domingo, 21 de agosto de 2011

Da (In-)tolerância

Ao olharmos o mundo hoje, principalmente através dos noticiários, podemos constatar que a época em que vivemos é a manifestação de intolerâncias, ou melhor, a negação do homem pelo homem. A palavra tolerância, primeiramente, significa paciência – tenho comigo, a minha paciência com o diferente, o outro. Portanto, toda problemática em torno da (in-)tolerância parece não girar em torno do conceito em si, mas sim em torno da compreensão deste.
Alguns dos Mitos fundadores da cultura ocidental revelam o quanto a possibilidade da tolerância está em nós mesmos. Em Gênesis há dois mitos que me impressionaram profundamente quando os conheci a partir de uma interpretação psicanalítica (E. Fromm). Ao experimentarem o fruto da árvore do conhecimento – que, diga-se de passagem, antes de ser um ato de desobediência, foi um ato de libertação –, abrem-se os olhos de Adão e Eva. Eles vêem, e vêem que são diferentes um do outro; ficam assustados, sim, mas logo tomam uma atitude tranqüilizadora, cada um corrigindo em si o que teria assustado o outro. Aliás, é o que havia ali que o tornava diferente. É completamente descabido explicar tal atitude com algum sentimento de pudor que naquele momento da história – anterior à repressão sexual – ainda não havia. Adão e Eva tiveram, assim, a felicidade de se aceitarem – agora conscientemente – e de conviverem com o diferente, construindo, assim, uma harmonia que seria a base para o desenvolvimento da humanidade.
No segundo mito, Deus, a partir de Adão, cria Eva: é a genialidade da linguagem simbólica que, aqui, mostra que um é parte, quer dizer, componente do outro; há outro somente enquanto manifestação, existência física, mas não enquanto essência. Diga-se, há uma só e mesma essência humana. Há um só homem. Não há outro. Porém, há o diferente, que por sua vez aponta para o semelhante. E é justamente isso que evoca a tolerância. Perece-me claro que o mito fala do homem na sua pluralidade, pois seria novamente uma argumentação empobrecida se atribuíssemos a esse mito a tarefa de “regulamentar” o convívio social de cônjuges. A grandeza e a atemporalidade do mito está em falar da humanidade enquanto o Uno.
Os homens, em essência, são um e o mesmo, e sim, são semelhantes. E não há outro. Há o outro, sim, o criamos: o 11 de setembro e Abu Ghraib são manifestações da intolerância, do outro, uma invenção humana que agora age – a insanidade. Talvez, a maldade.
Inventamos o outro. Não mais enxergamos o semelhante, não mais Adão se reconhece em Eva, nem Eva reconhece-se em Adão. Assim aconteceu Auschwitz, que jamais podemos esquecer, que dividiu a história da humanidade em antes e depois.
A humanidade é uma construção, e o homem só encontra a si mesmo com outro ser humano (K. Jaspers). As diferenças são riqueza – são riquezas enquanto diferenças culturais, mas são pobrezas enquanto diferenças econômicas. São as diferentes notas que compõem o acorde, portanto a harmonia pressupõe os diferentes, assim como um acordo de paz pressupunha inimigos.
Quando os nossos caminhos se cruzam, deixamos marcas uns nos outros. Os caminhos do Ocidente se cruzaram – sim e não – com os caminhos do Oriente. Como assim? Primeiro, não foram caminhos de humanidade e sim de mercadorias. A África, durante anos, significava mão-de-obra e matéria-prima e, sobretudo no século XX, o Oriente Médio foi visto como reserva de combustível. A moderna economia de mercado, o capitalismo, hoje se mostra incapaz de apontar uma solução para o problema africano. Há interesse, e não estima. Ao mundo árabe sequer tentamos compreender. O olhar do Ocidente sobre o Oriente lembra Tolstoi: “Há quem entra numa floresta e só enxerga lenha”, que lembra A. Gide: “Que a importância esteja no teu olhar, e não na coisa olhada”. Perdeu-se no olhar a capacidade de enxergar no diferente o mesmo. Ficou desaprendida a lição em Gênesis.
Cristianismo e Islamismo: duas religiões que têm a mesma origem. A intolerância manifesta. Não é nem necessário que um entenda o outro, mas, sim, é imprescindível que o compreenda, com-preenda. Entre os homens, estamos sempre um com o outro.
Olhando a humanidade, podemos observar que temos poucas convenções ditas universais. Os direitos humanos são a coisa mínima que conseguimos convencionar, e devem permanecer como uma causa de e para todos os homens. Qualquer violação há de ser denunciada, sempre. “Não há liberdade enquanto houver flagelos” (A. Camus). É imperdoável a tolerância para com a intolerância. Um exemplo nosso recente: o Chefe de Estado brasileiro omitiu-se em falar de violações dos direitos humanos em Cuba, deixou de falar disso para o Chefe de Estado cubano. Era assunto interno. Não era. E sim, universal, e a própria Constituição do Brasil tem como princípio a observação dos direitos humanos nas relações internacionais. E a justificativa para a não-intervenção, a suposta amizade entre os dois Chefes de Estado, só aumenta a gravidade do caso – o descaso – e realça toda a pobreza dessa argumentação. “A ingenuidade é exatamente a convivência pacífica com o não-justificado” (E. Husserl).
Se inicialmente falamos da tolerância como paciência e insistimos na aceitação do diferente, devemos, lembrando que as diferenças econômicas são pobrezas, insistir, agora, na inversão: a de sermos intolerantes e impacientes para com a fome e a miséria, e entender que o programa Fome Zero, entre outras coisas do aqui-agora, nada mais é que a manifestação da tolerância com o intolerável.
A.G.









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