Digamos logo que, segundo Horkheimer, o conceito de racionalidade que está na base da civilização industrial está podre pela raiz: "Se quiséssemos falar de doença da razão, essa doença deveria ser entendida não como mal que atacou a razão em dado momento histórico, e sim como algo inseparável da natureza da razão na civilização, assim como a conhecemos até aqui. A doença da razão está no fato de que ela nasceu da necessidade humana de dominar a natureza".
Essa vontade de dominar a natureza, de compreender suas "leis" para submetê-la, exigiu a instauração de uma organização burocrática e impessoal, que, em nome do triunfo da razão sobre a natureza, chegou a reduzir o homem a simples instrumento. Naturalmente, as possibilidades atuais eram inimagináveis nos tempos passados: hoje, o progresso tecnológico põe à disposição de todos objetos e bens que antes só existiam nos sonhos dos utopistas. E, no entanto, diz Horkheimer, "pesa sobre todos a sensação de medo, e desilusão: hoje, as esperanças da humanidade parecem mais longe de se concretizarem do que eram nas épocas bem mais obscuras em que foram formuladas pela primeira vez".
Essa sensação de medo e desilusão brota do fato de que, "no momento mesmo em que os conhecimentos técnicos ampliam o horizonte do pensamento e da ação dos homens, diminuem ao contrário a autonomia do homem como indivíduo, a força de sua imaginação e a sua independência de juízo. O progresso dos recursos técnicos, que poderia servir para iluminar a mente do homem, se acompanha pelo processo de desumanização, de tal modo que o progresso ameaça destruir precisamente o objetivo que deveria realizar: a idéia do homem".
E a idéia do homem, isto é, a sua humanidade, a sua emancipação, o seu poder de crítica e de criatividade se acham ameaçados porque o desenvolvimento do "sistema" da civilização industrial substituiu os fins pelos meios e transformou a razão em instrumento para atingir fins, dos quais a razão não sabe mais nada. A partir do momento que nasce, constata amargamente Horkheimer, "o indivíduo sente-se repetindo continuamente uma lição: só existe um modo de abrir caminho no mundo, o de renunciar a si mesmo. Só se alcança o sucesso através de limitações (...). O indivíduo, pois, deve a salvação ao mais antigo expediente biológico de sobrevivência, o mimetismo".
A filosofia da civilização industrial não é a filosofia da razão objetiva, segundo a qual "a razão é um princípio imanente à realidade". Ela é muito mais a filosofia da razão subjetiva, que sustenta ser a razão unicamente "a capacidade de calcular as probabilidades e coordenar os meios adequados com dado fim", afirmando também que "nenhum fim é razoável em si e não teria sentido procurar estabelecer, entre dois fins, qual pode ser mais 'razoável' do que outro". Por outros termos, segundo essa filosofia, "o pensamento pode servir para qualquer objetivo, bom ou mau. E instrumento de todas as ações da sociedade, mas não deve procurar estabelecer as normas da vida social ou individual, que se supõem serem estabelecidas por outras forças".
A razão, portanto, não nos dá mais verdades objetivas e universais às quais possamos nos agarrar, mas somente instrumentos para objetivos já estabelecidos: não é ela que fundamenta e estabelece o que sejam o bem e o mal, como base para orientarmos nossa vida; quem decide sobre o bem e o mal é agora o "sistema", ou seja, o poder. A razão é agora ancilla administrationis e, "tendo renunciado à sua autonomia, a razão tomou-se instrumento. No aspecto formalista da razão subjetiva, destacado pelo positivismo, põe-se em relevo a sua independência em relação ao conteúdo objetivo; no aspecto instrumental, destacado pelo pragmatismo, põe-se em relevo sua submissão a conteúdos heterônomos. A razão encontra-se agora completamente subjugada pelo processo social: o seu valor instrumental, a sua função de meio para dominar os homens e a natureza, tomou-se o único critério".
Desse modo, o "sistema", a "administração", ou seja, a civilização industrial, põe o homem em sua "prateleira" e a ele circunscreve o "seu destino"; transforma as idéias em "coisas" desde que "a verdade não é mais fim suficiente em si mesmo"; degrada a natureza a simples matéria, que "deve ser dominada sem outro fim senão, precisamente, o de dominá-la.
REALE, Giovanni & Antiseri, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. São Paulo, Paulinas, 1991, vol. 3, pp. 847-8.
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