdades). No juízo teleológico, ao contrário, considera-se a finalidade da natureza, que Kant recupera, precisamente, ao nível do “juízo reflexivo".
Essa é a parte mais atormentada da terceira Crítica, porque muitas considerações de Kant o levariam a conclusões metafísicas, que ele, no entanto, repele por causa dos preconceitos que carrega desde a primeira Crítica.
As conclusões do filósofo são as que se seguem.
Nós não sabemos como a natureza é em si mesma (considerada numenicamente), já que só a conhecemos fenomenicamente. Entretanto, nós não podemos deixar de considerá-la como organizada finalisticamente, dado que em nós há uma tendência irrefreável a considerá-la desse modo.
Aliás, Kant admite inclusive que alguns produtos da natureza física (os organismos) não podem ser explicados segundo leis puramente mecânicas, exigindo “uma lei de causalidade inteiramente diferente", isto é, a causalidade finalística.
Entretanto, não é possível a extensão do finalismo a toda a natureza, do ponto de vista cognoscitivo, pelas razões que já vimos (deveríamos ter um intelecto intuitivo e poder construir uma metafísica como ciência). Kant encontra a solução (não sem ter que forçar um pouco) precisamente graças ao juízo teleológico entendido como simples “juízo reflexivo”.
As seguintes palavras de Kant resumem claramente a sua posição: “Há uma diferença absoluta entre dizer que a produção de certas coisas da natureza ou até de toda a natureza não é possível senão através de uma causa que se determina a agir intencionalmente e fizer que, segundo a natureza particular de minha faculdade cognoscitiva, eu não posso julgar da possibilidade daquelas coisas e de sua produção senão pensando uma causa que age intencionalmente e, portanto, um ser que produz analogamente à causalidade de um intelecto. No primeiro caso, quero afirmar algo do objeto e sou levado a demonstrar a realidade objetiva de um conceito que eu admito; no segundo, a razão nada mais faz do que determinar o uso de minhas faculdades cognoscitivas, em conformidade com a sua natureza e com as condições essenciais de sua dimensão e dos seus limites. De modo que o primeiro é um principio objetivo pelo juízo determinante e o segundo um princípio subjetivo que serve simplesmente pelo juízo reflexivo e, portanto, uma máxima que lhe é atribuída pela razão.” .
Entretanto, Kant reconhece expressamente que a consideração teleológica tem uso normativo e até eurístico, ou seja, válido “para investigar as leis particulares da natureza”.
Mas a conclusão da Crítica do juízo é que, vista pela ótica do juízo reflexivo, a realização do fim moral do homem é o objetivo da natureza e que “segundo os princípios da razão, existem motivos suficientes (...) para que o juízo reflexivo considere o homem não somente como fim da natureza, como todos os seres organizados, mas também como objetivo da natureza sobre a terra, de modo que, em relação a ele, todas as outras coisas naturais constituem um sistema de fins”. Sem o homem, o mundo seria um deserto vazio. E só a “boa vontade” constitui um objetivo último.
Essa foi a obra que teve maior influência sobre os contemporâneos de Kant e também sobre a geração seguinte: para Goethe, para Schiller e para os poetas românticos, Kant foi sobretudo o autor da terceira Crítica.

Conclusões: “o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim” como marca espiritual de Kant como homem e pensador

Já acenamos à afirmação simbólica de Kant segundo a qual as duas coisas que mais o enchiam de admiração eram o céu estrelado e a lei moral. Agora, como conclusão, é tempo de ler essa passagem na íntegra:
"Duas coisas enchem-me o espírito de admiração e reverência sempre novas e crescentes, quanto mais freqüente e longamente o pensamento nelas se detém: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim. Não tenho que buscar essas duas coisas fora do alcance da minha vista, envolvidas em obscuridade, ou no transcendente. Nem devo, simplesmente, presumi-las. Eu as vejo diante de mim e as vinculo imediatamente à consciência da minha existência. A primeira começa do lugar que ocupo no mundo sensível externo e estende a conexão em que me encontro a grandezas imensuráveis, com mundos sobre mundos e sistemas de sistemas e, além disso, aos tempos sem fronteiras do seu movimento periódico, do seu início e da sua duração. A segunda parte do meu Eu invisível, da minha personalidade, representando-me em um mundo que tem uma infinitude verdadeira, mas que só é perceptível pelo intelecto, com o qual (mas, por isso e ao mesmo tempo, com todos aqueles mundos visíveis) me reconheço em uma conexão não simplesmente acidental, como no primeiro caso, mas universal e necessária. A primeira visão, de um conjunto inumerável de mundos, aniquila, por assim dizer, a minha importância de criatura animal, que deverá restituir a matéria de que é feita ao planeta (um simples ponto no universo), depois de ter sido dotada por breve tempo (não se sabe como) de força vital. A segunda, ao contrário, eleva infinitamente o meu valor, como valor de uma inteligência, graças à minha personalidade, na qual a lei moral me revela uma vida independente da animalidade e até mesmo de todo o mundo sensível, pelo menos por aquilo que se pode deduzir da destinação final de minha existência em virtude dessa lei, destinação que não se limita às condições e às fronteiras desta vida, mas que vai até o infinito."
E assim, para Kant, o homem, que na Razão pura revelou-se fenomênico, finito, mas dotado (como razão) de estrutural abertura para o infinito (as Idéias) e de uma necessidade irrefreável de infinito, agora na Razão prática (da qual foi extraída essa passagem) revela-se também efetivamente destinado ao infinito.
O destino do homem, portanto, é o infinito.
Com essas posições, nos preparamos para transcender os horizontes do iluminismo e chegamos aos umbrais do romantismo, que, em sua poesia e em sua filosofia, estará todo voltado precisamente para o infinito.

REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do Humanismo a Kant – vol.2. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 924-932. 

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