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Espaço aberto para discutir Filosofia e Sociologia Nota: o conteúdo desta página, em forma de textos e fragmentos de texto, verbetes, etc. serve como esboço para estudo aos alunos do Ensino Médio, nas disciplinas de Filosofia e Sociologia do Bom Jesus/IELUSC (www.ielusc.br). Este material é incompleto e não conclusivo; apenas tem a função de instigar a discussão e debate em sala de aula, bem como a reflexão. Alfons Gossen
domingo, 9 de outubro de 2011
Ensaio e Tratado
terça-feira, 27 de setembro de 2011
Processos Gerais de Pensamento
1. Pensamento Discursivo: pensamento mediato
Raciocínio indutivo e dedutivo repousam sobre um intermediário que legitima o discurso que um e outro discurso manterão para chegar às suas conclusões.
é mediato: termo médio tem papel de intermediário.
Exemplo: lógica formal
2. Pensamento Intuitivo
Intuição sensível: de ordem concreta
O conhecimento dos sentido tem sempre por objeto um ser singular; é de ordem concreta – intuição sensível é intuição primária, anterior ao conhecimento intelectual.
Intuição Intelectual: de ordem abstrata
Em vez das sensações, está vinculada às ideias – é de ordem abstrata – geradora de um conhecimento que nao tem relação com o raciocínio discursivo ou com as sensações que provém da intuição sensível.
Lakatos
Processos de Pensamento
Fenomenologia
O real é um tecido sólido, ele não espera nossos juízos para anexar a si os fenômenos mais aberrantes, nem para rejeitar nossas imaginações mais verossímeis. A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não “habita” apenas o “homem interior”, ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece.
Merleau-Ponty
domingo, 25 de setembro de 2011
A Polis
A polis ateniense [cidade-república na Grécia Antiga] funcionou sem uma divisão entre governantes e governados e não foi, assim, um Estado, se usarmos esse termo, (...), em acordo com as definições tradicionais de formas de governo, isto é, governo de um homem ou monarquia, governo por uns poucos ou oligarquia e governo pela maioria, ou democracia. Os cidadãos atenienses, além disso, eram cidadãos apenas na medida em que possuíssem tempo de lazer, em que tivessem aquela liberdade face ao trabalho (...). Não somente em Atenas, mas por toda a Antiguidade e até a idade moderna, aqueles que trabalhavam não eram cidadãos e os que eram cidadãos eram, antes de mais nada, os que não trabalhavam ou que possuíam mais que sua força de trabalho.
Arendt, Hannah, in Entre o passado e o futuro.
Existe um pensamento político brasileiro?
(...)
A redução do pensamento político à filosofia política leva a desfigurar a política e a converter a história à história das idéias. Toda uma categoria social se perderia. A Revolução Francesa teria nascido – para levar a tese à caricatura – dos filósofos. O mundo soviético teria sua origem no Manifesto comunista, depois de quase um século de maturação. A política se desvincularia da realidade, perdida numa teia de doutrinas e de idéias, em simplismo que a tornaria o desvario de cérebros ociosos. Não faltam precedentes a essa manifestação literária: a que, por exemplo, pintou a Revolução Francesa como a quimera póstuma de Rousseau. Essa não é a tese de Tocqueville, que soube distinguir o pensamento político da filosofia política, o intelectual, com suas fórmulas, da idéia que ganha a sociedade e, por isso, adquire o contorno de uma força social (Tocqueville, 1952, t.2, p.193 et seqs.).
(...)
Raymundo Faoro
O Estado
Marx
O Estado é invenção da classe dominante, é a forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses, segue-se que todas as instituições comuns passam pelo intermédio do Estado.
No comunismo, o Estado tende a desaparecer, pois não havendo mais classe dominante, é desnecessário haver Estado.
Weber
Discorda de Marx e de sua concepção dialética da história, pois atribui ao Estado uma força coercitiva legítima. Este poder de Estado, manifesto através do Governo, tem poder legítimo sobre os governados, pois possui a tarefa de elaborar e garantir o funcionamento da estrutura jurídica, política e econômica, às quais o indivíduo está sujeito (leis).
Durkheim
Dentro da sua concepção de "solidariedade orgânica" da sociedade moderna, o Estado é autoridade e, com isso, reconhecido como algo superior por todos.
"As naturezas individuais nada mais são do que a matéria indeterminada que o fator social determina e transforma. Certos estados psíquicos, como a religiosidade, o ciúme sexual, a piedade filial e o amor paterno, longe de serem inclinações inerentes à natureza humana, derivam da organização coletiva (...). Com esse conceito de fato social, fica evidente a coerção que ele, o fato social, exerce sobre o indivíduo a partir do exterior". O indivíduo obedece a uma estrutura jurídica, política e econômica que é o Estado.
Portanto, o Estado tira daí a sua legitimidade; a sociedade moderna, com a sua estrutura orgânica, onde grupos diferentes, classes diferentes são diferentes porque exercem papéis e funções diferentes, não é divergente, pois o conjunto todo é entendido como um organismo, portanto harmonioso. As diferenças têm a sua origem na divisão do trabalho social.
Einstein e a crise da razão
A ciência, no tempo de Auguste Comte, preparava-se para dominar teórica e praticamente a existência. Quer se tratasse da ação técnica, quer da ação política, pensava-se ter acesso às leis segundo as quais natureza a sociedade são feitas, e governá-las de acordo com seus princípios. Foi algo totalmente diferente, quase o inverso, que ocorreu: longe de, na ciência, luz e eficácia trem crescido juntas, aplicações que revolucionam o mundo nasceram de uma ciência altamente especulativa, sobre cujo sentido último não há acordo. E longe de a ciência ter-se submetido até à política, tivemos pelo contrário uma física repleta de debates filosóficos e quase políticos.
O próprio Einstein era um espírito clássico. Por mais categoricamente que reivindique o direito de construir, e sem respeito algum pelas noções a priori que pretendem ser o arcabouço invariável do espírito, ele nunca deixou de pensar que essa criação vai ao encontro de uma verdade depositada no mundo. “Acredito num mundo em si, mundo regido por leis que tento apreender de uma maneira selvagemente especulativa”. Mas, justamente, ele não ousa fundamentar categoricamente esse encontro da especulação e do real, de nossa imagem do mundo, a que chama às vezes “harmonia preestabelecida”, numa infra-estrutura divina, como o grande racionalismo cartesiano, nem, como o idealismo, no princípio de que para nós i real não poderia ser diferente daquilo que podemos pensar. Einstein refere-se por vezes ao Deus de Spinoza, mas em geral descreve a racionalidade como um mistério e como o tema de uma forma “religiosidade cósmica”. A coisa menos compreensível do mundo, dizia ele, é que o mundo seja compreensível.
Se denominamos clássico um pensamento para o qual a racionalidade do mundo é evidente, o espírito clássico, em Einstein, está portanto em seu limite extremo. Sabe-se que ele nunca pôde se resolver a considerar definitivas as formulações da mecânica ondulatória, que não se baseiam, como os conceitos da física clássica, mas “propriedades” das coisas, dos indivíduos físicos, mas descrevem o comportamento e as probabilidades de certos fenômenos coletivos no interior da matéria. Nunca pôde aderir à ideia de uma “realidade” que, por si e em última análise, fosse um tecido de probabilidades. “Todavia, acrescentava ele, não posso invocar nenhum argumento lógico para defender minhas convicções, a não ser meu dedinho, única e fraca testemunha de uma opinião profundamente arraigada na minha pele.” O humor não era uma pirueta para Einstein, ele o convertia num componente indispensável de sua concepção do mundo, quase um meio de conhecimento. O humor era para ele o modo das certezas arriscadas. Seu “dedinho” era a consciência, paradoxal e irreprimível no físico criador, de ter acesso a uma realidade mediante uma invenção contudo livre. Para esconder-se tão bem, pensa Einstein, é preciso que Deus seja “sofisticado” ou refinado. Nas não poderia haver Deus maldoso. Mantinha, pois, as duas extremidades da corrente – o ideal de conhecimento da física clássica e sua própria maneira “selvagemente especulativa”, revolucionária. Os físicos da geração seguinte soltaram, em sua maioria, a primeira extremidade.
O encontro da especulação e do real que Einstein postula, como um mistério límpido, é visto sem hesitação pelo público como um milagre. Uma ciência que confunde as evidências do senso comum, e é capaz ao mesmo tempo de mudar o mundo, suscita inevitavelmente uma espécie de superstição, mesmo entre as testemunhas mais cultas. Einstein protesta: não é um deus, esses elogios desmedidos não se dirigem a ele, mas “a meu homônimo mítico que me torna a vida singularmente dura'. Não acreditam nele, ou melhor, sua simplicidade aumenta-lhe ainda mais a lenda: já que está tão espantado com sua glória, e a preza tão pouco, é porque seu gênio não é inteiramente ele. Einstein é antes o lugar consagrado, o tabernáculo de alguma operação sobrenatural. “Esse desprendimento é tão completo que às vezes é preciso, ao conviver com ele, lembrar-se de que estamos realmente com ele. Julgamos estar lidando com um sósia... Até ocorreu-me a inverossímil suspeita de que ele se julga igual aos outros.” Luís XVI dizia tranquilamente: “Cumpre reconhecer que Racine é bem talentoso”, e jamais Viète, Descartes, Leibniz foram considerados super-homens por seus contemporâneos. Numa época em que se acreditava numa origem eterna de todos os nossos atos de expressão, o grande escritor ou o grande sábio não passava do homem bastante engenhoso para captar algumas das palavras ou das leis inscritas nas coisas. Quando não há mais Razão universal, é preciso que sejam taumaturgos.
Hoje, como outrora, só há contudo uma única maravilha – considerável, é verdade –, que é o homem falar ou calcular, em outras palavras, que ele tenha constituído para si esses prodigiosos órgãos, o algoritmo, a linguagem, que não se desgastam, mas ao contrário crescem com o uso, capazes de um trabalho indefinido, capazes de produzir mais do que lhes foi colocado, e no entanto não cessam de se reportar às coisas. Mas não possuímos teoria rigorosa do simbolismo. Prefere-se, pois, evocar uma potência animal qualquer que, em Einstein, engendraria a teoria da relatividade como em nós produz a respiração. Einstein protesta em vão: ele precisa ser feito de um modo diferente de nós, precisa ter outro corpo, outras percepções, e dentre elas, por sorte, a relatividade. Médicos americanos deitam-no numa cama, cobrem de detectores a fronte nobre e ordenam: “Pense na relatividade”, como se ordena “Faça a” ou “Conte vinte e um, vinte e dois” – como se a relatividade fosse objeto de um sexto sentido, de uma visão beatífica, como se não fosse necessária tanta energia nervosa, e conduzida por circuitos igualmente sutis, para falar quando se é bebê quanto para pensar a relatividade quando se é Einstein. Isso está a um passo das extravagâncias dos jornalistas que consultam o gênio sobre as questões mais alheias ao seu campo: afinal de contas, uma vez que a ciência é taumaturgia, por que não faria ela um milagre a mais? E uma vez que Einstein mostrou justamente que, a grande distância, um presente é contemporâneo de um futuro, por que não lhe formular as perguntar que se formulavam à Pítia?
Tais desvarios não são exclusivos do jornalismo ocidental. Na outra extremidade do mundo, as apreciações soviéticas sobre a obra de Einstein (antes da recente reabilitação) prendem-se também ao ocultismo. Condenar como “idealista” ou “burguesa” uma física na qual não se critica por outro lado nenhuma incoerência, nenhum desacordo com os fatos, é supor um gênio maligno errante nas infra-estruturas di capitalismo que sopra a Einstein pensamentos desta vez suspeitos – é, sob as aparências de uma doutrina social racional, renegar a razão precisamente onde ela brilha com evidência.
De um canto ao outro do mundo, que a exaltem, quer a reprimam, a obra “selvagemente especulativa” de Einstein provoca um desenvolvimento da desrazão. Mais uma vez, ele nada fez para colocar seu pensamento nessa luz, permanecia um clássico. Mas não seria isso apenas fado de um homem bem-nascido, a força de uma boa tradição de cultura? E, quando estiver esgotada essa tradição, não poderá a nova ciência ser, para aqueles que não são físicos, senão uma lição de irracionalismo?
Em 6 de abril de 1922, Einstein encontrava Bergson na Sociedade de Filosofia de Paris. Bergson fora “para ouvir”. Mas, como acontece, a discussão esmorecia. Decidiu-se então a apresentar algumas ideias que estava defendendo em Durée et simultanéité – e propôs em suma a Einstein um meio de desarmar a aparência paradoxal de sua teoria e de reconciliá-la com os homens simplesmente homens. Por exemplo, o famoso paradoxo dos tempos múltiplos, cada um deles ligado ao ponto onde se encontra o observador. Bergson propunha distinguir aqui a verdade física e verdade pura e simples. Se, nas equações do físico, uma certa variável, que temos o hábito de chamar tempo porque marca tempos decorridos, aparece solidária do sistema de referência em que nos colocamos, ninguém recusará ao físico o direito de dizer que o “tempo” se dilata ou se retrai conforme é considerado daqui ou dali, havendo portanto vários “tempos”. Mas falará ele então daquilo a que os outros homens dão esse nome? Essa variável, essa entidade, essa expressão matemática designaria ainda o tempo se nós lhe atribuíssemos as propriedades de um outro tempo – o único que é sucessão, devir, duração, em suma, o único que é verdadeiramente tempo – do qual temos experiência ou percepção antes de toda a física?
No campo da nossa percepção, há acontecimentos simultâneos. Por outro lado, vemos também nele outros observadores cujo campo invade o nosso, imaginamos ainda outros cujo campo invade o dos precedentes, e é assim que acabamos por estender a nossa ideia do simultâneo a acontecimentos tão afastados quanto quisermos um do outro, e que não se prendem ao mesmo observador. É assim que há um tempo único para todos, um único tempo universal. Esta certeza não é abalada, ela é mesmo subentendida, pelos cálculos do físico. Quando ele diz que o tempo de Pedro está dilatado ou retraído no ponto onde se encontra Paulo, não expressa de modo algum o que é vivido por Paulo, que, por sua vez, percebe todas as coisas de seu ponto de vista e assim não tem nenhuma razão para sentir o tempo que se escoa nele e à volta dele de forma diferente da que Pedro sente o seu. O físico atribui abusivamente a Paulo a imagem que Pedro se faz do tempo de Paulo. Leva ao absoluto os pontos de vista de Pedro, com quem faz causa comum. Supõe-se espectador do mundo inteiro. Pratica o que tanto se censura aos filósofos. E fala de um tempo que não é o de ninguém, de um mito. Aqui, diz Bergson, é preciso ser mais einsteiniano do que Einstein.
“Sou pintor, e tenho de representar duas personagens, João e José; um deles está a meu lado, enquanto o outro está a duzentos ou trezentos metros de mim. Desenharei o primeiro em tamanho natural e reduzirei o outro à dimensão de um anão. Um outro pintor, que estiver perto de José e quiser igualmente pintar os dois, fará o inverso do que faço; mostrará João muito pequeno e José em tamanho natural. Teremos ambos razão. Mas, pelo fato de nós dois termos razão, ter-se-á o direito de concluir que João e José não têm nem a estatura normal, nem a de um anão, ou que têm ambas ao mesmo tempo, ou que é como se quiser? Evidentemente que não... A multiplicidade dos tempos que obtenho assim não impede a unidade do tempo real; antes a pressupõe, assim como a diminuição do tamanho com a distância, numa série de telas onde eu representaria José mais ou menos afastado, indicaria que José conserva o mesmo tamanho”.
Ideia profunda: a racionalidade, o universal fundados de novo, e não sobre o direito divino de uma ciência dogmática mas sobre a evidência pré-científica de que há um único mundo, sobre a razão antes da razão que está contida em nossa existência, em nossa relação com o mundo percebido e com os outros. Falando assim, Bergson ia além do classicismo de Einstein. Poderíamos reconciliar a relatividade com a razão de todos os homens, bastando para tanto consentir em tratar os tempos múltiplos como expressões matemáticas, e em reconhecer, aquém ou além da imagem físico-matemática do mundo, uma visão filosófica do mundo, que é ao mesmo tempo a dos homens existentes. Bastaria aceitar reencontrar o mundo concreto de nossa percepção com seus horizontes, e situar nele as construções da física, para a física poder desenvolver livremente seus paradoxos sem autorizar a desrazão.
Que iria responder Einstein? Havia escutado muito bem, como provam suas primeiras palavras: “A questão coloca-se então assim: o tempo do filósofo é o mesmo que o do físico?”. Porém ao aprovou. Sem dúvida, admitia que o tempo cuja experiência temos, o tempo percebido, está no ponto inicial de nossas noções sobre o tempo, e que ele nos conduz à ideia de um tempo único de um canto ao outro do mundo. Mas a competência desse tempo vivido restringia-se ao que cada um de nós vê, e não autorizava estender ao mundo inteiro a nossa noção intuitiva do simultâneo. “Logo, não há tempo dos filósofos”. É apenas à ciência que se deve perguntar a verdade sobre o tempo, assim como sobre todo o resto. E a experiência do mundo percebido com suas evidências não passa de um balbucio antes da clara palavra da ciência.
Seja. Mas essa recusa volta a colocar-nos diante da crise da razão. O cientista não consente em reconhecer outra razão além da razão física, e é nela que confia, como o tempo da ciência clássica. Ora, essa fazão física, assim revestida de uma dignidade filosófica, abunda em paradoxos e destrói-se, por exemplo, quando ensina que meu presente é simultâneo do futuro de um outro observador bastante afastado de mim, arruinando assim o próprio sentido do futuro...
Justamente por conservar o ideal científico clássico e reivindicar para a física o valor não de uma expressão matemática e de uma linguagem, e sim o de uma notação direta do real, Einstein como filósofo estava condenado ao paradoxo que nunca procurou como físico nem como homem. Não é reclamando para a ciência um gênero de verdade metafísica ou absoluta que protegeremos os valores da razão que a ciência clássica nos ensinou. O mundo, além dos neuróticos, conta com um bom número de “racionalistas” que são um perigo para a razão viva. E, pelo contrário, o vigor da razão está ligado ao renascimento de um sentido filosófico, que, certamente, justifica a expressão científica do mundo, porém em sua ordem, em seu lugar no todo do mundo humano.
Merleau-Ponty. Signos. p.213-219
Empirismo
Todas as idéias derivam da sensação ou reflexão. Suponhamos que a mente é, como dissemos, um papel branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer idéias; como ela será suprida? De onde lhe provém este vasto estoque, que se ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra, da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis externos como nas operações internas de nossas mentes, que são por nós mesmos percebidas e refletidas, nossa observação supre nossos entendimentos com todos os materiais do pensamento. Dessas duas fontes de conhecimento jorram todas as nossas idéias, ou as que possivelmente teremos.
John Locke
Desenvolvimento Sustentável
CORTINA DE FUMAÇA
“... Independente do que ocorreu no passado que tenha originado a atual crise ambiental, independente da existência de atores sociais implicados na responsabilidade da degradação ambiental, a busca de soluções seria uma tarefa comum a toda humanidade. Verifica-se aqui uma nova tentativa de generalizar os fatos, omitir um contexto histórico e criar assim o ‘homem abstrato’, cuja conseqüência significa a retirada do componente ideológico da questão ambiental, que passa a ser considerada com uma certa dose de ingenuidade e descompromisso, diante da falta de visibilidade do procedimento histórico que gerou a crise ambiental. Contribui, em última análise, para o que foi explicitado anteriormente, referente ao locus original do discurso ecológico: a fala sobre o meio ambiente passa a ser automaticamente aceita pelo público, pois o que estaria em jogo é a sobrevivência da humanidade e do planeta e não os interesses mesquinhos individualistas.”
Comissão Brundtland, CMMAD, 1988, ONU.
“Mais correto e condizente com a realidade seria admitir que o nível de consumo alcançado pela sociedade ocidental (The American Way of Life) não é generalizável ao conjunto da humanidade. Seu custo social e econômico em termos de recursos – inclusive os não-renováveis – é de tal ordem que sua extensão em escala mundial levaria inevitavelmente ao colapso da civilização industrial”.
Rattner, in Estudos do Futuro.
“Só como exemplo, podemos observar que se 24% da população mundial tivessem o mesmo padrão de consumo de petróleo que tem a população norte-americana – que constitui apenas 6% da população mundial, mas que consome sozinha 25% da produção mundial de petróleo – eles absorveriam os 100% da atual produção mundial de combustíveis fósseis!”
Gonçalves, in Formação sócio-espacial e questão ambiental no Brasil.
terça-feira, 13 de setembro de 2011
Agressividade e Violência
Esboço apenas para estudo
Maquiavel: marco histórico
Antes de Maquiavel
- Violência é uma intervenção na ordem social
- Regimes autoritários (tirania, etc.) eram considerados perversos e consequentemente proscritos.
- Violência era considerada uma manifestação passional, força não controlada.
- Violência: disfunção política.
Depois de Maquiavel
- Violência é um meio político
- conceito: violência econômica; emprego é calculado cientificamente; aplicação com precisão; baixo custo de vidas e material; o fim justifica os meios; ciência militar.
- É necessária uma análise empírica: causas, função e relevância política da violência, da agressão e do conflito social.
- Não partir de preceitos e, sim, basear-se em manifestações sociais e suas características contrutivas e consequências.
Maquiavel
Concepção do homem (pessimismo antropológico)
Natureza humana: egoísta e malvada, diferente da religião
Paixões: organizar naturalisticamente e subordinar mecanicamente
Obs.: isto requer um egoísmo maior. O Príncipe deve não ser bom, pois o Estado é o fim último. Portanto, os fins justificam os meios.
Trata-se de um realismo amoral, baseado na eficácia, isto é, resultado prático: pragmatismo.
a) Realismo político, baseado no pessimismo antropológico
b) Novo conceito de virtude (Virtú). O Príncipe deve governar eficazmente o Estado e resistir à sorte. O Príncipe deve ser temido ao invés de ser amado.
c) Renovação da vida política.
Princípio: verdade efetiva das coisas = a realidade é política. Isto é diferente de a busca de como as coisas deveriam ser = Ética.
POLÍTICA X ÉTICA
Isso implica na aplicação de métodos extremamente cruéis e desumanos, evita-se o meio-termo, por exemplo: guerra, sim, diplomacia, não.
- O político não deve confiar no aspecto positivo do homem.
- Nega-se qualquer valor espiritual e transcendente, ético e religioso, pois o Príncipe, ao invés de ser amado, opta por ser temido.
A elaboração da questão do SER
Esboço apenas para estudo
Os pré-socráticos e o mundo da Physis
A busca pelo ARCHÉ, o princípio material (físico) do SER
SER:
- Água (Tales de Mileto)
- Substância infinita (Anaximandro)
- O AR (Anaxímenes)
- O Átomo (Demócrito) –> (Não-Ser)
- O Número (Pitágoras)
O ser é imutável (Parmênides) –> Natureza –> COSMOS (Ordem)
O SER pressupõe o NÃO-SER
No COSMOS, tudo se repete; a matéria comporta-se ordenadamente.
=
DETERMINISMO
O homem é corpo/matéria e, portanto, é determinado também
=
MECANICISMO
=
Concepção cíclica do tempo
SER X DEVIR (vir a ser)
Tudo está em transformação (Heráclito).
O átomo, a menor unidade é sim, imutãvel.
Mas são infinitas as combinações de átomos.
As cinco vias
São Tomás, (...), demonstra a existência de Deus de cinco maneiras, que são as famosas cinco vias:
1ª. – Pelo movimento: existe o movimento; tudo o que se move é movido por outro motor; se um motor se move; precisará de outro para o fazer mover, e assim até o infinito. Isto é impossível porque não haveria nenhum motor se não houvesse um motor primeiro, e este motor primeiro é Deus.
2ª. – Pela causa eficiente: há uma série de causas eficientes; tem de haver uma primeira causa, porque se não houvesse, não haveria nenhum efeito, e essa causa primeira é Deus.
3ª. – Pelo possível e pelo necessário: a geração ou corrupção mostram que há entes que podem ser ou não ser; esses entes houve um tempo em que não foram, e terá havido um tempo em que não houve nada, e nada havia chegado a ser. Tem de haver um ente necessário por si mesmo, e esse ente chama-se Deus.
4ª. – Pelos graus de perfeição: há diversos graus de todas as perfeições, que se aproximam mais ou menos das perfeições absolutas, e por isso são graus dessas coisas absolutas; há, piis, um ente que é sumamente perfeito, que é o ente supremo; esse ente é causa de toda perfeição e de todo o ser e chama-se Deus.
5ª. – Pelo governo do mundo: os entes inteligentes tendem para uma ordem, não por acaso, mas pela inteligência que os dirige; há um ente inteligente que ordena a natureza e a impele para o ser fim. Esse ente é Deus.
Marias, Julian. História da filosofia. 8.ed. Porto, Edições Souza & Almeida, 1987, p.177-178.
Eclipse da razão
No domínio sobre a natureza está incluído o domínio sobre o homem. A natureza é objeto de uma exploração total (...) a sede de poder do homem é insaciável. O domínio da raça humana sobre a terra não encontra paralelos naquelas épocas da história natural em que outras espécies animais representavam as mais altas formas de vida, já que os apetites daquelas raças animais eram limitados pela necessidade de sua existência física. O desejo insaciável do homem de estender o seu poder para dois infinitos, o microcosmo e o Universo, não tem raízes na sua natureza, mas na estrutura da sociedade.
Max Horkheimer, in Eclipse da Razão.
As características das instituições totais
(...)
Uma disposição básica da sociedade moderna é que o indivíduo tende a dormir, brincar e trabalhar em diferentes lugares, com diferentes co-participantes, sob diferentes autoridades e sem um plano racional geral. O aspecto central das instituições totais pode ser descrito com a ruptura das barreiras que comumente separam essas três esferas da vida. Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da atividade diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro lugar, todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, pois uma atividade leva, em tempo determinado, à seguinte, e toda a seqüência de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e um grupo de funcionários. Finalmente, as várias atividades obrigatórias são reunidas num plano racional único, supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição.
Goffman, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.17-18.
A ideia de progresso do conhecimento
(...)
CONHECER O CONHECIMENTO
Agora, duas palavras sobre o problema do conhecimento. O poeta Eliot dizia “que conhecimento perdemos na informação e que sabedoria perdemos no Conhecimento?”, querendo dizer com isso que o Conhecimento não é harmonia e comporta diferentes níveis que se podem combater e contradizer. Conhecer comporta “informação”, ou seja, possibilidade de responder a incertezas, mas o conhecimento não se reduz a informações; ele precisa de estruturas teóricas para dar sentido à informações; percebemos, então, que, se tivermos muitas informações e estruturas mentais insuficientes, o excesso de informação mergulha-nos numa “nuvem de desconhecimento”, o que acontece freqüentemente, por exemplo, quando escutamos rádio ou lemos jornais. Muitas vezes, a concepção de mundo do cidadão do século 17 opôs-se à do homem moderno; aquele tinha limitado estoque de informações sobre o mundo, a vida, o homem; tinha fortes possibilidades de articular essas informações, segundo teorias teológicas, racionalistas, céticas; tinha fortes possibilidades reflexivas porque dispunha de tempo para reler e meditar. (...) Levanta-se uma questão: o excesso de informações obscurece o conhecimento; o excesso de teoria, entretanto, também o obscurece. O que é má teoria? A má doutrina? É aquela que se fecha sobre si mesma porque julga que possui a realidade ou a verdade.
(...) Há diferentes ordens de conhecimentos (filosóficos, poéticos, científicos) ou um só Conhecimento, uma só ordem verdadeira? Durante séculos, a ordem verdadeira do Conhecimento era a Teologia; hoje, chama-se Ciência; é por isso que toda vontade de monopolizar a Verdade pretende deter a “verdadeira” ciência.
O PROBLEMA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO
É indubitável que o conhecimento científico realizou, a partir do século 17 e ao longo dos séculos 18, 19 e 20, progressos extraordinários, mesmo sem falar – não estou produzindo um catálogo – dos progressos mais recentes em matéria de microfísica, astrofísica ou biologia, com as descobertas da genética, da biologia molecular e da etologia. Esses progressos são, evidentemente, verificados por aplicações técnicas, desde a energia atômica até as manipulações genéticas.
(...) A procura de uma grande lei do universo conduziu à genial teoria de Newton e, depois, à não menos genial teoria de Einstein. Hoje, entretanto, parece que essa simplificação atinge um limite: a partícula não é a entidade simples, não há uma fórmula única que detenha a chave do universo; chegamos, assim, aos problemas fundamentais da incerteza, como no caso da microfísica e da cosmologia. Por outro lado, podemos, por método e provisoriamente, isolar um objeto do seu ambiente; mas não é menos importante, por método também, considerar objetos e, sobretudo, seres vivos sistemas abertos que só podem ser definidos ecologicamente, ou seja, em suas interações com o ambiente, que faz parte deles tanto quanto eles fazem parte do ambiente.
(...) O extraordinário é que nos damos conta de que o corte entre ciência e filosofia que se operou a partir do século 17 com a dissociação formulada por Descartes entre o eu pensante, o Ego cogitans, e a coisa material, a Res extensa, cria um problema trágico na ciência: a ciência não se conhece; não dispõe da capacidade auto-reflexiva.
(...) Os progressos do Conhecimento não podem ser identificados com a eliminação da ignorância. Estamos numa nuvem de desconhecimento e de incerteza produzida pelo conhecimento; podemos dizer que a produção dessa nuvem é um dos elementos do progresso, desde que o reconheçamos.
Edgar Morin
Determinismo e Causalidade
Esboço apenas para estudo
(...)
A mais antiga, talvez, das codificações dos significados da espinhosa palavra “causa” se deve a Aristóteles. Para o estagirita não havia uma causa, mas quatro, na produção de um efeito: a causa material (a fornecer o receptáculo passivo sobre que atuariam as demais causas); a formal (a promover a “essência”, “idéia” ou qualidade da coisa em questão); a eficiente (o vero externo à coisa, responsável pelo efeito; e a final (meta a que tudo tenderia ou serviria).
A doutrina aristotélica das causas atravessou os tempos e se manteve até o Renascimento. Com o advento da ciência moderna, apenas a causa eficiente se fez merecedora de interesse, abandonadas as formais e finais, porque alheias à possibilidade de experimentação, e as materiais, porque tidas como parte integrante da própria idéia de causa-efeito. O interesse pela causa eficiente se explicaria por ser ela, das quatro, a única passível de ser expressa matematicamente, por ser mais claramente concebida, por ser associada aos dados empíricos, analisados em termos de um sucesso que pode provocar outro.
Galileu, no início do século XVII, definiu a causa eficiente como “a condição necessária e suficiente para o aparecimento de algo”, aquilo que leva ao efeito e que, sendo suprimido, obsta o surgimento do efeito.
Do século XVII ao XIX os desenvolvimentos mais notáveis da física giram em torno de um conjunto de investigações concernentes às leis de movimentos dos corpos no espaço, consubstanciadas, enfim, em teorias gerais muito precisas e bem corroboradas, a que se costuma fazer referência sob o título de mecânica clássica. A tendência de dar às leis da física uma formulação matemática, nascida com Galileu, atingiu seu pleno vigor com as leis de movimento estabelecidas por Newton.
As leis de Newton relativas ao movimento acarretam que o comportamento futuro de um sistema de corpos está cabal e perfeitamente determinado desde que se conheçam, num dado instante (chamado instante inicial), as posições e velocidades dos corpos em questão e as forças que sobre eles estejam atuando. As forças podem ser externas, quando oriundas de fora do sistema em consideração, e internas, dependentes das interações entre os vários corpos que compõem o sistema sob exame. Em inúmeros problemas, as forças externas podem ser negligenciadas e das forças internas podem ser expressas em termos de posições e velocidades (dos centros de massa dos corpos).
A precisão das leis de Newton originou um problema de ordem filosófica. A sua validade, tendo-se estendido a domínios cada vez mais amplos, fez nascer uma espécie de confiança em sua validade universal. Laplace, no século XVIII, foi quem levou às últimas conseqüências essa hipótese. Supôs ele que o universo inteiro não passaria de uma coletânea de corpos em movimento, no espaço, todos obedientes às leis newtonianas. Embora as forças que agiam sobre esses corpos não fossem conhecidas, em todos os casos, Laplace supôs, ainda, que elas poderiam vir a ser conhecidas por meio de experimentação cuidadosa. Isso significava que uma vez obtidos os dados corretos a respeito da posição e da velocidade, em certo momento, o universo inteiro estaria “aberto aos nossos olhos”, perfeitamente determinado, com todos os movimentos passados e futuros descortinados ante nossa razão. Para um “espírito superior” (o demônio laplaciano”, como é chamado), capaz de conhecer posições e velocidades, e que pudesse calcular com acerto o que poderia acontecer, o universo não ofereceria mais surpresas: tudo o que viesse a acontecer já estava, afinal, perfeitamente determinado pelos acontecimentos passados.
“Devemos encarar o estado presente do universo como o efeito de seu estado antecedente e como a causa de seu estado posterior. Uma inteligência que conhecesse todas as forças que agem na natureza em um preciso instante bem como as posições instantâneas de todas as coisas do universo, estaria capacitada a englobar em uma só fórmula os movimentos dos grandes corpos bem como os dos mais leves átomos do mundo, desde que seu intelecto fosse suficientemente poderoso para submeter todos os dados à análise; para ela nada seria incerto, o futuro e o passado estariam expostos aos seus olhos. A perfeição que a mente humana foi capaz de dar à astronomia permite vislumbrar as características de uma tal inteligência. Descobertas na mecânica e na geometria, combinadas com as da gravitação universal, puseram ao alcance da mente a compreensão, em uma única fórmula analítica, do estado passado e do estado futuro do sistema universal. Todos os esforços da mente na busca da verdade tendem a aproximá-la da inteligência que acabamos de imaginar, ainda que para sempre permaneça infinitamente distante de uma tal inteligência.”
HEGENBERG, Leônidas. Explicações Científicas: Introdução à História da Ciência. 2a. ed, São Paulo, EPU, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973, páginas 175-7.
segunda-feira, 12 de setembro de 2011
Conclusões sobre Platão
(…)
O mito da caverna
No centro de A República, coloca-se o célebre “mito da caverna”. O mito foi interpretado sucessivamente como expediente utilizado por Platão para simbolizar a metafísica, a gnosiologia, a dialética e até mesmo a ética e a mística platônicas. É o mito que expressa Platão na sua totalidade – e com ele, portanto, pretendemos concluir.
Imaginemos homens que vivam numa caverna cuja entrada se abra para a luz em toda a sua largura, com um amplo saguão de acesso. Imaginemos que os habitantes dessa caverna tenham as pernas e o pescoço amarrados de tal modo que não possam mudar de posição e tenham de olhar para o fundo da caverna. Imaginemos ainda que, imediatamente à frente da caverna, exista um pequeno muro da altura de um homem e que, por trás desse muro e, portanto, inteiramente escondidos por ele, se movam homens carregando sobre os ombros estátuas trabalhadas em pedra e em madeira, representando os mais diversos tipos de coisas. Imaginemos também que, por trás desses homens, esteja acesa uma grande fogueira e que, no alto, brilhe o sol. Finalmente, imaginemos que a caverna produza eco e que os homens que passam por trás do muro estejam falando de modo que suas vozes ecoem no fundo da caverna.
Se isso acontecesse, aqueles prisioneiros da caverna nada poderiam ver além de pequenas estátuas projetadas no fundo da caverna e ouviriam apenas o eco das vozes. Entretanto, acreditariam, por nunca terem visto coisa diferente, que aquelas sombras eram a única e verdadeira realidade e que o eco das vozes representasse as vozes emitidas por aquelas sombras. Suponhamos, agora, que um daqueles prisioneiros consiga desvencilhar-se dos grilhões que o aprisionam. Com dificuldade, ele se habituaria à nova visão com a qual se deparava. Habituando-se, porém, veria as estatuetas moverem-se por sobre o muro e compreenderia que elas são muito mais verdadeiras do que as coisas que antes via e que agora lhe parecem sombras. Suponhamos que alguém traga nosso prisioneiro para fora da caverna e do outro lado do muro. Primeiramente, ele ficaria ofuscado pelo excesso de luz; depois, habituando-se, veria as coisas em si mesmas; e, por último, veria, inicialmente de forma reflexa e posteriormente em si mesma, própria luz do sol. Compreenderia, então, que estas e somente estas são as realidades verdadeiras e que o sol é a causa de todas as outras coisas visíveis.
Qual o sentido simbólico do mito da caverna?
Os quatro significados do mito da caverna
Antes de tudo, o mito da caverna traduz os diversos graus em que ontologicamente se divide a realidade, isto é, os gêneros do se sensível e supra-sensível com suas subdivisões: as sombras da caverna simbolizam as aparências sensíveis das coisas, as estátuas as próprias coisas sensíveis; o muro representa a linha divisória entre as coisas sensíveis e as supra-sensíveis; as coisas verdadeiras situadas do outro lado do muro são representações simbólicas do ser verdadeiro e das Idéias e o sol simboliza a Idéia do Bem.
Em segundo lugar, o mito simboliza os graus do conhecimento nas duas espécies em que ele se realiza e nos dois graus em que essas espécies se dividem: a visão das sombras simboliza a eikasía ou imaginação e a visão das estátuas representa a pístis ou crença; a passagem da visão das estátuas para a visão dos objetos verdadeiros e para a visão do sol, antes de forma mediata e posteriormente imediata, simboliza a dialética em seus vários graus e a inteleção pura.
Em terceiro lugar, o mito da caverna simboliza o aspecto ascético, místico e teológico do platonismo: a vida na dimensão dos sentidos e do sensível é a vida na caverna, assim como a vida na pureza e plenitude da luz é a vida na dimensão do espírito. O voltar-se do sensível para o inteligível é expressamente representado com a “libertação das algemas”, como con-versão, enquanto a visão suprema do sol e da luz em si mesma é a visão do Bem e a contemplação do Divino.
O mito da caverna, entretanto, expressa também a concepção política tipicamente platônica. De fato, Platão menciona também um “retorno” à caverna por parte daquele que se libertara das algemas, retorno cuja finalidade consiste na libertação daqueles em companhia dos quais ele antes se encontrava como escravo. Tal “retorno” representa certamente o retorno do filósofo-político, o qual, se atendesse apenas às solicitações de seu interesse, permaneceria atento apenas à contemplação do verdadeiro. Superando, porém, suas ambições, desce ele à caverna na tentativa de salvar os outros (o verdadeiro político, segundo Platão, não ama o comando e o poder, mas usa o comando e o poder como instrumentos para a produção de serviços destinados à realização do bem). O que poderá, entretanto, acontecer a quem desce de novo na caverna? Passando da luz para a escuridão, ele não conseguirá enxergar enquanto não se habituar novamente à falta de luz; terá dificuldades em se readaptar aos costumes dos antigos companheiros, se arriscará a não ser por eles entendido e, tomado por louco, correrá até mesmo o risco de ser assassinado, como aconteceu com Sócrates e como poderá acontecer com todos aqueles que testemunhem em dimensão socrática.
Entretanto, o homem que “viu” o verdadeiro Bem deverá e saberá correr esse “risco”, pois é isso que dá sentido a sua existência.
REALE, G. & ANTISERI, D. História da Filosofia: antiguidade e idade média. São Paulo: Paulinas, vol. 1, p.166-168.
Concepções Éticas
Moral Grega
“O sábio é o único capaz de se soltar das amarras que o obrigam a ver apenas sombras e, dirigindo-se para fora, contempla o sol”.(Idéia do Bem)
(Platão, A República)
Alcançar o Bem; buscar o Bem –> Capacidade de compreender bem.
Virtude: disposição permanente de querer o Bem.
Virtude –> Vir –> Virtus: poder, potência, possibilidade de passar ao ato.
(Aristóteles, Ética)
Idade Média
Teocentrismo –> os valores encontram-se em Deus.
Concepção ética fundada nos valores religiosos e, por sua vez, fundados na esperança e na fé.
Homem Moral = Homem temente a Deus.
Iluminismo
Ser moral e ser religioso não são pólos inseparáveis –> um homem ateu pode ser um homem moral, já que os valores encontram-se no próprio homem. –> Antropocentrismo
O homem deve agir à luz da razão. Não faz sentido agir bem para:
- ser feliz
- evitar a dor
- alcançar o céu ou
- escapar da punição divina
Só faz sentido agir bem se a vontade humana for regida por um “imperativo categórico”.
O imperativo categórico é incondicionado, portanto absoluto e livre.
X
A autonomia da razão para legislar supõe a liberdade e o dever.
“Age de tal modo que a máxima de tua ação possa sempre valer como princípio universal de conduta”.
(Kant)
(“A máxima é o princípio subjetivo, com base no qual um indivíduo orienta sua conduta”).
Exemplo: não roubar
Roubar = aceitar o enriquecimento ilícito
elevando a máxima pessoal a nível universal, significa: todos podem roubar. Se todos podem roubar, não há como manter a posse daquilo que foi roubado. Conclusão: roubar é irracional.
(Immanuel Kant, Crítica da Razão Prática)
Materialismo Dialético
Karl Marx
O ser social determina a consciência; o modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual.
As expressões da consciência humana – inclusive a moral – são o reflexo das relações que os homens estabelecem na sociedade para produzir sua existência. Portanto, a moral muda conforme se alteram os modos de produção. –> não há valores universais.
Ao contrário, onde existe sociedade dividida em classes com interesses antagônicos, a moral da classe dominante predomina e torna-se instrumento ideológico.
Existencialismo
Jean-Paul Sartre
Cada homem é responsável por toda a humanidade –> solidariedade.
O conteúdo da moral é sempre concreto e, por conseguinte, previsível; há sempre invenção. A única coisa que conta é saber se a invenção que se faz, se faz em nome da liberdade.
->não há moral universal. Não é possível a elaboração de uma ética que não sucumbisse ao individualismo e ao relativismo, já que cada homem é responsável por toda a humanidade.
A essência precede a existência –> o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e só depois se define.
Não há natureza humana.
Não há Deus para conceber.
Psicanálise
Sigmund Freud
O Inconsciente: mundo oculto da vida das pulsões, dos desejos, da energia primária da sexualidade e agressividade.
Raiz do comportamento humano.
Concepção do homem concreto.
Compreensão de que o reconhecimento e o controle (não a repressão) dos desejos é indispensável para a realização da vida moral num mundo adulto.
Escola de Frankfurt
Adorno, Horkheimer, Benjamin, Fromm, Marcuse, Habermas
Premissa: a Razão não ilumina.
Razão –> razão instrumental –> separa as coisas para poder dominá-las –>
sujeito – objeto
corpo – alma
eu – mundo
natureza – cultura
paixões, emoções, sentidos, imaginação X Pensamento
Proposta: abordagem dialética
Positivismo
(Cientificismo) Levy-Bruhl
Crítica: a idéia universal do homem é pobre e artificial, pois não abre ou favorece a evolução dos conhecimentos.
Pressupor uma natureza humana falseia toda a reflexão sobre a moralidade.
Conhecer o homem e suas culturas –> observar e comparar.
A unidade mental (natureza humana) provavelmente vai aparecer e será definida a posteriori. Portanto, será diferente daquela definida a priori.
a posteriori a priori
o SER constatado X o dever SER
(Sociologismo) (Metafísica)
Ao vencedor, as batatas
- Mas que Humanitas é esse?
- Humanitas é o princípio. Há nas cousas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível, - ou, para usar a linguagem do grande Camões:
Uma verdade que nas cousas anda
Que mora no visíbil e invisíbil.
Pois essa substância ou verdade, esse princípio indestrutível é que é Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o homem. Vais entendendo?
- Pouco, mas, ainda assim, como é que a morte de sua avó...
- Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
- Mas a opinião do exterminado?
- Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias.
- Bem; a opinião da bolha...
- Bolha não tem opinião. Aparentemente, há nada mais contristador que uma dessas terríveis pestes que devastam um ponto do globo? E, todavia, esse suposto mal é um benefício, não só porque elimina os organismos fracos, incapazes de resistência, como porque dá lugar à observação, à descoberta da droga curativa. A higiene é filha de podridões seculares; devemo-la a milhões de corrompidos e infectos. Nada se perde, tudo é ganho. Repito, as bolhas ficam na água. Vês este livro? É D. Quixote. Se eu destruir o meu exemplar, não elimino a obra que continua eterna nos exemplares subsistentes e nas edições posteriores. Eterna e bela, belamente eterna, como este mundo divino e supradivino.
Machado de Assis, in Quincas Borba
domingo, 4 de setembro de 2011
Fragmentos de Descartes
1
Eu estudara um pouco, sendo mais jovem, entre as partes da filosofia, a lógica, e, entre as matemáticas, a análise dos geômetras e a álgebra, três artes ou ciências que pareciam dever contribuir com algo para o meu desígnio. Mas, examinando-as, notei que, quanto à lógica, os seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a outrem as coisas que já se sabem, ou mesmo, como a arte de Lúlio, para falar, sem julgamento, daquelas que se ignoram, do que para aprendê-las. E embora ela contenha, com efeito, uma porção de preceitos muito verdadeiros e muito bons, há todavia tantos outros misturados de permeio que são ou nocivos, ou supérfluos, que é quase tão difícil separá-los quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem sequer está esboçado. Depois, com respeito à análise dos antigos e à álgebra dos modernos, além de se estenderem apenas a matérias muito abstratas, e de não parecerem de nenhum uso, a primeira permanece sempre tão adstrita à consideração das figuras, que não pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação; e esteve-se de tal forma sujeito, na segunda, a certas regras e certas cifras, que se fez ela uma arte confusa e obscura que embaraça o espírito, em lugar de uma ciência que o cultiva. Por esta causa, pensei ser mister procurar algum outro método que, compreendendo as vantagens desses três, fosse isento de seus defeitos. E, como a multidão de leis fornece amiúde escusas aos vícios, de modo que um Estado é bem melhor dirigido quando, tendo embora muito poucas, são estritamente cumpridas; assim, em vez desse grande número de preceitos de que se compõe a lógica, julguei que me bastariam os quatro seguintes, desde que tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma só vez de observá-los.
O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.
O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las.
O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.
E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir.
2
Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que aí realizei; pois são tão metafísicas e tão pouco comuns, que não serão, talvez, do gosto de todo mundo. E, todavia, a fim de que se possa julgar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido a falar-vos delas. De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis, como já foi dito acima; mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário agir exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias de geometria, e cometem aí paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que estava sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceita-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que procurava.
Descartes, Discurso do método, in. Col. Os Pensadores, p. 45 e 54.
3
Primeiramente, considero haver em nós certas noções primitivas, as quais são como originais, sob cujo padrão formamos todos os nossos outros conhecimentos. E não há senão muito poucas dessas noções; pois, após as mais gerais, do ser, do número, da duração etc., que convém a tudo quanto possamos conceber, possuímos, em relação ao corpo em particular, apenas a noção da extensão, da qual decorrem as da figura e do movimento; e, quanto à alma somente, temos apenas a do pensamento, em que se acham compreendidas as percepções do entendimento e as inclinações da vontade; enfim, quanto à alma e ao corpo em conjunto, temos apenas a de sua união, da qual depende a noção da força de que dispõe a alma para mover o corpo, e o corpo para atuar sobre a alma, causando seus sentimentos e suas paixões.
Descartes, Carta a Elisabeth, in Col. Os Pensadores, p.309.
sexta-feira, 2 de setembro de 2011
A Questão Democrática
Minha comunicação se divide em três partes:
1. A democracia como questão sociológica – as instituições democráticas;
2. A democracia como questão filosófica – os princípios da fundação democrática;
3. A democracia como questão histórica – relações entre democracia e socialismo.
A democracia como questão sociológica
(...) a) a democracia é um mecanismo para escolher e autorizar governos, a partir da existência de grupos que competem pela governança, associados em partidos políticos e escolhidos por voto; b) a função dos votantes não é a de resolver problemas políticos, mas a de escolher homens que decidirão quais são os problemas e como resolvê-los – a política é uma questão de elites dirigentes; c) função do sistema eleitoral, sendo a de criar o rodízio dos ocupantes do poder, tem como tarefa preservar a sociedade contra os riscos da tirania; d) o modelo político baseia-se no mercado econômico fundado no pressuposto da soberania do consumidor e da demanda que, na qualidade de maximizador racional de ganhos, faz com que o sistema político produza distribuição ótima de bens políticos; e) a natureza instável e consumidora dos sujeitos políticos obriga a existência de um aparato governamental capaz de estabilizar as demandas da vontade política pela estabilização da “vontade geral”, através do aparelho do Estado, que reforça acordos, aplaina conflitos e modera as aspirações.
(...) Cada vez que um Estado é capaz de responder satisfatoriamente às demandas da cidadania, o regime é democrático. O cidadão define-se, pois, como consumidor, e o Estado, como distribuidor, enquanto a democracia se confunde com um mecanismo de mercado, cujo motor é a concorrência dos partidos segundo o modelo da concorrência empresarial.
(...)
1. A legitimidade do poder é assegurada pelo fato de os dirigentes serem obtidos pela consulta popular periódica, onde a ênfase recai sobre a vontade majoritária. (...)
2. A eleição pressupõe a competição entre posições diversas, sejam elas de homens, grupos ou partidos. (...)
4. A repetição da consulta em intervalos regulares visa proteger a minoria garantindo sua participação em assembleias onde se decidem as questões de interesse público (...)
5. A potência política é limitada pelo judiciário, que não só garante a integridade do cidadão face aos governantes, como ainda garante a integridade do sistema contra a tirania, submetendo o próprio poder à lei, isto é, à Constituição. (...)
Se, na tradição do pensamento democrático, democracia significa: a) igualdade, b) soberania popular, c) preenchimento das exigências constitucionais, d) reconhecimento da maioria e dos direitos da minoria, e) liberdade, torna-se óbvia a fragilidade democrática no capitalismo.
A democracia como questão filosófica
(...) Ninguém é mais incompetente para tratar da política do que o filósofo, seja porque propõe uma política para homens ideais, seja porque apenas critica e despreza a política realmente existente. (...) há um outro filósofo tão incapaz quanto os outros de investigar a política: aquele que faz o bom funcionamento da res pública da boa-fé e virtude dos governantes. (...) a liberdade de alma, com efeito, é uma virtude interior e privada. A virtude necessária à Cidade é a segurança.
(...)
Quando Maquiavel afirma que em toda Cidade há dois desejos opostos, o dos Grandes, que desejam comandar e oprimir, e o do Povo, que não deseja ser comandado nem oprimido, apresenta a divisão social e o problema pr ela acarretado: a tendência de ver no poder político o pólo imaginário que unifica o dividido. Quando Espinosa afirma que todos os homens são movidos por dois desejos antagônicos, isto é, que todos desejam governar e ninguém deseja ser governado, transfere para o interior de cada sujeito a divisão que Maquiavel pusera na sociedade. (...) A tirania é o instante no qual o poder perde seu lugar público para aderir às figuras empíricas de seus ocupantes. (...) a tese democrática pode ser compreendida (...) porque nela ninguém pode identificar-se com o próprio poder. (...) a questão do Estado não é a da segurança, mas a da liberdade.
(...) O homem é zoon politikon e, portanto, a Cidade também é “por natureza”. O que distingue, portanto, uma cidade de outra não pe a natureza, mas a lei. (...) Aristóteles distingue entre o partilhável e participável. O partilhável diz respeito aos bens matérias necessários à sobrevivência individual e coletiva. O participável concerne ao que não pode ser repartido nem partilhado mas apenas participado – trata-se do poder. (...) A igualdade (econômica) não visa, portanto, igualar os desiguais, mas igualar seus direitos a partilha dos bens materiais. (...) O ponto de partida não é a desigualdade, mas a igualdade.
(...)
A Cidade nascida do medo da morte engendra a tirania. Em contrapartida, a Cidade que deseja a vida é aquela que, sendo respeitada pelos cidadãos, não é odiada por eles, e por isso não teme ter todos os cidadãos armados, excluindo, portanto, a necessidade do salvador providencial em quem se concentraria todo o poder. A única Cidade que não teme o povo armado é a democracia. Por que? Porque se trata de uma Cidade que não permite a liberdade, mas é livre. (...) A Cidade é que precisa ser livre, para que a igualdade política possa ser instaurada.
(...)
A democracia como questão histórica
Materialismo Dialético e Histórico
O conjunto das relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política, à qual correspondem formas de consciência determinadas.
Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é seu ser social que determina sua consciência.
A história do pensar e do querer do homem é determinada pelas mudanças da situação econômica das relações de propriedade, das condições de trabalho e produção.
terça-feira, 23 de agosto de 2011
… Não há sujeito…
“Em muitas pessoas já é um descaramento dizerem ‘eu’.”
(T. W. Adorno)
“Todos são livres para dançar e para se divertir, do mesmo modo que, desde a neutralização histórica da religião, são livres para entrar em qualquer uma das inúmeras seitas. Mas a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa”.
(T. W. Adorno)
“não há sempre sujeito, ou sujeitos. (...) Digamos que o sujeito é raro, tão raro quanto as verdades”.
(A. Badiou)
Afecto, Percepto e Concepto
(…)
Em Filosofia, a elaboração dos conceitos tende para estes três pólos: o concepto (novas maneiras de pensar), o afecto (novas maneiras de sentir) e o percepto (novas maneiras de ver e ouvir). Esta constelação gera um estado de tensão, que significa que o conceito se movimenta. O conceito não se move apenas em si mesmo, mas também nas coisas em nós: ele nos inspira novos afectos e perceptos, que constituem a compreensão das coisas e de nós mesmos. Graças, ou devido a esta tensão, que gera tal movimento, o conceito não é algo estático, mas, sim, dinâmico; quer dizer: nossas idéias, convicções, verdades, enfim, mudam ao longo da nossa existência.
(…)
Giller Deleuze
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens–Fragmento
À medida que as idéias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração se exercitam, o gênero humano continua a domesticar-se, as ligações se ampliam e os vínculos se estreitam. Adquiriu-se o costume de reunir-se diante das cabanas ou ao redor de uma grande árvore: o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se o divertimento e sobretudo a ocupação dos homens e das mulheres ociosos e arrebanhados. Cada um começou a olhar os outros e a querer ser olhado, e a estima pública passou a ter valor. Quem cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais hábil, ou o mais eloqüente, tornou-se o mais considerado; e esse foi o primeiro passo para a desigualdade e, ao mesmo tempo, para o vício: dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, de outro, a vergonha e a inveja, e a fermentação causada por esses novos levedos produziu enfim compostos funestos para a felicidade e a inocência.
Jean-Jacques Rousseau
Max Weber e a Ética Protestante…
Max Weber
* 21/04/1864, Erturt, Alemanha
† 14/06/1920, Munique, Alemanha
Weber é um dos fundadores da Sociologia, autor de "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo". Viveu no período em que as primeiras disputas sobre a metodologia das ciências sociais começavam a surgir na Europa, sobretudo em seu país, a Alemanha. Filho de uma família de classe média alta, com o pai advogado, Weber encontrou em sua casa uma atmosfera intelectualmente estimulante. Ainda era criança quando se mudaram para Berlim. Em 1882 foi para a Faculdade de Direito de Heidelberg. Um ano depois transferiu-se para Estrasburgo, onde prestou o serviço militar.
Em 1884 reiniciou os estudos universitários, em Göttingen e Berlim, dedicando-se as áreas de economia, história, filosofia e direito. Trabalhou na Universidade de Berlim como livre-docente, ao mesmo tempo em que era assessor do governo. Cinco anos depois, escreveu sua tese de doutoramento sobre a história das companhias de comércio durante a Idade Média. A seguir escreveu a tese "A História das Instituições Agrárias". Casou-se, em 1893, com Marianne Schnitger e, no ano seguinte, tornou-se professor de economia na Universidade de Freiburg, transferindo-se, em 1896, para a de Heidelberg.
Depois disso, passou por um período de perturbações nervosas que o levaram a deixar o trabalho. Só voltou à atividade em 1903, participando da direção de uma das mais destacadas publicações de ciências sociais da Alemanha. No ano seguinte publicou ensaios sobre a objetividade nas ciências sociais e a primeira parte de "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", que se tornaria sua obra mais conhecida e é de fato fundamental para a reflexão sociológica.
Em 1906 redigiu dois ensaios sobre a Rússia: "A Situação da Democracia Burguesa na Rússia" e "A Transição da Rússia para o Constitucionalismo de Fachada". No início da Primeira Guerra Mundial, Weber, no posto de capitão, foi encarregado de administrar nove hospitais em Heidelberg.
Quando a guerra terminou, mudou-se para Viena, onde deu o curso "Uma Crítica Positiva da Concepção Materialista da História". Em 1919 pronunciou conferências em Munique, publicadas sob o título de "História Econômica Geral". No ano seguinte faleceu em consequência de uma pneumonia aguda.
Fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/max-weber.jhtm
“A ética protestante e o espírito do capitalismo”, Max Weber.
Esboço apenas para o estudo
Fragmentos de texto
Ascetismo
O ascetismo ou asceticismo é uma filosofia de vida na qual são refreados os prazeres mundanos, onde se propõem a austeridade.
Aquelas que praticam um estilo de vida austero definem suas praticas como virtuosa e perseguem o objetivo de adquirir uma grande espiritualidade. Muitos ascéticos acreditam que a purificação do corpo ajuda a purificação da alma, e de fato a obter a compreensão de uma divindade ou encontrar a paz interior. Isto também pode ser obtido com a automortificação, rituais, ou uma severa renúncia ao prazer. Entretanto, ascéticos defendem que essa restrições auto-impostas trazem grande liberdade em várias áreas de suas vidas, tais como aumento das habilidades para pensar limpidamente e para resistir a potenciais impulsos destrutivos.
Etimologia
O adjetivo "ascetismo" deriva de um termo grego askesis (prática, treinamento ou exercício). Originalmente associado com qualquer forma de disciplina ou filosofia prática, o termo ascetismo significa alguém que pratica uma renúncia ao mundo com objetivo de adquirir um alto intelecto e espírito.
Muitos guerreiros e atletas, na sociedade Grega, utilizaram a disciplina askesis para conseguir uma melhor forma corporal e graça. A forma de vida, a doutrina, ou os princípios de alguém que se engaja no askesis são classificados como asceticismo.
"Ordinário" versus "extraordinário"
Max Weber fez uma distinção entre os asceticismo innerweltliche e ausserweltliche, que significam, respectivamente, "dentro do mundo" e "fora do mundo". E. Carvalho traduziu isto como "ordinário" e "extraordinário" (alguns tradutores usam "mundo interior", mas isto tem diferentes conotações no português e não é o que Weber tinha em mente).
O ascetismo "extraordinário" refere-se a pessoas que desistem do mundo para viver uma vida ascética (o que inclui os monges que vivem comunitariamente em monastérios, bem como os ermitões que vivem sozinhos). O asceticismo "Ordinário" refere-se a pessoas que vivem vidas ascéticas mas não se retiram do mundo.
Weber classificou esta distinção originalmente na Reforma Protestante, mais tarde tornou-se secularizado, assim o conceito pertence a ambos, religiosos e ascetas seculares.
David McClelland sugeriu que o asceticismo ordinário se restringe a agir contra alvos pré-identificados como prazeres que distraem pessoas de alguma inspiração divina, e podem aceitar prazeres que não sejam distracionistas. Como por exemplo, ele apontou que Quakers tem historicamente se objetado a usar roupas coloridas, apesar de que mesmo sem cores as roupas dos Quakers sejam feitas de matérias muito caras. A cores foram consideradas distracionistas, mas o material não. Amish usam critérios similares para tomarem decisões sobre que tecnologias modernas podem usar e quais devem evitar.
(McClelland, The Achieving Society, 1961)
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ascetismo_(filosofia)
Burocracia
“A burocracia, no sentido weberiano (...) é a organização permanente da cooperação entre numerosos indivíduos, em que cada um exerce uma função especializada (...)
A impessoalidade é essencial à natureza da burocracia, onde teoricamente cada um deve conhecer as leis e agir em função das ordens abstratas de uma regulamentação estrita.”
Raimund Aron explicando Weber.
Pressupostos ideológicos
– A crença na realidade em si e para si da sociedade (a racionalidade dos meios de ação inutiliza a racionalidade dos fins).
– Existência de um sistema de autoridade fundado na hierarquia de tal modo que subir um degrau da escala corresponde à conquista de um novo status (o cargo, e não o ocupante, possui qualidades determinadas).
– Processo de identificação dos membros com a função que exercem e o cargo que ocupam.
– A direção não transcende a burocracia, mas faz parte dela sob forma de administração, isto é, a dominação permanece oculta ou dissimulada graças à crença em uma ratio administrativa (dirigentes e dirigidas pareçam ser comandados pelos imperativos racionais.
Valores do Protestantismo
– A disciplina ascética
– A poupança
– A austeridade
– A vocação, o dever e a propensão ao trabalho
Formação de uma nova mentalidade, um ethos – valores éticos propícios ao capitalismo na família protestante
– Filhos criados para o ensino especializado e para o trabalho fabril
– Optando sempre por atividades mais adequadas à obtenção de lucro
– Preferindo o cálculo e os estudos técnicos ao estudo humanístico
As quatro causas do agir social
– Comportamento racional em relação a um fim (engenheiro constrói uma casa).
– Ação racional em relação a um valor (marido que afasta a tentação de adultério por fidelidade à esposa).
– Ação afetiva (ditada pela paixão ou estado de espírito do momento).
– Ação tradicional (ditada pelos hábitos e costumes adquiridos).
Análise e principais aspectos
– A relação entre a religião e a sociedade não se dá por meios institucionais, mas por intermédio de valores introjetados nos indivíduos e transformados em motivos da ação social. A motivação do protestante é o trabalho, enquanto dever e vocação.
– O motivo que mobiliza internamente os indivíduos é consciente: sair-se bem na profissão, mostrando sua própria virtude e vocação, e renunciando aos prazeres materiais; o protestante puritano se adequa facilmente ao mercado de trabalho, acumula capital e o reinveste produtivamente.
– Ao cientista cabe estabelecer conexões entre a motivação dos indivíduos e os efeitos de sua ação no meio social.
– O capitalismo é uma organização econômica racional assentada no trabalho livre e orientada para um mercado real.
domingo, 21 de agosto de 2011
A Razão Instrumental
Digamos logo que, segundo Horkheimer, o conceito de racionalidade que está na base da civilização industrial está podre pela raiz: "Se quiséssemos falar de doença da razão, essa doença deveria ser entendida não como mal que atacou a razão em dado momento histórico, e sim como algo inseparável da natureza da razão na civilização, assim como a conhecemos até aqui. A doença da razão está no fato de que ela nasceu da necessidade humana de dominar a natureza".
Essa vontade de dominar a natureza, de compreender suas "leis" para submetê-la, exigiu a instauração de uma organização burocrática e impessoal, que, em nome do triunfo da razão sobre a natureza, chegou a reduzir o homem a simples instrumento. Naturalmente, as possibilidades atuais eram inimagináveis nos tempos passados: hoje, o progresso tecnológico põe à disposição de todos objetos e bens que antes só existiam nos sonhos dos utopistas. E, no entanto, diz Horkheimer, "pesa sobre todos a sensação de medo, e desilusão: hoje, as esperanças da humanidade parecem mais longe de se concretizarem do que eram nas épocas bem mais obscuras em que foram formuladas pela primeira vez".
Essa sensação de medo e desilusão brota do fato de que, "no momento mesmo em que os conhecimentos técnicos ampliam o horizonte do pensamento e da ação dos homens, diminuem ao contrário a autonomia do homem como indivíduo, a força de sua imaginação e a sua independência de juízo. O progresso dos recursos técnicos, que poderia servir para iluminar a mente do homem, se acompanha pelo processo de desumanização, de tal modo que o progresso ameaça destruir precisamente o objetivo que deveria realizar: a idéia do homem".
E a idéia do homem, isto é, a sua humanidade, a sua emancipação, o seu poder de crítica e de criatividade se acham ameaçados porque o desenvolvimento do "sistema" da civilização industrial substituiu os fins pelos meios e transformou a razão em instrumento para atingir fins, dos quais a razão não sabe mais nada. A partir do momento que nasce, constata amargamente Horkheimer, "o indivíduo sente-se repetindo continuamente uma lição: só existe um modo de abrir caminho no mundo, o de renunciar a si mesmo. Só se alcança o sucesso através de limitações (...). O indivíduo, pois, deve a salvação ao mais antigo expediente biológico de sobrevivência, o mimetismo".
A filosofia da civilização industrial não é a filosofia da razão objetiva, segundo a qual "a razão é um princípio imanente à realidade". Ela é muito mais a filosofia da razão subjetiva, que sustenta ser a razão unicamente "a capacidade de calcular as probabilidades e coordenar os meios adequados com dado fim", afirmando também que "nenhum fim é razoável em si e não teria sentido procurar estabelecer, entre dois fins, qual pode ser mais 'razoável' do que outro". Por outros termos, segundo essa filosofia, "o pensamento pode servir para qualquer objetivo, bom ou mau. E instrumento de todas as ações da sociedade, mas não deve procurar estabelecer as normas da vida social ou individual, que se supõem serem estabelecidas por outras forças".
A razão, portanto, não nos dá mais verdades objetivas e universais às quais possamos nos agarrar, mas somente instrumentos para objetivos já estabelecidos: não é ela que fundamenta e estabelece o que sejam o bem e o mal, como base para orientarmos nossa vida; quem decide sobre o bem e o mal é agora o "sistema", ou seja, o poder. A razão é agora ancilla administrationis e, "tendo renunciado à sua autonomia, a razão tomou-se instrumento. No aspecto formalista da razão subjetiva, destacado pelo positivismo, põe-se em relevo a sua independência em relação ao conteúdo objetivo; no aspecto instrumental, destacado pelo pragmatismo, põe-se em relevo sua submissão a conteúdos heterônomos. A razão encontra-se agora completamente subjugada pelo processo social: o seu valor instrumental, a sua função de meio para dominar os homens e a natureza, tomou-se o único critério".
Desse modo, o "sistema", a "administração", ou seja, a civilização industrial, põe o homem em sua "prateleira" e a ele circunscreve o "seu destino"; transforma as idéias em "coisas" desde que "a verdade não é mais fim suficiente em si mesmo"; degrada a natureza a simples matéria, que "deve ser dominada sem outro fim senão, precisamente, o de dominá-la.
REALE, Giovanni & Antiseri, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. São Paulo, Paulinas, 1991, vol. 3, pp. 847-8.
Como vejo o mundo
Minha condição humana me fascina. Conheço o limite de minha existência e ignoro por que estou nesta terra, mas às vezes o pressinto. Pela experiência cotidiana, concreta e intuitiva, eu me descubro vivo para alguns homens, porque o sorriso e a felicidade deles me condicionam inteiramente, mas ainda para outros que, por acaso, descobri terem emoções semelhantes às minhas.
E cada dia, milhares de vezes, sinto minha vida — corpo e alma — integralmente tributária do trabalho dos vivos e dos mortos. Gostaria de dar tanto quanto recebo e não paro de receber. Mas depois experimento o sentimento satisfeito de minha solidão e quase demonstro má consciência ao exigir ainda alguma coisa de outrem. Vejo os homens se diferenciarem pelas classes sociais e sei que nada as justifica a não ser pela violência. Sonho ser acessível e desejável para todos uma vida simples e natural, de corpo e de espírito.
Recuso-me a crer na liberdade e neste conceito filosófico. Eu não sou livre, e sim às vezes constrangido por pressões estranhas a mim, outras vezes por convicções íntimas. Ainda jovem, fiquei impressionado pela máxima de Schopenhauer: “O homem pode, é certo, fazer o que quer, mas não pode querer o que quer”; e hoje, diante do espetáculo aterrador das injustiças humanas, esta moral me tranquiliza e me educa. Aprendo a tolerar aquilo que me faz sofrer. Suporto então melhor meu sentimento de responsabilidade. Ele já não me esmaga e deixo de me levar, a mim ou aos outros, a sério demais. Vejo então o mundo com bom humor. Não posso me preocupar com o sentido ou a finalidade de minha existência, nem da dos outros, porque, do ponto de vista estritamente objetivo, é absurdo. E no entanto, como homem, alguns ideais dirigem minhas ações e orientam meus juízos. Porque jamais considerei o prazer e a felicidade como um fim em si e deixo este tipo de satisfação aos indivíduos reduzidos a instintos de grupo.
Em compensação, foram ideais que suscitaram meus esforços e me permitiram viver. Chamam-se o bem, a beleza, a verdade. Se não me identifico com outras sensibilidades semelhantes à minha e se não me obstino incansavelmente em perseguir este ideal eternamente inacessível na arte e na ciência, a vida perde todo o sentido para mim. Ora, a humanidade se apaixona por finalidades irrisórias que têm por nome a riqueza, a glória, o luxo. Desde moço já as desprezava. Tenho forte amor pela justiça, pelo compromisso social. Mas com muita dificuldade me integro com os homens e em suas comunidades. Não lhes sinto a falta porque sou profundamente um solitário. Sinto-me realmente ligado ao Estado, à pátria, a meus amigos, a minha família no sentido completo do termo. Mas meu coração experimenta, diante desses laços, curioso sentimento de estranheza, de afastamento e a idade vem acentuando ainda mais essa distância. Conheço com lucidez e sem prevenção as fronteiras da comunicação e da harmonia entre mim e os outros homens.
Com isso perdi algo da ingenuidade ou da inocência, mas ganhei minha independência. Já não mais firmo uma opinião, um hábito ou um julgamento sobre outra pessoa. Testei o homem. É inconsistente.
Albert Einstein, in Como vejo o Mundo
Citação
“Em Descartes o filosofar parte do: ‘Penso, logo existo’. Com este pobre e aleatório ponto de partida, a filosofia é irremediavelmente empurrada para o abstrato e não encontra mais o acesso à ética... A filosofia deve partir da mais imediata constatação da nossa consciência: ‘Eu sou vida, que quer viver, no meio de vida, que quer viver’”.
Albert Schweitzer, in A ética do respeito pela vida
Da (In-)tolerância
Alguns dos Mitos fundadores da cultura ocidental revelam o quanto a possibilidade da tolerância está em nós mesmos. Em Gênesis há dois mitos que me impressionaram profundamente quando os conheci a partir de uma interpretação psicanalítica (E. Fromm). Ao experimentarem o fruto da árvore do conhecimento – que, diga-se de passagem, antes de ser um ato de desobediência, foi um ato de libertação –, abrem-se os olhos de Adão e Eva. Eles vêem, e vêem que são diferentes um do outro; ficam assustados, sim, mas logo tomam uma atitude tranqüilizadora, cada um corrigindo em si o que teria assustado o outro. Aliás, é o que havia ali que o tornava diferente. É completamente descabido explicar tal atitude com algum sentimento de pudor que naquele momento da história – anterior à repressão sexual – ainda não havia. Adão e Eva tiveram, assim, a felicidade de se aceitarem – agora conscientemente – e de conviverem com o diferente, construindo, assim, uma harmonia que seria a base para o desenvolvimento da humanidade.
No segundo mito, Deus, a partir de Adão, cria Eva: é a genialidade da linguagem simbólica que, aqui, mostra que um é parte, quer dizer, componente do outro; há outro somente enquanto manifestação, existência física, mas não enquanto essência. Diga-se, há uma só e mesma essência humana. Há um só homem. Não há outro. Porém, há o diferente, que por sua vez aponta para o semelhante. E é justamente isso que evoca a tolerância. Perece-me claro que o mito fala do homem na sua pluralidade, pois seria novamente uma argumentação empobrecida se atribuíssemos a esse mito a tarefa de “regulamentar” o convívio social de cônjuges. A grandeza e a atemporalidade do mito está em falar da humanidade enquanto o Uno.
Os homens, em essência, são um e o mesmo, e sim, são semelhantes. E não há outro. Há o outro, sim, o criamos: o 11 de setembro e Abu Ghraib são manifestações da intolerância, do outro, uma invenção humana que agora age – a insanidade. Talvez, a maldade.
Inventamos o outro. Não mais enxergamos o semelhante, não mais Adão se reconhece em Eva, nem Eva reconhece-se em Adão. Assim aconteceu Auschwitz, que jamais podemos esquecer, que dividiu a história da humanidade em antes e depois.
A humanidade é uma construção, e o homem só encontra a si mesmo com outro ser humano (K. Jaspers). As diferenças são riqueza – são riquezas enquanto diferenças culturais, mas são pobrezas enquanto diferenças econômicas. São as diferentes notas que compõem o acorde, portanto a harmonia pressupõe os diferentes, assim como um acordo de paz pressupunha inimigos.
Quando os nossos caminhos se cruzam, deixamos marcas uns nos outros. Os caminhos do Ocidente se cruzaram – sim e não – com os caminhos do Oriente. Como assim? Primeiro, não foram caminhos de humanidade e sim de mercadorias. A África, durante anos, significava mão-de-obra e matéria-prima e, sobretudo no século XX, o Oriente Médio foi visto como reserva de combustível. A moderna economia de mercado, o capitalismo, hoje se mostra incapaz de apontar uma solução para o problema africano. Há interesse, e não estima. Ao mundo árabe sequer tentamos compreender. O olhar do Ocidente sobre o Oriente lembra Tolstoi: “Há quem entra numa floresta e só enxerga lenha”, que lembra A. Gide: “Que a importância esteja no teu olhar, e não na coisa olhada”. Perdeu-se no olhar a capacidade de enxergar no diferente o mesmo. Ficou desaprendida a lição em Gênesis.
Cristianismo e Islamismo: duas religiões que têm a mesma origem. A intolerância manifesta. Não é nem necessário que um entenda o outro, mas, sim, é imprescindível que o compreenda, com-preenda. Entre os homens, estamos sempre um com o outro.
Olhando a humanidade, podemos observar que temos poucas convenções ditas universais. Os direitos humanos são a coisa mínima que conseguimos convencionar, e devem permanecer como uma causa de e para todos os homens. Qualquer violação há de ser denunciada, sempre. “Não há liberdade enquanto houver flagelos” (A. Camus). É imperdoável a tolerância para com a intolerância. Um exemplo nosso recente: o Chefe de Estado brasileiro omitiu-se em falar de violações dos direitos humanos em Cuba, deixou de falar disso para o Chefe de Estado cubano. Era assunto interno. Não era. E sim, universal, e a própria Constituição do Brasil tem como princípio a observação dos direitos humanos nas relações internacionais. E a justificativa para a não-intervenção, a suposta amizade entre os dois Chefes de Estado, só aumenta a gravidade do caso – o descaso – e realça toda a pobreza dessa argumentação. “A ingenuidade é exatamente a convivência pacífica com o não-justificado” (E. Husserl).
Se inicialmente falamos da tolerância como paciência e insistimos na aceitação do diferente, devemos, lembrando que as diferenças econômicas são pobrezas, insistir, agora, na inversão: a de sermos intolerantes e impacientes para com a fome e a miséria, e entender que o programa Fome Zero, entre outras coisas do aqui-agora, nada mais é que a manifestação da tolerância com o intolerável.