terça-feira, 23 de agosto de 2011

… Não há sujeito…

 

“Em muitas pessoas já é um descaramento dizerem ‘eu’.”

(T. W. Adorno)

 

“Todos são livres para dançar e para se divertir, do mesmo modo que, desde a neutralização histórica da religião, são livres para entrar em qualquer uma das inúmeras seitas. Mas a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa”.

(T. W. Adorno)

 

“não há sempre sujeito, ou sujeitos. (...) Digamos que o sujeito é raro, tão raro quanto as verdades”.

(A. Badiou)

Afecto, Percepto e Concepto

(…)

Em Filosofia, a elaboração dos conceitos tende para estes três pólos: o concepto (novas maneiras de pensar), o afecto (novas maneiras de sentir) e o percepto (novas maneiras de ver e ouvir). Esta constelação gera um estado de tensão, que significa que o conceito se movimenta. O conceito não se move apenas em si mesmo, mas também nas coisas em nós: ele nos inspira novos afectos e perceptos, que constituem a compreensão das coisas e de nós mesmos. Graças, ou devido a esta tensão, que gera tal movimento, o conceito não é algo estático, mas, sim, dinâmico; quer dizer: nossas idéias, convicções, verdades, enfim, mudam ao longo da nossa existência.

(…)

Giller Deleuze

Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens–Fragmento

À medida que as idéias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração se exercitam, o gênero humano continua a domesticar-se, as ligações se ampliam e os vínculos se estreitam. Adquiriu-se o costume de reunir-se diante das cabanas ou ao redor de uma grande árvore: o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se o divertimento e sobretudo a ocupação dos homens e das mulheres ociosos e arrebanhados. Cada um começou a olhar os outros e a querer ser olhado, e a estima pública passou a ter valor. Quem cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais hábil, ou o mais eloqüente, tornou-se o mais considerado; e esse foi o primeiro passo para a desigualdade e, ao mesmo tempo, para o vício: dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, de outro, a vergonha e a inveja, e a fermentação causada por esses novos levedos produziu enfim compostos funestos para a felicidade e a inocência.

Jean-Jacques Rousseau

Max Weber e a Ética Protestante…

Max Weber

* 21/04/1864, Erturt, Alemanha

† 14/06/1920, Munique, Alemanha

Weber é um dos fundadores da Sociologia, autor de "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo". Viveu no período em que as primeiras disputas sobre a metodologia das ciências sociais começavam a surgir na Europa, sobretudo em seu país, a Alemanha. Filho de uma família de classe média alta, com o pai advogado, Weber encontrou em sua casa uma atmosfera intelectualmente estimulante. Ainda era criança quando se mudaram para Berlim. Em 1882 foi para a Faculdade de Direito de Heidelberg. Um ano depois transferiu-se para Estrasburgo, onde prestou o serviço militar.

Em 1884 reiniciou os estudos universitários, em Göttingen e Berlim, dedicando-se as áreas de economia, história, filosofia e direito. Trabalhou na Universidade de Berlim como livre-docente, ao mesmo tempo em que era assessor do governo. Cinco anos depois, escreveu sua tese de doutoramento sobre a história das companhias de comércio durante a Idade Média. A seguir escreveu a tese "A História das Instituições Agrárias". Casou-se, em 1893, com Marianne Schnitger e, no ano seguinte, tornou-se professor de economia na Universidade de Freiburg, transferindo-se, em 1896, para a de Heidelberg.

Depois disso, passou por um período de perturbações nervosas que o levaram a deixar o trabalho. Só voltou à atividade em 1903, participando da direção de uma das mais destacadas publicações de ciências sociais da Alemanha. No ano seguinte publicou ensaios sobre a objetividade nas ciências sociais e a primeira parte de "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", que se tornaria sua obra mais conhecida e é de fato fundamental para a reflexão sociológica.

Em 1906 redigiu dois ensaios sobre a Rússia: "A Situação da Democracia Burguesa na Rússia" e "A Transição da Rússia para o Constitucionalismo de Fachada". No início da Primeira Guerra Mundial, Weber, no posto de capitão, foi encarregado de administrar nove hospitais em Heidelberg.

Quando a guerra terminou, mudou-se para Viena, onde deu o curso "Uma Crítica Positiva da Concepção Materialista da História". Em 1919 pronunciou conferências em Munique, publicadas sob o título de "História Econômica Geral". No ano seguinte faleceu em consequência de uma pneumonia aguda.

Fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/max-weber.jhtm

“A ética protestante e o espírito do capitalismo”, Max Weber.

Esboço apenas para o estudo

Fragmentos de texto

Ascetismo

O ascetismo ou asceticismo é uma filosofia de vida na qual são refreados os prazeres mundanos, onde se propõem a austeridade.

Aquelas que praticam um estilo de vida austero definem suas praticas como virtuosa e perseguem o objetivo de adquirir uma grande espiritualidade. Muitos ascéticos acreditam que a purificação do corpo ajuda a purificação da alma, e de fato a obter a compreensão de uma divindade ou encontrar a paz interior. Isto também pode ser obtido com a automortificação, rituais, ou uma severa renúncia ao prazer. Entretanto, ascéticos defendem que essa restrições auto-impostas trazem grande liberdade em várias áreas de suas vidas, tais como aumento das habilidades para pensar limpidamente e para resistir a potenciais impulsos destrutivos.

Etimologia

O adjetivo "ascetismo" deriva de um termo grego askesis (prática, treinamento ou exercício). Originalmente associado com qualquer forma de disciplina ou filosofia prática, o termo ascetismo significa alguém que pratica uma renúncia ao mundo com objetivo de adquirir um alto intelecto e espírito.

Muitos guerreiros e atletas, na sociedade Grega, utilizaram a disciplina askesis para conseguir uma melhor forma corporal e graça. A forma de vida, a doutrina, ou os princípios de alguém que se engaja no askesis são classificados como asceticismo.

"Ordinário" versus "extraordinário"

Max Weber fez uma distinção entre os asceticismo innerweltliche e ausserweltliche, que significam, respectivamente, "dentro do mundo" e "fora do mundo". E. Carvalho traduziu isto como "ordinário" e "extraordinário" (alguns tradutores usam "mundo interior", mas isto tem diferentes conotações no português e não é o que Weber tinha em mente).

O ascetismo "extraordinário" refere-se a pessoas que desistem do mundo para viver uma vida ascética (o que inclui os monges que vivem comunitariamente em monastérios, bem como os ermitões que vivem sozinhos). O asceticismo "Ordinário" refere-se a pessoas que vivem vidas ascéticas mas não se retiram do mundo.

Weber classificou esta distinção originalmente na Reforma Protestante, mais tarde tornou-se secularizado, assim o conceito pertence a ambos, religiosos e ascetas seculares.

David McClelland sugeriu que o asceticismo ordinário se restringe a agir contra alvos pré-identificados como prazeres que distraem pessoas de alguma inspiração divina, e podem aceitar prazeres que não sejam distracionistas. Como por exemplo, ele apontou que Quakers tem historicamente se objetado a usar roupas coloridas, apesar de que mesmo sem cores as roupas dos Quakers sejam feitas de matérias muito caras. A cores foram consideradas distracionistas, mas o material não. Amish usam critérios similares para tomarem decisões sobre que tecnologias modernas podem usar e quais devem evitar.

(McClelland, The Achieving Society, 1961)

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ascetismo_(filosofia)

Burocracia

“A burocracia, no sentido weberiano (...) é a organização permanente da cooperação entre numerosos indivíduos, em que cada um exerce uma função especializada (...)

A impessoalidade é essencial à natureza da burocracia, onde teoricamente cada um deve conhecer as leis e agir em função das ordens abstratas de uma regulamentação estrita.”

Raimund Aron explicando Weber.

Pressupostos ideológicos

– A crença na realidade em si e para si da sociedade (a racionalidade dos meios de ação inutiliza a racionalidade dos fins).

– Existência de um sistema de autoridade fundado na hierarquia de tal modo que subir um degrau da escala corresponde à conquista de um novo status (o cargo, e não o ocupante, possui qualidades determinadas).

– Processo de identificação dos membros com a função que exercem e o cargo que ocupam.

– A direção não transcende a burocracia, mas faz parte dela sob forma de administração, isto é, a dominação permanece oculta ou dissimulada graças à crença em uma ratio administrativa (dirigentes e dirigidas pareçam ser comandados pelos imperativos racionais.

Valores do Protestantismo

– A disciplina ascética

– A poupança

– A austeridade

– A vocação, o dever e a propensão ao trabalho

Formação de uma nova mentalidade, um ethos – valores éticos propícios ao capitalismo na família protestante

– Filhos criados para o ensino especializado e para o trabalho fabril

– Optando sempre por atividades mais adequadas à obtenção de lucro

– Preferindo o cálculo e os estudos técnicos ao estudo humanístico

 

As quatro causas do agir social

– Comportamento racional em relação a um fim (engenheiro constrói uma casa).

– Ação racional em relação a um valor (marido que afasta a tentação de adultério por fidelidade à esposa).

– Ação afetiva (ditada pela paixão ou estado de espírito do momento).

– Ação tradicional (ditada pelos hábitos e costumes adquiridos).

Análise e principais aspectos

– A relação entre a religião e a sociedade não se dá por meios institucionais, mas por intermédio de valores introjetados nos indivíduos e transformados em motivos da ação social. A motivação do protestante é o trabalho, enquanto dever e vocação.

– O motivo que mobiliza internamente os indivíduos é consciente: sair-se bem na profissão, mostrando sua própria virtude e vocação, e renunciando aos prazeres materiais; o protestante puritano se adequa facilmente ao mercado de trabalho, acumula capital e o reinveste produtivamente.

– Ao cientista cabe estabelecer conexões entre a motivação dos indivíduos e os efeitos de sua ação no meio social.

– O capitalismo é uma organização econômica racional assentada no trabalho livre e orientada para um mercado real.

domingo, 21 de agosto de 2011

A Razão Instrumental

Digamos logo que, segundo Horkheimer, o conceito de racionalidade que está na base da civilização industrial está podre pela raiz: "Se quiséssemos falar de doença da razão, essa doença deveria ser entendida não como mal que atacou a razão em dado momento histórico, e sim como algo inseparável da natureza da razão na civilização, assim como a conhecemos até aqui. A doença da razão está no fato de que ela nasceu da necessidade humana de dominar a natureza".

Essa vontade de dominar a natureza, de compreender suas "leis" para submetê-la, exigiu a instauração de uma organização burocrática e impessoal, que, em nome do triunfo da razão sobre a natureza, chegou a reduzir o homem a simples instrumento. Naturalmente, as possibilidades atuais eram inimagináveis nos tempos passados: hoje, o progresso tecnológico põe à disposição de todos objetos e bens que antes só existiam nos sonhos dos utopistas. E, no entanto, diz Horkheimer, "pesa sobre todos a sensação de medo, e desilusão: hoje, as esperanças da humanidade parecem mais longe de se concretizarem do que eram nas épocas bem mais obscuras em que foram formuladas pela primeira vez".

Essa sensação de medo e desilusão brota do fato de que, "no momento mesmo em que os conhecimentos técnicos ampliam o horizonte do pensamento e da ação dos homens, diminuem ao contrário a autonomia do homem como indivíduo, a força de sua imaginação e a sua independência de juízo. O progresso dos recursos técnicos, que poderia servir para iluminar a mente do homem, se acompanha pelo processo de desumanização, de tal modo que o progresso ameaça destruir precisamente o objetivo que deveria realizar: a idéia do homem".

E a idéia do homem, isto é, a sua humanidade, a sua emancipação, o seu poder de crítica e de criatividade se acham ameaçados porque o desenvolvimento do "sistema" da civilização industrial substituiu os fins pelos meios e transformou a razão em instrumento para atingir fins, dos quais a razão não sabe mais nada. A partir do momento que nasce, constata amargamente Horkheimer, "o indivíduo sente-se repetindo continuamente uma lição: só existe um modo de abrir caminho no mundo, o de renunciar a si mesmo. Só se alcança o sucesso através de limitações (...). O indivíduo, pois, deve a salvação ao mais antigo expediente biológico de sobrevivência, o mimetismo".

A filosofia da civilização industrial não é a filosofia da razão objetiva, segundo a qual "a razão é um princípio imanente à realidade". Ela é muito mais a filosofia da razão subjetiva, que sustenta ser a razão unicamente "a capacidade de calcular as probabilidades e coordenar os meios adequados com dado fim", afirmando também que "nenhum fim é razoável em si e não teria sentido procurar estabelecer, entre dois fins, qual pode ser mais 'razoável' do que outro". Por outros termos, segundo essa filosofia, "o pensamento pode servir para qualquer objetivo, bom ou mau. E instrumento de todas as ações da sociedade, mas não deve procurar estabelecer as normas da vida social ou individual, que se supõem serem estabelecidas por outras forças".

A razão, portanto, não nos dá mais verdades objetivas e universais às quais possamos nos agarrar, mas somente instrumentos para objetivos já estabelecidos: não é ela que fundamenta e estabelece o que sejam o bem e o mal, como base para orientarmos nossa vida; quem decide sobre o bem e o mal é agora o "sistema", ou seja, o poder. A razão é agora ancilla administrationis e, "tendo renunciado à sua autonomia, a razão tomou-se instrumento. No aspecto formalista da razão subjetiva, destacado pelo positivismo, põe-se em relevo a sua independência em relação ao conteúdo objetivo; no aspecto instrumental, destacado pelo pragmatismo, põe-se em relevo sua submissão a conteúdos heterônomos. A razão encontra-se agora completamente subjugada pelo processo social: o seu valor instrumental, a sua função de meio para dominar os homens e a natureza, tomou-se o único critério".

Desse modo, o "sistema", a "administração", ou seja, a civilização industrial, põe o homem em sua "prateleira" e a ele circunscreve o "seu destino"; transforma as idéias em "coisas" desde que "a verdade não é mais fim suficiente em si mesmo"; degrada a natureza a simples matéria, que "deve ser dominada sem outro fim senão, precisamente, o de dominá-la.

REALE, Giovanni & Antiseri, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. São Paulo, Paulinas, 1991, vol. 3, pp. 847-8.

Como vejo o mundo

Minha condição humana me fascina. Conheço o limite de minha existência e ignoro por que estou nesta terra, mas às vezes o pressinto. Pela experiência cotidiana, concreta e intuitiva, eu me descubro vivo para alguns homens, porque o sorriso e a felicidade deles me condicionam inteiramente, mas ainda para outros que, por acaso, descobri terem emoções semelhantes às minhas.

E cada dia, milhares de vezes, sinto minha vida — corpo e alma — integralmente tributária do trabalho dos vivos e dos mortos. Gostaria de dar tanto quanto recebo e não paro de receber. Mas depois experimento o sentimento satisfeito de minha solidão e quase demonstro má consciência ao exigir ainda alguma coisa de outrem. Vejo os homens se diferenciarem pelas classes sociais e sei que nada as justifica a não ser pela violência. Sonho ser acessível e desejável para todos uma vida simples e natural, de corpo e de espírito.

Recuso-me a crer na liberdade e neste conceito filosófico. Eu não sou livre, e sim às vezes constrangido por pressões estranhas a mim, outras vezes por convicções íntimas. Ainda jovem, fiquei impressionado pela máxima de Schopenhauer: “O homem pode, é certo, fazer o que quer, mas não pode querer o que quer”; e hoje, diante do espetáculo aterrador das injustiças humanas, esta moral me tranquiliza e me educa. Aprendo a tolerar aquilo que me faz sofrer. Suporto então melhor meu sentimento de responsabilidade. Ele já não me esmaga e deixo de me levar, a mim ou aos outros, a sério demais. Vejo então o mundo com bom humor. Não posso me preocupar com o sentido ou a finalidade de minha existência, nem da dos outros, porque, do ponto de vista estritamente objetivo, é absurdo. E no entanto, como homem, alguns ideais dirigem minhas ações e orientam meus juízos. Porque jamais considerei o prazer e a felicidade como um fim em si e deixo este tipo de satisfação aos indivíduos reduzidos a instintos de grupo.

Em compensação, foram ideais que suscitaram meus esforços e me permitiram viver. Chamam-se o bem, a beleza, a verdade. Se não me identifico com outras sensibilidades semelhantes à minha e se não me obstino incansavelmente em perseguir este ideal eternamente inacessível na arte e na ciência, a vida perde todo o sentido para mim. Ora, a humanidade se apaixona por finalidades irrisórias que têm por nome a riqueza, a glória, o luxo. Desde moço já as desprezava. Tenho forte amor pela justiça, pelo compromisso social. Mas com muita dificuldade me integro com os homens e em suas comunidades. Não lhes sinto a falta porque sou profundamente um solitário. Sinto-me realmente ligado ao Estado, à pátria, a meus amigos, a minha família no sentido completo do termo. Mas meu coração experimenta, diante desses laços, curioso sentimento de estranheza, de afastamento e a idade vem acentuando ainda mais essa distância. Conheço com lucidez e sem prevenção as fronteiras da comunicação e da harmonia entre mim e os outros homens.

Com isso perdi algo da ingenuidade ou da inocência, mas ganhei minha independência. Já não mais firmo uma opinião, um hábito ou um julgamento sobre outra pessoa. Testei o homem. É inconsistente.

Albert Einstein, in Como vejo o Mundo

Citação

“Em Descartes o filosofar parte do: ‘Penso, logo existo’. Com este pobre e aleatório ponto de partida, a filosofia é irremediavelmente empurrada para o abstrato e não encontra mais o acesso à ética... A filosofia deve partir da mais imediata constatação da nossa consciência: ‘Eu sou vida, que quer viver, no meio de vida, que quer viver’”.

Albert Schweitzer, in A ética do respeito pela vida

Da (In-)tolerância

Ao olharmos o mundo hoje, principalmente através dos noticiários, podemos constatar que a época em que vivemos é a manifestação de intolerâncias, ou melhor, a negação do homem pelo homem. A palavra tolerância, primeiramente, significa paciência – tenho comigo, a minha paciência com o diferente, o outro. Portanto, toda problemática em torno da (in-)tolerância parece não girar em torno do conceito em si, mas sim em torno da compreensão deste.
Alguns dos Mitos fundadores da cultura ocidental revelam o quanto a possibilidade da tolerância está em nós mesmos. Em Gênesis há dois mitos que me impressionaram profundamente quando os conheci a partir de uma interpretação psicanalítica (E. Fromm). Ao experimentarem o fruto da árvore do conhecimento – que, diga-se de passagem, antes de ser um ato de desobediência, foi um ato de libertação –, abrem-se os olhos de Adão e Eva. Eles vêem, e vêem que são diferentes um do outro; ficam assustados, sim, mas logo tomam uma atitude tranqüilizadora, cada um corrigindo em si o que teria assustado o outro. Aliás, é o que havia ali que o tornava diferente. É completamente descabido explicar tal atitude com algum sentimento de pudor que naquele momento da história – anterior à repressão sexual – ainda não havia. Adão e Eva tiveram, assim, a felicidade de se aceitarem – agora conscientemente – e de conviverem com o diferente, construindo, assim, uma harmonia que seria a base para o desenvolvimento da humanidade.
No segundo mito, Deus, a partir de Adão, cria Eva: é a genialidade da linguagem simbólica que, aqui, mostra que um é parte, quer dizer, componente do outro; há outro somente enquanto manifestação, existência física, mas não enquanto essência. Diga-se, há uma só e mesma essência humana. Há um só homem. Não há outro. Porém, há o diferente, que por sua vez aponta para o semelhante. E é justamente isso que evoca a tolerância. Perece-me claro que o mito fala do homem na sua pluralidade, pois seria novamente uma argumentação empobrecida se atribuíssemos a esse mito a tarefa de “regulamentar” o convívio social de cônjuges. A grandeza e a atemporalidade do mito está em falar da humanidade enquanto o Uno.
Os homens, em essência, são um e o mesmo, e sim, são semelhantes. E não há outro. Há o outro, sim, o criamos: o 11 de setembro e Abu Ghraib são manifestações da intolerância, do outro, uma invenção humana que agora age – a insanidade. Talvez, a maldade.
Inventamos o outro. Não mais enxergamos o semelhante, não mais Adão se reconhece em Eva, nem Eva reconhece-se em Adão. Assim aconteceu Auschwitz, que jamais podemos esquecer, que dividiu a história da humanidade em antes e depois.
A humanidade é uma construção, e o homem só encontra a si mesmo com outro ser humano (K. Jaspers). As diferenças são riqueza – são riquezas enquanto diferenças culturais, mas são pobrezas enquanto diferenças econômicas. São as diferentes notas que compõem o acorde, portanto a harmonia pressupõe os diferentes, assim como um acordo de paz pressupunha inimigos.
Quando os nossos caminhos se cruzam, deixamos marcas uns nos outros. Os caminhos do Ocidente se cruzaram – sim e não – com os caminhos do Oriente. Como assim? Primeiro, não foram caminhos de humanidade e sim de mercadorias. A África, durante anos, significava mão-de-obra e matéria-prima e, sobretudo no século XX, o Oriente Médio foi visto como reserva de combustível. A moderna economia de mercado, o capitalismo, hoje se mostra incapaz de apontar uma solução para o problema africano. Há interesse, e não estima. Ao mundo árabe sequer tentamos compreender. O olhar do Ocidente sobre o Oriente lembra Tolstoi: “Há quem entra numa floresta e só enxerga lenha”, que lembra A. Gide: “Que a importância esteja no teu olhar, e não na coisa olhada”. Perdeu-se no olhar a capacidade de enxergar no diferente o mesmo. Ficou desaprendida a lição em Gênesis.
Cristianismo e Islamismo: duas religiões que têm a mesma origem. A intolerância manifesta. Não é nem necessário que um entenda o outro, mas, sim, é imprescindível que o compreenda, com-preenda. Entre os homens, estamos sempre um com o outro.
Olhando a humanidade, podemos observar que temos poucas convenções ditas universais. Os direitos humanos são a coisa mínima que conseguimos convencionar, e devem permanecer como uma causa de e para todos os homens. Qualquer violação há de ser denunciada, sempre. “Não há liberdade enquanto houver flagelos” (A. Camus). É imperdoável a tolerância para com a intolerância. Um exemplo nosso recente: o Chefe de Estado brasileiro omitiu-se em falar de violações dos direitos humanos em Cuba, deixou de falar disso para o Chefe de Estado cubano. Era assunto interno. Não era. E sim, universal, e a própria Constituição do Brasil tem como princípio a observação dos direitos humanos nas relações internacionais. E a justificativa para a não-intervenção, a suposta amizade entre os dois Chefes de Estado, só aumenta a gravidade do caso – o descaso – e realça toda a pobreza dessa argumentação. “A ingenuidade é exatamente a convivência pacífica com o não-justificado” (E. Husserl).
Se inicialmente falamos da tolerância como paciência e insistimos na aceitação do diferente, devemos, lembrando que as diferenças econômicas são pobrezas, insistir, agora, na inversão: a de sermos intolerantes e impacientes para com a fome e a miséria, e entender que o programa Fome Zero, entre outras coisas do aqui-agora, nada mais é que a manifestação da tolerância com o intolerável.
A.G.









Algumas considerações acerca da felicidade

A idéia da felicidade, enquanto questão filosófica, surge com Sócrates, junto com a idéia de psyché. Ele sabia que as duas idéias estariam ligadas entre si e à realização de ser humano. Em Ética a Nicômaco, Aristóteles elabora um conceito, no qual afirma que a felicidade é a atividade conforme à virtude. Assim, nasce o princípio vital: psyché, alma, anima... A vitalidade se expressa através da atividade, e esta deve acontecer conforme à virtude. Portanto, a felicidade é algo que se busca, e viver significa ser-em-ação. Desta forma, a atividade adquire seu sentido pela virtude, da qual ela é efeito. Viver é estar em ação; viver é buscar. A essência da vida é a busca. A importância está no processo. Vida evoca finitude, e “a finitude da nossa existência mantém-nos em dependência com relação ao mundo, dependemos do acaso dos encontros, e das possibilidades e limites das situações. Sempre dependemos do outro” (Sto. Agostinho). Sempre estamos em ação, sempre buscamos. A busca é a essência da nossa existência. Ninguém compreendeu isso melhor do que Platão, que, aliás, sempre teve a preocupação de não definir as coisas últimas.

O senso comum da modernidade vê a felicidade de outra forma. As definições de dicionários – inclusive os de filosofia – dizem: estado de..., de satisfação plena e completa, de plenitude, de estabilidade, de contentamento, e assim por diante. Conceito que não procede. Perdemos o Paraíso, a plenitude, a estabilidade; não há estado de... mesmo a “filosofia perenis” não passa de um nominalismo. Entre o nascer e morrer está o viver. O homem está no mundo, ser humano é ser-no-mundo, é ser-em-ato (Heidegger), o sentido da nossa existência certamente não é alcançar um estado, e sim, viver.

Encontramos em Rousseau um pequeno trecho do seu segundo discurso. Lê-se: “(...) Adquiriu-se o costume de reunir-se diante das cabanas ou ao redor de uma árvore: o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se o divertimento e sobretudo a ocupação dos homens e das mulheres ociosos e arrebanhados. Cada um começou a olhar os outros e a querer ser olhado, e a estima pública passou a ter valor. Quem cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais hábil, ou o mais eloqüente, tornou-se o mais considerado (...)”. Gostar de olhar e gostar de ser olhado. Auto-estima e estima pública. O que condiciona o quê? Na moderna economia de mercado, a sociedade é de posse, de bens. Os shoppings são um exemplo de espaços onde – entre a vaidade e a gula – as pessoas olham e são olhadas. Essas fortalezas da solidão pós-moderna abrigam centenas e centenas de crianças, jovens e adultos perambulando entre lojas e praças, tagarelando em seus celulares, sempre ligados, e ao mesmo tempo sozinhos, buscando a felicidade no consumo. “Consumo, logo sou”. Assim fala R. Kurz.

Observamos que na modernidade a linguagem mudou, no sentido de que o verbo é cada vez mais substituído pelo substantivo (E. Fromm). É patente: coisas podem ser representadas mais adequadamente pelo substantivo – a atividade, pelo verbo. E as mudanças na linguagem mostram que a importância maior está na coisa olhada, e não no olhar. Insistimos em expressões do tipo “bens duráveis”, em vão: não são duráveis, e a felicidade proposta pela aquisição dos mesmos menos ainda. E se ainda fosse, a felicidade dependeria de algo material, de algo fora de nós. Estimula-se a ansiedade da mesma forma que as necessidades são estimuladas pela propaganda de consumo. Ora, a ansiedade e o medo partem da mesma raiz ontológica (P. Tillich). A posse de bens que está ligada à ansiedade, também tem uma relação com o medo. A classe média é a classe que mais se identifica com o consumo e a posse, é a mais atingida por crises econômicas, e a que mais as teme.

Francisco de Assis saiu nu de casa, livrando-se, dessa forma, de toda posse possível. E partiu para uma vida de ação. Vivia feliz. Na Arca de Noé de Vinícius de Morais, encontramos uma letra sobre São Francisco: Lá vai São Francisco/Pelo caminho/De pé descalço/Tão pobrezinho/Dormindo à noite/.../Lá vai São Francisco/De pé no chão/levando nada/No seu surrão/Dizendo ao vento/...” São Francisco filho de família de comerciantes, não era pobre por ter renunciado à posse – nem pobrezinho. O autor aplica o conceito moderno de felicidade que, consequentemente, considera pobre quem não possui. Pobre e infeliz. Mas o pobrezinho da Umbria era feliz.

A.G.

O Jogo da Vida – entre perdas e ganhos

Algumas considerações impertinentes acerca de um tema pertinente

 

Toda a Natureza é apenas arte, desconhecida de vós;

Toda casualidade, direção que não podeis ver;

Todo conflito, harmonia não compreendida;

Todo mal parcial, um bem universal.

Os versos acima foram escritos há mais de três séculos. Alexander Pope, inspirado de confiança, aponta para um significado mais profundo das aparências imediatas. Assume não saber, aceita o mistério.

Aproximadamente duzentos anos depois, Freud fala do nosso relacionamento paradoxal para com a ciência: “... somos forçados a pagar um preço insuportável por cada ganho importante de conhecimento: o custo psicológico da perda progressiva da condição de centro... e conseqüentemente uma sensação cada vez maior de marginalidade num universo onde estamos entregues à nossa própria sorte”. Com Freud aprendemos que não somos o centro de nós mesmos.

A ciência explica cada vez com mais detalhes e precisão como a vida se dá – mas, ciência nenhuma consegue dizer o que a vida é. Portanto, não sabemos o que é vida. Sabemos o que é jogo, isto sim. Conhecemos inúmeros e a essência é sempre a mesma: ganhar ou perder.

A vida é jogo? Não podemos comparar um piloto da Fórmula 1 com um bombeiro que, por exemplo, em 11 de setembro subiu nas Torres Gêmeas, arriscando e perdendo sua vida na tentativa de salvar outras. O piloto “brinca” com a sua vida, joga... Não há nada de heróico nisso, somente pobreza, talvez tristeza (Exupèry).

Em “A ética do respeito pela vida”, Albert Schweitzer, teólogo luterano, médico, diz: “Em Descartes o filosofar parte do: ‘Penso, logo existo’. Com este pobre e aleatório ponto de partida, a filosofia é irremediavelmente empurrada para o abstrato e não encontra mais o acesso à ética... A filosofia deve partir da mais imediata constatação da nossa consciência: ‘Eu sou vida, que quer viver, no meio de vida, que quer viver’”. Com isso, Schweitzer faz uma escolha e se afirma numa condição: o profundo respeito pela vida.

Somos condenados a fazermos escolhas. Eva escolheu, optou pelo fruto; Pandora abriu a caixa; Sócrates e Cristo escolheram a morte para que os ensinamentos pudessem continuar vivos.

O homem é massa pesada (Exupèry), toma decisões de peso. Viver é “ser-no-mundo” (Jaspers), entende-se a palavra “ser” como verbo. A visão-do-mundo hoje funda-se sobre o paradigma Liberdade, que fez cair o muro, cujos escombros soterraram a igualdade. Foi vontade nossa. O liberalismo está na base econômica da sociedade, assim como de uma nova ordem amorosa com suas reivindicações.

Ora, se desejo é pulsão, então a idolatria do corpo e das sensações é contrária à liberdade humana. O ganho é perda. Por exemplo: namorar é compromisso, responsabilidade. Portanto, “ficar” é usufruição. O corpo é submetido, estamos no mundo da troca, da coisificação.

Depois da Religião “light” (Comblin, sobre o neo-liberalismo), a pós-modernidade trás a felicidade “light”. O senso comum em transformação. A escola, enquanto instituição, também está diante de uma escolha: ensinar a arte de viver ou ensinar como o mundo é.

Santo Agostinho, obcecado em alcançar o absoluto, resolve dispensar Flória, sua esposa, doravante rebaixada a concubina nos textos da Igreja Católica. Ele almejava a liberdade total do espírito, e para obter esse ganho seria necessário abdicar das sensações, a “perda” do cônjuge seria a condição para “ganhar” tal liberdade. Livrou-se do mundo das sensações? Não. Ficou inconformado ao perceber que o espírito até pode comandar o corpo –viver num regime de castidade, mas não consegue-se impedir os sonhos eróticos. Não se manda no espírito, ele não obedece. Freud explica. Há escolhas que ultrapassam nosso poder, nossa condição humana.

Platão não teve a pretensão de alcançar o absoluto. Melhor: teve o cuidado de não definir as coisas últimas; se colocou humildemente, e com respeito, diante do Mistério. Apenas indicou uma direção: buscar o Bem.

Modernos e Pós-modernos reformularam este legado, transformando o Bem em Bem-estar. Perde-se um Fim metafísico. Quando perdemos o paraíso, já havíamos ganho o livre arbítrio e a consciência. Ganhamos e perdemos, não porque jogamos – isso significaria sermos omissos, deixarmos as coisas ao acaso, à mercê. Ganhamos e perdemos porque fizemos cada vez uma escolha, livre, intencional, responsável e consciente.

A.G.

Até a última gota

Como o Esclarecimento tornou-se mito e a promessa de liberdade converteu-se em “total empulhação das massas”(...)

A dominação da natureza por intermédio dos homens-senhores pressupõe que o homem degrade o próprio homem a mero objeto da natureza: “O despertar do sujeito é comprado com o reconhecimento do poder como princípio de todas as relações”. Ora, isso, sem dúvida, descreve uma correlação negativa que possuía validade muito antes da sociedade burguesa moderna.

Disso têm plena consciência Horkheimer e Adorno: “De fato, as linhas de razão, liberalidade e burguesismo estendem-se incomparavelmente mais do que supõe a noção histórica, que data o conceito de burguês só a partir do fim do feudalismo da Idade Média”. Os mais antigos esboços de vontade (ainda impotentes) de dominação sobre a natureza remontam à pré-história - no próprio “pré-animismo” já se acha “a separação entre sujeito e objeto”. Mas se o homem pré-histórico ainda se enchia de um implacável medo diante da natureza predominante e buscava conjurar sua impotência com assimilações mágicas de objetos naturais (mimese), o mito, por sua vez, dá início à objetivação: “O mito já é Esclarecimento”, e “Esclarecimento é a angústia mítica tornada radical”.

Essa angústia deve ser extinta no mito pelo fato de se objetivar a natureza e, na medida do possível, “não existir mais nada desconhecido”. Nesse aspecto, as figuras mitológicas aparecem como os arquétipos do sujeito burguês, abstrato e objetivante. Horkheimer e Adorno tentam mostrá-lo no exemplo do mito de Ulisses - e, isso, lastreados inconfundivelmente na teoria da cultura de Sigmund Freud. O herói homérico das aventuras tem de reprimir os seus próprios impulsos, a fim de se tornar sujeito da dominação. A sedução dos impulsos naturais, representado mitologicamente pelo canto envolvente das sereias, é emudecido para os servos pelo fato de lhes tamparem os ouvidos com cera; Ulisses, como dominante, permite-se, no entanto, ouvir o canto, previamente atado com cordas ao mastro da nau, para que não sucumba ao chamariz.

Tal arquétipo mostra como a própria subjetividade, um última instância, tem de se tornar objeto, a fim de poder objetivar a natureza e os outros homens por meio da dominação. Já o mito, portanto, “pôs em cena o processo infinito do Esclarecimento”. Nesse processo, são progressivamente destruídas, junto com os deuses, as qualidades do mundo, pois o “programa de desencantamento do mundo”, que repousa na dominação, decompõe, com o seu “pensamento ordenador”, tudo o que é próprio e o que, nos homens e nas coisas, não se resolve na investida objetivante: “O que não se quer adaptar à medida da calculabilidade e da utilidade é tomado como suspeito pelo Esclarecimento”.Ele é por princípio totalitário, na medida que submete a natureza e a sociedade despidas de qualidade ao cálculo da mera quantificação, à matemática da dominação: “A lógica formal foi a grande escola da uniformização. Ela forneceu aos esclarecidos o esquema da calculabilidade do mundo (...), o número tornou-se o cânon do Esclarecimento”.(...)

Robert Kurz, especial para a Folha de São Paulo (24/08/97, p.5/5).

Brasil, o mito fundador

Com Di Fiori podemos falar numa filosofia da história, no tempo estruturado, como na Árvore de Jessé, e escandido em três tempos progressivos rumo à apoteose

Ao iniciar a "História", Heródoto declara a razão que o levou a escrevê-la, dizendo que tratará de grandes feitos dos gregos e dos bárbaros que merecem ser conservados na memória e que falará igualmente dos dois lados adversários, porque a Fortuna gira com justiça sua roda e os grandes, de hoje, serão por ela diminuídos amanhã, os vencedores de agora serão os vencidos do porvir. É, pois, a grandeza dos feitos que os torna memoráveis, e é a roda da fortuna que recomenda à prudência não esquecer que a grandeza esteve dos dois lados das ações.
Por seu turno, ao iniciar a "História da Guerra do Peloponeso", Tucídides retoma o "topos" de Heródoto, declarando que narrará a guerra, ainda em curso, por se tratar do maior movimento jamais realizado pelos helenos. Há, no entanto, dois aspectos novos na narrativa de Tucídides, se comparada à de Heródoto: em primeiro lugar, não só é ele testemunha ocular da guerra, mas também tem dela uma visão pessimista, pois a vitória de qualquer um dos lados significa a derrota da própria Hélade; em segundo lugar, e sobretudo, Tucídides introduz a idéia de que é preciso encontrar as causas da guerra, perceber seus sinais muito antes que ela começasse e, portanto, será preciso mostrar que a guerra estava inscrita desde o momento em que se inicia o imperialismo de Atenas. Dessa maneira, embora o historiador narre o que é memorável, sua narrativa não se detém nos fatos imediatos da guerra, mas percorre o passado para nele ler uma guerra que virá.
A dupla lição de Heródoto e de Tucídides é apanhada com vigor por Políbio quando escreve a "Ascensão e Queda do Império Romano". Como Heródoto, Políbio procura dar igual lugar de grandeza a cartagineses e romanos e sublinha o papel da fortuna na história de Roma; porém, como Tucídides, vai em busca das causas que determinaram a subida e a queda do império, pois, embora pareça que somente a fortuna poderia explicar que, em 50 anos, se formasse o maior poderio de uma cidade de que se tem notícia, será preciso ler no próprio movimento de ascensão a queda que se prepara inevitavelmente.
As obras de Heródoto, Tucídides e Políbios nos permitem observar que a história nasce não somente sob o signo da memória, mas também sob o signo de uma dupla determinação: a da fortuna, isto é, da contingência que percorre as ações humanas, e a da necessidade, isto é, da presença de causas que determinam o curso dos acontecimentos, independentemente da vontade humana. A fortuna é justa porque caprichosa e aparentemente arbitrária, pois sua justiça consiste perpetuamente em elevar os rebaixados e em rebaixar os elevados. A necessidade é implacável porque segue seu curso próprio, uma vez que, num primeiro ato de vontade, os homens desencadearam um processo que não poderão controlar.



História e esperança profética
Ora, o surgimento do cristianismo produz um efeito inesperado sobre a concepção da história. Se é verdade que a noção de Providência divina reúne, num único ser, Deus, a contingência da vontade (a fortuna) e a necessidade do processo (o decreto divino), todavia, herdeiro do judaísmo, o cristianismo introduz a idéia de que a história segue um plano e possui uma finalidade que não foram determinados apenas pela vontade dos homens.
A Antiguidade _tanto oriental como ocidental_ concebia o tempo cósmico como ciclo de retorno perene e o tempo dos entes como reta finita, marcada pelo nascimento e pela morte. No primeiro caso, o tempo é repetição e a forma da eternidade; no segundo caso, é devir natural de todos os seres, aí incluídos os impérios e as cidades. O tempo dos homens, embora linear e finito, é medido pelo tempo circular das coisas, pois a repetição eterna é o "métron" de tudo quanto é perecível: movimento dos astros, sequência das estações, germinar e desenvolver das plantas. Eterno retorno e/ou sucessão que imita o retorno, o tempo é essencialmente embate do Ser e do Não-Ser ou, como vemos nas "Metamorfoses" de Ovídio, o tempo é o faminto e feroz devorador que tudo destrói _"tempus edax omnium rerum"_, mas também o regenerador perene de tudo quanto nasce e vive, e por isso Ovídio o apresenta na imagem da Fênix sempre rediviva.
Enquanto o tempo cíclico exclui a idéia de história como aparição do novo, pois não faz senão repetir-se, o tempo linear dos entes da Natureza introduz a noção de história como memória.
O primeiro se colocará sob o signo de Tychê-Fortuna, cuja roda faz inexoravelmente subir o que está decaído e decair o que está no alto; o segundo, posto sob a proteção de Mnemosyne-Memória, garante imortalidade aos mortais que realizaram feitos dignos de serem lembrados, tornando-os memoráveis e exemplos a serem imitados, a perenidade ao passado garantindo-se por sua repetição, no presente e no futuro, sob a forma da mímesis ou da repetição dos grandes exemplos. "Historia magistra vitae", "a história é mestra da vida", dirá Cícero. O tempo da história grega é épico, narrando os grandes feitos de homens e cidades cuja duração é finita e cuja preservação é a comemoração.
Diferentemente desse tempo cósmico e épico, o tempo bíblico é dramático, pois a história narrada é não somente sagrada, mas também o drama do afastamento do homem de Deus e da promessa de reconciliação de Deus com o homem. Relato da distância e proximidade entre o homem e Deus, o tempo não exprime os ciclos da natureza e as ações dos homens, mas a vontade de Deus e a relação do homem com Deus: o tempo judaico e de seu herdeiro, o tempo cristão, é expressão da vontade divina que o submete a um plano cujos instrumentos de realização são os homens afastando-se Dele e dele se reaproximando por obra Dele.
No hebraico, "tikwah", esperança, é a expectativa de um bem que se articula à Promessa, nascida da aliança de Deus com seu Povo, e, portanto, à espera do Messias como salvador coletivo que restaura a integridade, grandeza e potência de Israel. O tempo cíclico da repetição cede lugar à flecha do tempo em que o tempo futuro redime o tempo passado, pois a promessa divina de redenção resgata a falta originária.
A cristologia nasce em dois movimentos sucessivos: no primeiro, o Antigo Testamento (AT) é interpretado como profecia, prefiguração e tipologia do Advento; no segundo, o Novo Testamento (NT) é interpretado como profecia do Segundo Advento e do Tempo do Fim. Retirando do AT a dimensão teocêntrica para dar-lhe um conteúdo cristocêntrico, o NT considera realizada a Profecia. No entanto, ao transformar o NT em enigma a ser decifrado, o cristianismo reabre o campo profético, referido agora à Segunda Vinda do Cristo.

Realização da Promessa
O vínculo que unifica judaísmo e cristianismo é a concepção do tempo. Por ser tempo da queda e da promessa, é tempo profético, e o plano divino pode ser decifrado por aqueles aos quais foi dado o dom da profecia. O tempo é sempre realização da Promessa e, por ser profético, não está voltado para a lembrança do passado, e sim para esperança no futuro como remissão da falta e reconciliação com Deus. O tempo não é simples escoamento, mas passagem rumo a um fim que lhe dá sentido e orienta seu sentido, sua direção.
História é, pois, a operação de Deus no tempo. Donde suas características fundamentais:
1) providencial, unitária e contínua porque é manifestação da vontade de Deus no tempo, que é dotado de sentido e finalidade, graças ao cumprimento do plano divino;
2) teofania, isto é, revelação contínua, crescente e progressiva da essência de Deus no tempo;
3) epifania, isto é, revelação contínua, crescente e progressiva da verdade no tempo;
4) profética, não só como rememoração da Lei e da Promessa, mas como expectativa do porvir ou, como disse o Padre Vieira, a profecia é "história do futuro". A profecia traz um conhecimento do que está além da observação humana, oferecendo aos homens a possibilidade de conhecer a estrutura secreta do tempo e dos acontecimentos; isto é, de ter acesso ao plano divino;
5) salvífica ou soteriológica, pois o que se revela no tempo é a promessa de redenção e de salvação, obra do próprio Deus;
6) escatológica (do grego, "tà eschatoi", as últimas coisas ou as coisas do fim), isto é, está referida não só ao começo do tempo, mas sobretudo ao fim dos tempos e ao Tempo do Fim, quando a Promessa estará plenamente cumprida. A dimensão escatológica da história é inaugurada com o livro da Revelação de Daniel, capítulo 12, primeiro texto sagrado a falar num tempo do fim, descrito como precedido de abominações e como promessa de ressurreição e salvação dos que estão "inscritos no Livro", como tempo do aumento dos conhecimentos com a abertura do "livro dos segredos do mundo", e, sobretudo, como tempo cuja duração está predeterminada: "Será um tempo, mais tempos e a metade de um tempo" que se iniciará após "mil e duzentos dias" de abominação e durará "mil trezentos e trinta e cinco dias", depois dos quais os justos estarão salvos;
7) apocalíptica (do grego, "apocalypse", revelação direta da verdade pela divindade), pois, com Daniel, primeiro, e João, depois, o segredo da história é uma revelação divina feita diretamente pelo próprio Deus ao profeta e ao evangelista. Essa revelação diz respeito prioritariamente ao Tempo do Fim ou ao Dia do Senhor, como escreve São Paulo aos tessalônicos. Nesse tempo do fim, quando o Cristo virá pela segunda vez e vencerá o Anticristo, haverá um Reino de Mil Anos de felicidade e abundância que prepara os santos para o Juízo Final e a entrada na Jerusalém Celeste, fora do tempo ou na eternidade.


Terminada e por acontecer
O cristianismo conhece duas visões rivais da história: a da ortodoxia e a milenarista. A diferença entre ambas se refere a um ponto preciso: entre a primeira e a segunda vinda de Cristo acontece alguma coisa, o tempo realiza progresso, as ações humanas contam, há novas revelações, há uma história propriamente? Ou não? Isto é, com o Primeiro Advento, tudo está consumado, e os homens devem apenas aguardar a plenitude final do tempo, que se dará com o Juízo Final e o Jubileu eterno, ou o Segundo Advento supõe um tempo aberto aos acontecimentos que preparam o Tempo do Fim?
Para a ortodoxia, o percurso temporal inicia-se com a Criação do mundo e termina com a Encarnação de Cristo; entre esta e o momento do Juízo Final, nada mais acontece, senão a espera de Cristo, pelo Povo de Deus, e a decadência contínua do século para todos os que se afastam de Deus e se abandonam ao Demônio. A revelação está consumada, e o tempo é somente uma vivência individual e psicológica, narrando o caminho da alma rumo a Deus ou distanciando-se Dele, na direção do Mal. Desaparece a escatologia do Tempo do Fim quer como algo iminente, quer como algo novo e decisivo na história.
Nessa perspectiva, a história se realiza em três tempos e sete eras. Os três tempos são a ação da Trindade no tempo: tempo do Pai (dos judeus sob Noé e Abraão até Moisés), tempo do Filho (a Encarnação do Cristo, quando começa a nova Aliança ou a nova lei) e tempo do Espírito Santo (a comunidade cristã, quando a lei está escrita no coração de cada homem, que dela toma conhecimento pela graça divina). As sete eras formam a Semana Cósmica, na qual seis eras são temporais, isto é, referem-se à operação da vontade divina no tempo (Criação, Queda, Dilúvio, Patriarcas, Moisés e Encarnação), mas a sétima era, ou o Sétimo Dia, é o Juízo Final, já fora do tempo. O Oitavo Dia é o Jubileu eterno.
Essa cronologia esvazia a questão antiga sobre o que se passa no intervalo de tempo entre o Primeiro e o Segundo Advento e no intervalo de tempo entre a vinda do Filho da Perdição (o Anticristo) e o Juízo Final. Em outras palavras, o que acontece no que Daniel designara como "o tempo, os tempos e a metade do tempo" e São João como o "silêncio de meia hora no céu", entre a abertura do sexto e do sétimo selos? Eram esses intervalos que abrigavam o centro da história escatológica, pois neles haveria nova revelação, inovação, acontecimento e preparação para o fim do tempo.

Desordem do mundo
Pouco a pouco, porém, a concepção milenarista retorna até que, no século 12, se consolida na obra do abade calabrês Joaquim di Fiori. A grande renovação intelectual e religiosa do século 12 foi contemporânea de acontecimentos que abalaram a cristandade e por isso não poderia deixar intacta a necessidade de conciliar acontecimento e plano divino, mudança e ordem, estabilidade e contingência. Precisou dar conta da desordem no mundo: Islã, cruzadas, cismas eclesiásticos, guerras entre império e papado.
A busca da ordem no mundo teve que enfrentar acontecimentos cujo sentido não estava dado, mas que não podiam escapar à ordem providencial. Tornou-se imperiosa a procura do conhecimento da estrutura secreta do tempo e de seu sentido. A reordenação teológica do tempo se fez pela interpretação apocalíptico-escatológica da história profética e milenarista.
A novidade maior dessa elaboração é a de que a obra do tempo é operação da Trindade: a unidade das Três Pessoas garante a ordem imutável, enquanto a diferença entre as operações de cada uma delas explica a variação temporal. Com isso, a Encarnação deixa de ser o término da história para tornar-se seu centro, o que significa que algo mais ainda deve acontecer antes do Juízo Final. Esse algo mais é um tempo duplamente facetado: é o do aumento da desordem e dos males, porque tempo do Anticristo, mas é também o do aumento da perfeição e da graça, sob a ação do Espírito Santo, como profetizou Daniel.
Está pavimentado o caminho para o abade calabrês Joaquim di Fiori, com quem surge a imagem da apoteose terrena dos Mil Anos e a idéia de que a história é a operação da Trindade no tempo, no qual uma última e decisiva revelação-iluminação está reservada para a Sexta Era e para o Tempo do Fim: a plenitude do tempo coincidirá com a plenitude do Espírito ou do saber.
Com Joaquim di Fiori podemos falar numa filosofia da história, isto é, no tempo estruturado e escandido em três tempos progressivos rumo à apoteose. Essa filosofia da história se oferece como concepção trinitária, progressiva e orgânica da história como desenvolvimento de estruturas invisíveis. Trinitária: a história é obra do Espírito através do Pai e do Filho, até a revelação final do Espírito. Progressiva: a história é o desenvolvimento temporal do aumento do saber, cuja plenitude coincide com o tempo do fim, quando será aberto "o livro dos segredos do mundo". Orgânica: a estrutura do tempo, simbolizada pela Árvore de Jessé, significa que o tempo não é ciclo perpétuo de tribulações, não é agonia nem afastamento do absoluto, mas arbusto florescente onde frutifica a semente divina da verdade efetuando-se como eternidade temporal.
Será impossível não reconhecer traços joaquimitas em toda a filosofia da história posterior. Joaquim introduz dois símbolos não escriturísticos e que são suas profecias próprias: o papa Angélico (que prepara o caminho para o encontro final entre Cristo e o Anticristo) e os homens espirituais (duas novas ordens monásticas de preparação para o Tempo do Fim, a ativa ou dos pregadores, e a contemplativa ou dos monges eremitas).
No centro da herança joaquimita encontra-se a idéia de que haverá ainda uma fase final da história, um tempo abençoado ainda por vir. O apogeu da história, preenchimento do intervalo da "metade do tempo" e do "silêncio de meia hora no céu", ou plenitude do tempo, será sinalizado pelo aumento da espiritualidade no mundo, antes do Juízo Final. Será a era do Espírito Santo, tempo do intelecto e da ciência.

Novo Mundo
"Para a empresa das Índias não me aproveitou razão nem matemática nem mapa-mundos; plenamente cumpriu-se o que disse Isaías" (Colombo, "Carta aos Reis", 1501).
"Porque não é em vão, mas com muita causa e razão, que isto se chama Novo Mundo, e não por se ter achado há pouco tempo, senão porque é em gentes e em tudo como foi aquele da idade primeira" ("Carta de Vasco da Quiroga", 1535).
"... que falou Isaías da América e do Novo Mundo, se prova fácil e claramente (...). Digo, primeiramente, que o texto de Isaías se entende do Brasil (...)" (Padre Vieira, "História do Futuro", 1666).
No dia 6 de janeiro de 1492, Fernando e Isabel entram em Granada e recebem das mãos do califa as chaves da Alhambra. Fazem hastear o estandarte real e erguer o crucifixo no mais alto parapeito.
As profecias de Daniel e de Isaías, cumpridas com a descoberta do Brasil, são fatos e provas da consumação da revelação e do tempo: nós somos a história consumada
O mito do país-paraíso nos persuade de que nossa identidade e grandeza se acham predeterminadas no plano natural: somos sensuais, alegres e não-violentos
De Barcelona, os embaixadores genoveses enviam uma carta de louvor às majestades católicas: "Não é indigno nem sem razão que vos asseveramos, reis grandíssimos, que lemos o que predisse o abade Joaquim Calabrês, que a restauração da Arca de Sião seria feita pela Espanha".
De fato, o abade Joaquim afirmara que o Reino de Deus na Terra, a era do Espírito Santo, começaria com a vitória de Cristo contra o Anticristo, identificado por ele com Saladino, que acabara de invadir a Espanha no mesmo momento em que Jerusalém caía nas mãos dos árabes. Assim, os embaixadores de Gênova saúdam menos a expulsão dos mouros e mais o primeiro sinal do milênio, do tempo do fim do tempo, aberto pela vitória de Castela.
No dia 3 de agosto desse mesmo ano, Colombo parte de Palos. O relato da primeira viagem abre-se com a exposição de motivos: os reis o enviaram ao Oriente pelo Ocidente para "combater a seita de Maomé e todas as idolatrias e heresias" e para, nas regiões da Índia e da China, ver príncipes, povos e a "disposição deles" para que encontrasse meios de convertê-los "à nossa fé".

Cálculos do Fim
Em 1500, enquanto Pedro Álvares Cabral se dirige ao que viria ser o Brasil, o Almirante do Mar Oceano, Don Cristobal Colón, oferece aos reis católicos o relato de sua terceira viagem, em que assegura ter descoberto a localização do Paraíso Terrestre, graças às indicações dos autores antigos e do profeta Isaías que, segundo interpretação do abade Joaquim, afirmara "que da Espanha lhe seria elevado seu Santo Nome". Numa carta aos reis, de 1501, e numa carta de 1502, ao papa, Cristóvão Colombo reafirma a descoberta do Paraíso, sente-se instrumento das profecias do abade Joaquim e oferece os cálculos do tempo que resta até o Tempo do Fim: 155 anos.
Sabemos que um traço marcante da mentalidade do final da Idade Média e da Renascença foi o sentimento da caducidade do mundo e da necessidade de seu renascimento ou de passar do "outono do mundo" a uma nova primavera, concebendo o Tempo do Fim como retorno à origem perdida.
Em seu clássico "Visão do Paraíso", Sérgio Buarque de Holanda escreve: "Colombo, sem dissuadir-se de que atingira pelo Ocidente as partes do Oriente, julgou-se em outro mundo ao avistar a costa do Pária, onde tudo lhe dizia estar o caminho do verdadeiro Paraíso Terreal. Ganha com isso o seu significado pleno aquela expressão 'Novo Mundo' (...) para designar as terras descobertas. Novo não só porque ignorado, até então, das gentes da Europa (...), mas porque parecia o mundo renovar-se ali e regenerar-se, vestido de verde imutável, banhado numa perene primavera, alheio à variedade e aos rigores das estações, como se estivesse verdadeiramente restituído à glória dos dias da Criação" ("Visão do Paraíso", São Paulo, 1992, pág. 204).
Menos um conceito geográfico, ainda que para os conquistadores fosse um conceito geopolítico, militar e econômico, a América foi para viajantes, evangelizadores e filósofos uma construção imaginária e simbólica. Diante de sua absoluta novidade, como explicá-la? Como compreendê-la? Como ter acesso ao seu sentido? Colombo, Vespúcio, Pero Vaz de Caminha, Las Cazas dispunham de um único instrumento para aproximar-se do Mundo Novo: livros.
Quando lemos cartas, diários de viagem, relatos da vida americana, perspectivas filosóficas e políticas dedicadas ao Novo Mundo, podemos notar que os textos são muito menos descrições e interpretações de experiências novas diante do novo e muito mais comentários, exegeses de outros livros, antigos, que teriam descrito e interpretado as terras e gentes novas. O Novo Mundo já existia, não como realidade geográfica e cultural, mas como texto, e os que para aqui vieram ou os que sobre aqui escreveram não cessam de "conferir" a exatidão dos antigos textos e o que aqui se encontra.

Paraíso Terrestre
Antes de ser designado como América ou como Brasil, o "aqui" se chamava Oriente, um símbolo bifronte: sede econômica e política dos grandes impérios da Índia e da China (descritas nas viagens maravilhosas de Marco Polo e Mandeville), mas também sede imaginária do Paraíso Terrestre, preservado das águas do dilúvio e descrito no Gênese como terra austral e oriental, cortada por quatro rios imensuráveis, rica em ouro e pedras preciosas, de temperatura sempre amena, numa primavera eterna.
Terra profetizada pelo profeta Isaías, quando escreveu: "Assim, tu chamarás por uma nação que não conheces, sim, uma nação que não te conhece acorrerá a ti" (Is. 55, 6). "Sim, da mesma maneira que os novos céus e a nova terra que estou para criar subsistirão na presença, assim substituirá a vossa decência e o vosso nome" (Is. 66, 20).
No entanto, não é apenas Isaías que projeta sua sombra sobre os navegantes. De igual importância será o profeta Daniel, não só porque o livro das Revelações anuncia o Tempo do Fim, mas também porque esse tempo final será o advento da Quinta Monarquia ou, como dirão os cristãos, do Quinto Império do Mundo, durando mil anos de felicidade porque reino messiânico. No imaginário da conquista do Brasil, Daniel é menos aquele que anuncia novas terras e mais aquele que anuncia o novo tempo como Reino de Deus e tempo do saber, quando o homem esquadrinhará a Terra na direção dos quatro ventos e será aberto o Livro dos Segredos do Mundo: "Os ímpios agirão com perversidade, mas nenhum deles compreenderá, enquanto os sábios compreenderão" (Dan. 12, 10). "Feliz quem esperar e alcançar mil trezentos e trinta e cinco dias. Quanto a ti, vai até o fim. Repousarás e te levantarás para tua parte da herança, no Tempo do Fim" (Dan. 12, 12-13).
Entre 1647 e 1666, o Padre Vieira escreve "História do Futuro", obra que lhe valerá a condenação de "herética e judaizante" pelo tribunal da Inquisição, pois "promete o reino de Deus nesta vida e muito cedo", à maneira dos judeus que "o esperam nesta vida presente de seus Messias e perpétuo para sempre". A origem da condenação é o livro "Esperanças de Portugal", parte da trilogia que inclui a "Chave dos Profetas" e a "História do Futuro", inspirada em Daniel, no capítulo 18 de Isaías, nas "Trovas do Bandarra" (em que o Encoberto d. Sebastião será o Imperador dos Últimos Dias, vencedor das primeiras batalhas contra o Anticristo) e no milenarismo trinitário de Joaquim di Fiori.
A obra prevê a união de portugueses e judeus, o Reino de Mil Anos e o retorno triunfal dos judeus a Israel. A interpretação do capítulo 18 de Isaías, possivelmente recebida pelo jesuíta das obras do franciscano peruano Gonzalo Tenório, demonstra que Isaías profetizou não só a América, mas, pela quantidade de detalhes e particularidades, profetizou o Brasil, e não o Peru, como julgara Tenório. Ambos, porém, interpretam as "gentes convulsas", as "gentes dilaceradas" e as "gentes terríveis", de que fala Isaías, como sendo as Dez Tribos Perdidas de Israel, e o motivo fundamental para essa interpretação é uma outra profecia de Isaías, segundo a qual a redenção do "resto de Israel" só se dará depois que todo Israel se houver dispersado na direção dos quatro ventos e, evidentemente, a última direção somos nós.

Os futuros
Jesuítas e franciscanos se consideram as duas ordens monásticas profetizadas por Joaquim di Fiori e por isso escrevem movidos pela certeza do fim da história e do tempo do fim como tempo do Espírito Santo inteiramente revelado ao Reino de Deus. O profetismo messiânico que os move os faz reafirmar, diante da Bíblia, que os "modernos são pigmeus sentados nos ombros de gigantes" e que, se podem ver mais longe do que os antigos, é porque estes, mais próximos da revelação originária, sustentam em seus braços os anões modernos. Grandes foram os que profetizaram. Pequenos os que sabem reconhecer a realização das profecias. "Os futuros", diz Vieira, "quanto mais vão correndo, tanto mais se vão chegando a nós e nós a eles".
O Brasil não é apenas "novos céus e novas terras" cumprindo a profecia do alargamento da ciência e o anúncio do milênio como Era do Espírito: o Brasil é condição e parte integrante do milênio, isto é, do Último Império. As profecias de Daniel e de Isaías, cumpridas com a descoberta e a conquista do Brasil, são fatos e provas da consumação da revelação e do tempo. Nós somos a história consumada.

O mito fundador
Vivemos na presença difusa de uma narrativa da origem. Essa narrativa, embora elaborada no período da conquista, não cessa de se repetir porque opera como nosso mito fundador. Mito no sentido antropológico: solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos na realidade. Mito na acepção psicanalítica: impulso à repetição por impossibilidade de simbolização e, sobretudo, como bloqueio à passagem à realidade. Mito fundador porque, à maneira de toda "fondatio", impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa, que não permite o trabalho da diferença temporal e que se conserva como perenemente presente. Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.
Pelas circunstâncias históricas de sua construção inicial, nosso mito fundador é elaborado segundo a matriz teológico-política, e nele quatro constituintes principais se combinam e se entrecruzam, determinando não só a imagem que possuímos do país, mas também nossa relação com a história e a política. O primeiro constituinte, para usarmos ainda uma vez a expressão de Sérgio Buarque de Holanda, é a "visão do paraíso"; o segundo é oferecido pela história teológica, elaborada pela ortodoxia cristã, isto é, a perspectiva providencialista da história; o terceiro provém da história teológica profética cristã, ou seja, do milenarismo de Joaquim di Fiori; e o quarto é proveniente da elaboração jurídico-teocrática da figura do governante como "rei pela graça de Deus".

O Brasil Jardim do Paraíso
Diários de bordo e cartas dos navegantes e dos evangelizadores não cessam de referir-se às novas terras falando da formosura de suas praias imensas, da grandeza e variedade de seus arvoredos e animais, da fertilidade de seu solo e da inocência de suas gentes que "não lavram nem criam (...) e andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos", como se lê na "Carta de Pero Vaz de Caminha a El Rei Don Manuel Sobre o Achamento do Brasil". É dessa carta a passagem celebrada: "Águas são muitas; infindas. E em tal maneira graciosa que, querendo-se aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem".
Quando se examinam relatos aparentemente descritivos, não se pode deixar de notar que certos lugares-comuns se encontram em todos eles. O Brasil é sempre descrito como imenso jardim perfeito: a vegetação é luxuriante e bela (flores e frutos perenes), as feras são dóceis e amigas (em profusão inigualável), a temperatura é sempre amena ("nem muito frio, nem muito quente", repete toda a literatura e Pero Vaz de Caminha), aqui reina a primavera eterna contra o "outono do mundo", o céu está perenemente estrelado, os mares são profundamente verdes, e as gentes vivem em estado de inocência, sem "esconder suas vergonhas" (diz Pero Vaz), sem lei e sem rei, sem crença e pronta para a evangelização. Esses lugares-comuns literários possuem um sentido preciso que não escaparia a nenhum leitor dos séculos 16 e 17: são os sinais do Paraíso Terrestre reencontrado.
Nascido sob o signo do Jardim do Éden, o mito fundador não cessará de repô-lo. Três exemplos podem ajudar-nos a perceber a permanência dessa, muito depois de encerrada a exegese mítica da descoberta-conquista.
Praticamente quase todas as bandeiras nacionais, criadas nos vários países durante o século 19 e início do século 20, são bandeiras herdeiras da Revolução Francesa. Por isso são tricolores (algumas poucas são bicolores), as cores narrando acontecimentos sócio-políticos dos quais a bandeira é a expressão. A bandeira brasileira é a única não-tricolor produzida nesse período. Possui quatro cores. Ora, quando se pergunta qual o significado dessas cores, não se responde que o verde, por exemplo, simbolizaria lutas camponesas pela justiça, mas sim que representa nossas imensas e inigualáveis florestas; o amarelo não simboliza a busca da Cidade do Sol, utopia de Campanella da cidade ideal, mas representa a inesgotável riqueza natural do solo pátrio; o azul não simboliza o fim da monarquia dos Bourbons e Orléans, mas a beleza perene de nosso céu estrelado, onde resplandece a imagem do Cruzeiro, sinal de nossa devoção a Cristo Redentor; e o branco não simboliza a paz conquistada pelo povo, mas a ordem (com progresso, evidentemente). A bandeira brasileira não exprime a política nem a história. É um símbolo da Natureza: floresta, ouro, céu, estrela e ordem. É o Brasil-jardim, o Brasil-paraíso terrestre. O mesmo fenômeno pode ser observado no Hino Nacional, que canta mares mais verdes, céus mais azuis, bosques com mais flores e nossa vida de "mais amores". O gigante está "deitado eternamente em berço esplêndido", isto é, na Natureza como paraíso ou berço do mundo, e é eterno em seu esplendor.
E, terceiro exemplo, a poesia ufanista que toda criança aprende a recitar na escola, como o poema do conde Afonso Celso, "Porque Me Ufano de Meu País", ou os sonetos parnasianos de Olavo Bilac: "Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!/ Criança, jamais verás país como este!/ Olha que céu, que mar que floresta!/ A natureza, aqui perpetuamente em festa,/ É um seio de mãe a transbordar carinhos".
Essa produção mítica do país-paraíso nos persuade de que nossa identidade e grandeza se encontram predeterminadas no plano natural: somos sensíveis e sensuais, carinhosos e acolhedores, alegres e sobretudo somos essencialmente não-violentos. O primeiro elemento da construção mítica nos lança e conserva no reino da Natureza, deixando-nos fora do mundo da História.

A história providencialista
O segundo elemento na produção do mito fundador vai lançar-nos na história, depois de nos haver tirado dela. Trata-se, porém, da história teológica ou providencialista, realização do plano de Deus ou da vontade divina em que o tempo é teofania (revelação de Deus no tempo) e epifania (revelação da verdade divina no tempo). É história profética (cumprimento da vontade de Deus no tempo) e soteriológica (promessa de redenção no tempo). Essa história já está consumada com a vinda de Cristo e, portanto, se o Brasil é "terra abençoada por Deus", Paraíso reencontrado, é porque estamos numa história que se realiza sem tempo e fora do tempo _o gigante está "deitado eternamente em berço esplêndido", pois fazemos parte do plano providencial de Deus.
Ora, se somos parte essencial do plano de Deus, então nosso futuro encontra-se desde sempre e para sempre assegurado. Por isso mesmo podemos afirmar que, de direito, somos "o país do futuro". E nossa segurança é tanto maior porque Deus nos ofereceu o signo do porvir: a Natureza paradisíaca, sinal da Providência que nos escolheu como novo Povo Eleito.

A história profético-milenarista
No entanto, contraposta à história providencialista já consumada, existe, como vimos, uma outra, que constitui o terceiro elemento da elaboração mítica do Brasil: a história profética, messiânica e milenarista, inspirada em Joaquim di Fiori.
Dois, como vimos, são os traços principais desta história: a divisão do tempo em três eras _do Pai, do Filho e do Espírito, ou da lei, da graça e da ciência_ e o embate final entre o Anticristo e Cristo, durante a era messiânica do Segundo Advento, com a vitória de Cristo e a instalação de um Reino de Mil Anos de felicidade no Tempo do Fim, que é também fim dos tempos, no qual se preparam o Juízo Final e a instauração do Reino Celeste de Deus.
Antecedendo a Segunda Vinda de Cristo e preparando o terreno para o embate final, é enviado o Salvador Terreno dos Últimos Dias, que o Padre Vieira, no século 17, e Antônio Conselheiro, no século 19, identificaram com d. Sebastião.
Enquanto a história providencialista é apropriada pelas classes dominantes e camadas dirigentes (pois assegura que as instituições existentes são o plano divino realizado), a história profética é apropriada por todos os dissidentes cristãos e pelas classes populares, formando o fundo milenarista de interpretação da vida presente como miséria à espera dos "sinais dos tempos" que anunciarão a chegada do Anticristo e do combatente vitorioso.
É com essa história profética que as classes populares brasileiras têm acesso à política, percebida por elas como embate cósmico entre a luz e a treva, ou entre o bem e o mal, e na qual a questão não é a do poder, mas a da justiça e da felicidade. O elemento essencial nessa fervorosa expectativa do milênio é a figura do combatente que prepara o caminho de Cristo, pré-salvador que surge nas vestes do dirigente messiânico em quem são depositadas todas e as últimas esperanças. É esta a figura assumida pelo bom governante perante as classes populares brasileiras.

Graça de Deus, artes do Maligno
Finalmente, o quarto elemento componente da matriz mítica fundadora encontra-se na elaboração jurídico-teocrática do governante pela graça de Deus. Essa matriz depende de duas formulações diferentes, mas complementares.
A primeira delas afirma que, pelo pecado, o homem perdeu todos os direitos e, portanto, perdeu o direito ao poder. Este pertence exclusivamente a Deus, pois, como lemos na Bíblia: "Todo poder vem do Alto/ Por mim reinam os reis e governam os príncipes". É por uma decisão misteriosa e incompreensível, por uma graça especial, que Deus concede poder a alguns homens. A origem do poder humano é, assim, um favor divino àquele que O representa. O governante, portanto, não representa os governados, e sim a fonte transcendente do poder (Deus), e governar é realizar ou distribuir favores.
A segunda formulação, sem abandonar a noção de favor, introduz a idéia de que o governante representa Deus porque possui uma natureza mista como a de Jesus Cristo. O governante possui dois corpos: o corpo empírico, mortal, humano, e o corpo político, místico, eterno, imortal, divino. Por receber o corpo político, o governante recebe a marca própria do poder: a vontade pessoal, absoluta, divina. Donde o adágio jurídico: "O que apraz ao rei, tem força de lei". A teoria do corpo político místico transforma a "res publica" em "dominium" e "patrimonium" do governante: a terra e os fundos públicos se transformam em membros do corpo do governante e se tornam patrimônio privado que se transmite aos descendentes e pode ser distribuído sob a forma do favor e da clientela.
Em qualquer dos casos, um ponto é idêntico: o poder político, isto é, o Estado, antecede a sociedade e tem sua origem fora dela, primeiro, nos decretos divinos, e, depois, pelos decretos do governante.
Isso explica um dos componentes principais de nosso mito fundador, qual seja, a afirmação de que a história do Brasil foi e é feita sem sangue, pois todos os acontecimentos políticos não parecem provir da sociedade e de suas lutas, mas diretamente do Estado, por decretos: capitanias hereditárias, governos gerais, Independência, Abolição, República. Donde também uma outra curiosa conseqüência: os momentos sangrentos dessa história são considerados meras conspirações ("inconfidências") ou fanatismo popular atrasado (Praieira, Canudos, Contestado, Pedra Bonita, Farroupilhas, MST).
Desta maneira, o mito fundador opera de modo socialmente diferenciado:
1) do lado dos dominantes, opera com a visão de seu direito natural ao poder e na legitimação desse pretenso direito natural por meio do ufanismo nacionalista e desenvolvimentista, expressões laicizadas do Paraíso Terrestre e da teologia da história providencialista, assegurando a imagem do Brasil como comunidade una e indivisa, ordeira e pacífica, rumando para seu futuro certo, pois escolhido por Deus;
2) do lado dos dominados, se realiza pela via profético-milenarista, que produz dois efeitos principais: a visão do governante como salvador e a sacralização-satanização da política. Em outras palavras, uma visão da política que possui como parâmetro o núcleo profético-milenarista do embate final, cósmico, entre luz e treva, bem e mal, de sorte que o governante ou é sacralizado (luz e bem) ou satanizado (treva e mal).
É evidente, portanto, que o mito fundador opera com uma contradição insolúvel: o país-jardim é sem violência e, pela história providencialista, ruma certeiro para seu grande futuro; em contrapartida, o país profético está mergulhado na injustiça, na violência e no inferno, à procura de seu próprio porvir, na batalha final em que vencerá o Anticristo. Entre ambos, cava fundo o humor da ruas: "Quem foi que descobriu o Brasil?/ Foi seu Cabral, foi seu Cabral/ No dia 22 de abril/ Dois meses depois do Carnaval!".


Marilena Chaui é filósofa e professora do departamento de filosofia da USP, autora de "Cultura e Democracia" (Ed. Cortez) e "A Nervura do Real" (Companhia das Letras), entre outros.

























































































A Causa, o Princípio e o Uno

Se o ponto não difere do corpo, se o centro não é diferente da circunferência, se o finito não se diferencia do infinito, nem o máximo do mínimo, então podemos afirmar com segurança que o universo é tudo centro, ou que o centro do universo está em todas as partes e que a circunferência não se acha em parte alguma, porquanto difere do centro, ou então que a circunferência está em todas as partes, mas que o centro não é diferente da circunferência.

O supremo, o máximo, o incompreensível seja tudo, por tudo e em tudo, porque ele pode ser tudo, ser para tudo e em tudo, como simples e indivisível que é.

Giordano Bruno

Significação da Crítica

A contradição é a raiz de todo movimento e de toda manifestação vital. Somente na medida em que encerra uma contradição uma coisa é capaz de movimento, de atividade, de manifestar tendências ou impulsos. A contradição constitui a determinação mais profunda e essencial do ser. A contradição é a negação implícita de todos os seres finitos. Qualquer ser finito só é o que é na medida em que é limitado ou negado pelos outros seres também finitos. A contradição, característica da finitude, torna-se patente e ostensiva nos seres vivos que só são vivos porque são mortais, e começam a morrer no dia mesmo de seu nascimento. O botão desaparece na eclosão das flores, podendo-se dizer que o botão é refutado pela flor, assim como a flor será refutada pelos frutos. A refutação, a negação, a crítica é, pois, momento essencial do processo cósmico e histórico, que só é processo e vir-a-ser, porque inclui em si mesmo, na sua estrutura, a contradição, mola propulsora de seu desenvolvimento.

G.W.F. Hegel

A ciência não pensa

A ciência, por sua vez, não pensa, não sabe pensar, e isso é a sorte dela: pois significa assegurar o seu ‘próprio, e por ela definido, caminho (método). A ciência não pensa. Esta é uma proposição provocante. Deixamos esse caráter provocador, mesmo acrescentando que a ciência sempre está ligada ao pensar de uma maneira especial. Essa maneira só é autêntica, e conseqüentemente fértil, se o abismo existente entre as ciências e o pensar se torna visível. Esse abismo, porém, é intransponível. Não há nenhuma ponte aqui, somente um salto.

Martin Heidegger, in Was heisst Denken?

Eclipse da Razão

No domínio sobre a natureza está incluído o domínio sobre o homem. A natureza é objeto de uma exploração total (...) a sede de poder do homem é insaciável. O domínio da raça humana sobre a terra não encontra paralelos naquelas épocas da história natural em que outras espécies animais representavam as mais altas formas de vida, já que os apetites daquelas raças animais eram limitados pela necessidade de sua existência física. O desejo insaciável do homem de estender o seu poder para dois infinitos, o microcosmo e o Universo, não tem raízes na sua natureza, mas na estrutura da sociedade.

Max Horkheimer, in Eclipse da Razão.

Limites da Utopia

A certa altura de minhas leituras, deparei-me naturalmente com as principais obras de Maquiavel. Elas provocaram em mim uma impressão profunda e duradoura, acabando por abalar minha antiga crença. Delas apreendi não os ensinamentos mais óbvios, ou seja, como chegar ao poder político e conservá-lo, a que força ou astúcia devem recorrer os governantes se desejam regenerar suas sociedades ou proteger a si próprios e a seus Estados de inimigos internos e externos, quais as principais virtudes que devem ser ostentadas pelos governos, de um lado, e pelos cidadãos, de outro, se desejam que seus Estados floresçam - mas algo diverso. Maquiavel não era um adepto do historicismo: ele achava ser possível a restauração de algo como a República romana ou a Roma do início do Principado. Ele achava que, para se fazer isso, era preciso uma classe dominante composta por homens valentes, engenhosos, inteligentes e talentosos que soubessem reconhecer e usar as oportunidades, e por cidadãos que fossem adequadamente protegidos, mostrando-se patrióticos, orgulhosos de seu Estado, verdadeiros epítomes das virtudes viris e pagãs. Foi assim que Roma chegou ao poder e conquistou o mundo, e foi a ausência desse tipo de sabedoria, vitalidade e coragem na adversidade, das qualidades tanto do leão quanto da raposa, que acabaram por provocar sua queda. Os Estados decadentes foram conquistados por vigorosos invasores que haviam preservado tais virtudes.

Mas Maquiavel, ao lado disso, também salienta a noção das virtudes cristãs - humildade, aceitação do sofrimento, desapego em relação a mundo, esperança de salvação após a morte - e observa que, se se deseja estabelecer, como ele mesmo defende, um Estado do tipo romano, tais virtudes não são as mais apropriadas: aqueles que vivem segundo os preceitos da moralidade cristã estão destinados a serem suplantados pela impiedosa busca do poder por parte dos homens que podem recriar e dominar a república vislumbrada pelo autor de O príncipe. As virtudes cristãs não são por ele condenadas. Maquiavel limita-se a observar que as duas moralidades são incompatíveis, e não reconhece nenhum critério superior que nos permita decidir qual é a vida correta a ser vivida pelos homens. A combinação de virtú e valores cristãos, para ele, é impossível. Ele simplesmente deixa a nós a escolha - sua preferência, ele a conhece bem.

A idéia que isso plantou em minha mente foi a percepção, coisa que surgiu como um choque, de que nem todos os valores supremos buscados pela humanidade agora e no passado eram necessariamente compatíveis entre si. Tal idéia abalou minha antiga suposição, baseada na philosophia perennis, de que não podia haver nenhum conflito entre os verdadeiros fins, ou seja, as verdadeiras respostas aos problemas básicos da vida.

(...)

Tanto a liberdade quanto a igualdade estão entre os objetivos básicos procurados pelos seres humanos durante muitos séculos; mas a liberdade total para os lobos é a morte dos cordeiros; a liberdade total dos poderosos, dos talentosos, não é compatível com o direito a uma existência decente para os fracos e os menos talentosos. Um artista, a fim de criar uma obra-prima, pode levar um tipo de vida que arrasta sua família para a miséria e a imundície, coisas que são indiferentes para ele. Podemos condená-lo e declarar que a obra-prima deveria ser sacrificada em favor das necessidades humanas; também podemos defender sua posição - mas as duas atitudes supõem valores que para alguns homens e mulheres são os mais importantes, bem como compreensíveis por todos nós se tivermos algum tipo de condescendência, imaginação ou compreensão para com os seres humanos. A igualdade pode exigir a restrição da liberdade daqueles que desejam dominar; a liberdade - sem um mínimo da qual não existe escolha nem, portanto, possibilidade de se permanecer humano, no sentido que atribuímos a essa palavra - está sujeita a restrições a fim de abrir espaço ao bem-estar social, para que o faminto seja alimentado, o destituído seja agasalhado, o sem-teto seja alojado, e abrir espaço à liberdade de outrem, para que possa ser exercida a justiça ou a probidade.

Esses choques de valores constituem a essência do que eles são e do que nós somos. Se nos dizem que tais contradições serão dissipadas em um mundo perfeito no qual todas as coisas boas podem, em princípio, ser harmonizadas, então devemos responder aos que afirmam isso que o sen- tido dos termos denotativos dos valores conflitantes não é o mesmo para nós e para eles. Devemos dizer que se encontra totalmente fora de nossa compreensão um mundo no qual não esteja em conflito aquilo que vemos como valores incompatíveis; que os princípios em harmonia nesse outro mundo não são os princípios com que estamos familiarizados em nossa vida diária; se eles se mostram diferentes, é porque foram transformados em concepções por nós desconhecidas neste mundo. Mas é neste mundo que vivemos, e é aqui que devemos crer e agir. A noção do todo perfeito, a solução final, em que todas as coisas boas coexistem, não me parece apenas inatingível - isso é um truísmo -, mas conceitualmente incoerente; não sei o que significa uma harmonia desse tipo. Alguns dos Grandes Bens não podem estar em convivência. Essa é uma verdade conceitual. Somos condenados a escolher, e cada escolha traz o risco de uma perda irreparável. Felizes os que vivem sob disciplina que aceitam sem questionar, que obedecem espontaneamente às ordens de seus líderes, espirituais ou temporais, cuja palavra aceitam como lei infrangível; igualmente felizes os que, através de seus próprios métodos, chegaram a convicções claras e inabaláveis com relação ao que fazer e o que ser, sem a menor sombra de dúvida. Só posso dizer que os que se instalam nesses confortáveis leitos do dogma são vítimas de uma miopia auto-imposta, antolhos que podem trazer contentamento, mas não a compreensão do que significa a humanidade do ser.

In: BERLIN, Isaiah. Limites da Utopia: capítulos de história das idéias. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.18-23.

Materialismo dialético e histórico

O conjunto das relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política, à qual correspondem formas de consciência determinadas.

Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é seu ser social que determina sua consciência.

A história do pensar e do querer do homem é determinada pelas mudanças da situação econômica, das relações de propriedade, das condições de trabalho e produção.

Karl Marx

O Muro

Jogaram-nos numa grande sala branca e meus olhos começaram a piscar porque a luz os incomodava. Vi, logo depois, uma mesa e quatro sujeitos atrás dela, civis, examinando papéis. Tinham deixado os outros prisioneiros no fundo e precisamos atravessar a sala toda para chegar até eles. Havia muitos que eu conhecia e outros que deviam ser estrangeiros. Os dois que estavam à minha frente eram loiros e de crânios redondos, e se pareciam; imaginei que fossem franceses. O menor, de nervoso, sungava as calças a todo momento.

Aquilo durou quase três horas; sentia-me apatetado e com a cabeça vazia; a sala, porém, estava bem aquecida e eu achava agradável até – havia vinte e quatro horas que estávamos tremendo de frio. Os guardas conduziam os prisioneiros, um após outro, para diante da mesa. Os quatro sujeitos perguntavam-lhes então o nome e a profissão. Quase sempre ficavam nessas perguntas – ou então indagavam: "Tomou parte na sabotagem das munições? " Ou então: "Onde estava na manhã do dia 9 e que fazia nesse dia? " Não ouviam as respostas ou pelo menos pareciam não ouvi-las; calavam-se por um momento, olhavam para a frente, depois punham-se a escrever. Perguntaram a Tom se era verdade que ele servia na Brigada Internacional. Tom não podia negar por causa dos papéis que haviam encontrado em suas roupas. A Juan não perguntaram nada, mas, depois que ele declinou seu nome, escreveram durante um bom tempo.

É meu irmão José que é anarquista – disse Juan. – Os senhores sabem muito bem que ele não está mais aqui. Eu não pertenço a nenhum partido, nunca me meti em política.

Eles não disseram nada. Juan continuou:

Não fiz nada. Não quero pagar pelos outros.

Seus lábios tremiam. Um guarda fê-lo calar-se e o levou. Era a minha vez.

Você é Pablo Ibbieta?

Disse que sim.

O sujeito olhou seus papéis e me perguntou:

Onde está Ramón Gris?

Não sei.

Você o escondeu em sua casa do dia 6 ao dia 19.

Não, senhor.

Eles escreveram qualquer coisa, e os guardas fizeram-me sair. No corredor, Tom e Juan esperavam entre dois guardas. Pusemo-nos em marcha. Tom perguntou a um dos guardas:

E agora?

O quê?

Foi um interrogatório ou um julgamento?

Julgamento – respondeu o guarda.

E então? O que eles vão fazer de nós?

O guarda respondeu secamente:

Vocês receberão a sentença nas celas.

O que nos servia de cela era um porão de hospital: Frio, terrivelmente frio, por causa das correntes de ar. A noite toda nós tínhamos tiritado e, durante o dia a coisa não havia melhorado. Os cinco últimos dias, eu os passara numa prisão do arcebispado, uma espécie de masmorra que devia datar da Idade Média. Como houvesse muitos prisioneiros e pouco espaço, jogavam-nos em qualquer lugar. Não tinha saudades daquela prisão; lá eu não sentia frio, mas estava sozinho; com o passar do tempo isso começava a irritar. Naquele porão eu tinha companhia. Juan não falava nunca; sentia medo e além disso era muito jovem para ter uma opinião. Tom, porém, era bem falante e sabia perfeitamente o espanhol.

Havia no porão um banco e quatro esteiras. Quando eles nos deixaram, sentamo-nos e ficamos em silêncio. Por fim, Tom disse:

Estamos fritos.

Também acho – disse eu -, mas creio que eles não farão nada ao garoto.

Eles não têm nada contra Juan. É apenas irmão de um militante.

Olhei para Juan: tinha um ar absorto. Tom continuou:

Sabe o que eles fazem em Saragoça? Deitam os sujeitos na estrada e passam por cima deles com caminhões. Foi um marroquino desertor quem nos disse. Dizem que fazem isso para economizar munição.

Mas não economizam gasolina – acrescentei.

Sentia-me irritado contra Tom: ele não devia ter dito aquilo.

Há também oficiais que passeiam pela estrada fiscalizando o serviço, de mãos nos bolsos e cigarro na boca. Você pensa que eles matam os sujeitos? Que nada! Ficam ali gritando, às vezes durante uma hora. O marroquino me disse que da primeira vez ele quase vomitou.

Não creio que façam isso aqui – respondi. – A menos que falte mesmo munição.

A luz do dia entrava por quatro respiradores e por um buraco redondo que tinham aberto no teto, à esquerda, por onde se via o céu. Era por essa abertura, geralmente fechada por uma tampa, que descarregavam o carvão no porão. Bem abaixo do buraco havia um monte de pó de carvão; ele se destinava ao aquecimento do hospital, mas, como desde o início da guerra tinham evacuado os doentes, continuava ali, inútil; chegava mesmo a chover sobre ele quando se esqueciam de abaixar a tampa. Tom começou a tremer de frio.

Puxa vida, estou tremendo, aquilo está recomeçando.

Levantou-se e começou a fazer ginástica. A cada movimento sua camisa se abria sobre seu peito branco e cabeludo. Deitou-se de costas, levantou as pernas para o ar, agitou-as como se fossem as lâminas de uma tesoura, enquanto eu via tremer suas grandes ancas. Tom era forte, mas sobrava-lhe banha. Eu pensava nas balas de fuzil ou nas pontas das baionetas que em breve iam penetrar naquela massa de carne macia como uma barra de manteiga. Essa idéia não me faria o mesmo efeito se ele fosse magro.

Eu não tinha exatamente frio, mas não sentia nem os ombros, nem os braços. De vez em quando tinha a impressão de que me faltava alguma coisa e começava a procurar o meu casaco, mas depois me lembrava de que não me haviam dado roupa alguma. Era penoso. Tinham tomado nossas roupas para dá-las aos soldados, deixando-nos somente a camisa – e essas calças de brim que os doentes hospitaliza- dos costumavam usar no verão. Depois de um momento, Tom levantou-se e veio sentar-se perto de mim, respirando pesadamente.

Já se esquentou? – Que nada! Mas estou esbodegado.

Aí pelas oito horas da noite um oficial entrou com dois falangistas. Tinha uma folha de papel na mão e perguntou ao guarda:

Como se chamam esses três?

Steinbock, Ibbieta e Mirbal – respondeu o soldado.

O oficial pôs os óculos e olhou a lista:

Steinbock... Steinbock... Aqui está. Você foi condenado à morte... Será fuzilado amanhã de manhã. Tornou a olhar a lista:

Os outros dois também.

Não é possível – gritou Juan. Eu, não!

O oficial dirigiu-lhe um olhar espantado:

Qual é seu nome?

Juan Mirbal.

Então, seu nome está aqui – respondeu o outro -, você foi condenado.

Eu não fiz nada – tornou Juan.

O oficial sacudiu os ombros e virou-se para Tom e para mim.

Vocês são bascos?

Ninguém aqui é basco.

Ficou meio aborrecido.

Disseram-me que havia três bascos. Não vou perder tempo correndo atrás deles. Naturalmente vocês não querem um padre...

Não dissemos nada. Ele continuou:

Daqui a pouco virá um médico belga. Ele tem autorização para passar a noite com vocês. Fez continência e saiu.

Como eu lhe dizia – observou Tom -, estamos fritos.

É... – respondi – foram severos com o garoto.

Disse aquilo para ser justo, embora não gostas- se do rapazinho. Ele tinha uma fisionomia muito delicada, que o medo e o sofrimento haviam desfigurado, vincando todos os seus traços. Três dias antes era uma criança traquinas, mas agora tinha o ar de um velho, e eu achava que ele nunca mais volta- ria a ser jovem, mesmo que lhe dessem liberdade. Era justo oferecer-lhe um pouco de piedade, mas a piedade me desgosta, sempre tive horror a ela.

Ele não dissera nada, mas se tornara cinzento. Seu rosto e suas mãos estavam cor de cinza. Tornou a sentar-se e olhou para o chão com olhos tristes. Tom, que tinha uma boa alma, quis tomar-lhe o braço, mas o rapazinho desvencilhou-se violentamente com uma careta.

Deixe-o – disse eu em voz baixa -, não está vendo que ele vai começar a chorar?

Tom obedeceu a contragosto; gostaria de consolar o menino; aquilo o manteria ocupado, não lhe dando tempo de pensar em si próprio. Mas a coisa me aborrecia: eu nunca pensara na morte por falta de ocasião, mas agora o momento chegara e não havia outra coisa a fazer senão pensar nela. Tom começou a falar:

Você liquidou uns sujeitos, não ? – perguntou-me.

Não respondi. Ele então começou a explicar-me que havia liquidado seis desde o início do mês de agosto; não se dava conta da situação, e eu percebia que ele não queria dar-se conta. Eu mesmo não avaliava tudo perfeitamente, perguntava-me se íamos sofrer muito, pensava nas balas, imaginava sua saraivada ardente através do meu corpo. Tudo aquilo escapava à verdadeira questão; mas eu me sentia tranqüilo: tínhamos a noite toda para pensar. Depois de um instante, Tom parou de falar e eu o olhei com o rabo do olho; percebi que ele se tornara também cor de cinza e tinha um ar miserável. Disse comigo: "Vai começar". Era quase noite, um luar leitoso filtrava-se através dos respiradouros e o monte de carvão era uma grande mancha sob o céu; pelo buraco do forro eu via já uma estrela; a noite seria pura e gelada.

A porta abriu-se e dois guardas entraram. Se- guia-os um homem loiro enfiado numa farda belga, que nos cumprimentou:

Sou médico – disse ele. – Tenho autorização para os assistir nesta penosa circunstância. Possuía uma voz agradável e distinta.

Perguntei-lhe:

O que o senhor veio fazer aqui?

Estou à sua disposição. Farei todo o possível para que estas últimas horas lhes sejam menos difíceis.

Por que veio até aqui? O hospital está cheio de sujeitos como nós.

Mandaram-me – respondeu com um ar vago.

"Vocês gostariam de fumar, não? ", acrescentou precipitadamente. "Trouxe cigarros e até charutos."

Ofereceu cigarros ingleses e charutos, mas recusamos. Olhei-o nos olhos e ele pareceu encalistrado. Disse-lhe:

O senhor não veio aqui por compaixão. Aliás, eu o conheço. Eu o vi com os fascistas no pátio da caserna no dia em que nos prenderam.

Ia continuar, mas de súbito aconteceu. algo que me surpreendeu: a presença daquele médico cessou bruscamente de me interessar. Geralmente, quando pego um homem, não o largo mais. Entretanto, o desejo de conversar me abandonou; sacudi os ombros e desviei os olhos. Um pouco mais tarde, levantei a cabeça; ele me observava com curiosidade. Os guardas estavam sentados sobre uma esteira. Pedro, o magricela, nada fazia, o outro agitava a cabeça, de quando em vez, para não dormir.

O senhor quer luz? – perguntou Pedro de repente ao médico.

O outro fez "sim" com a cabeça. Penso que ele tinha tanta inteligência quanto uma porta, mas sem dúvida não era mau. Olhando seus grandes olhos azuis e frios, parecia-me que ele pecava sobretudo por falta de imaginação. Pedro saiu e voltou com um lampião a querosene, que foi colocado sobre o canto do banco. Sua luz era fraca, mas era melhor do que nada. Na véspera, haviam-nos deixado no es- curo. Olhei durante algum tempo o disco de luz que o lampião projetava no teto. Estava fascinado. Depois, bruscamente, voltei a mim, a roda luminosa desapareceu e me senti esmagado por um peso enorme. Não era o pensamento da morte, nem o medo; era uma coisa sem nome. As faces me queimavam e eu sentia uma dor no crânio.

Sacudi-me e olhei meus dois companheiros. Tom havia escondido a cabeça nas mãos, e eu só via sua nuca branca e gorda. O pequeno Juan era o que estava em pior estado, tinha a boca aberta e suas narinas fremiam. O médico aproximou-se dele e pousou-lhe a mão no ombro, como para reconfortá-lo, mas seus olhos continuavam frios. Depois vi a mão do belga descer dissimuladamente ao longo do braço de Juan até o pulso. Juan, indiferente, não esboçava um gesto. O belga tomou-lhe o pulso entre três dedos, com um ar distraído, ao mesmo tempo em que recuava um pouco para dar-me as costas. Eu, porém, me debrucei por trás e o vi consultar por um instante o relógio, sem abandonar o pulso do garoto. Por fim, deixou cair a mão inerte e foi encostar-se à parede. Depois, como se se lembrasse de repente de algo importante que era preciso anotar na hora, tirou um caderninho do bolso e nele escreveu qualquer coisa. "Cachorro!", pensei com raiva, "ele que venha me tomar o pulso e lhe quebrarei o focinho."

Ele não veio para o meu lado, mas percebi que me observava. Levantei a cabeça e lhe retribuí o olhar. Interpelou-me, então, com uma voz impessoal:

O senhor não acha que a gente tirita aqui?

Ele parecia ter frio; estava roxo.

Eu não sinto frio – respondi.

O médico não parava de me olhar, com um olhar duro. De súbito compreendi e levei a mão ao rosto; estava molhado de suor. Naquele porão, no auge do inverno, em plena corrente de ar, eu suava. Passei os dedos pelos cabelos e os senti empastados pela transpiração; minha camisa estava úmida e colada à pele; havia pelo menos uma hora eu suava em bicas e não sentira nada. Mas aquilo não escapou ao safado do belga, que viu as gotas de suor rolarem sobre minhas faces e com certeza pensou: "Eis a manifestação de um estado de terror quase patológico" ; e devia ter-se sentido normal e orgulhoso de o ser, porque tinha frio. Senti desejos de me levantar e es- bofeteá-lo, mas assim que esbocei um gesto minha vergonha e minha cólera desapareceram; caí sobre o banco com indiferença.

Contentei-me em esfregar o pescoço com o lenço, porque, agora, sentia o suor que pingava de meus cabelos sobre a nuca, o que era desagradável. Logo, porém, renunciei à fricção, era inútil; o lenço já estava molhadíssimo, era preciso torcê-lo, e eu continuava a suar. Suava também nas nádegas, e as calças umedecidas aderiam ao banco. De repente Juan falou:

O senhor é médico?

Sou – respondeu o belga.

A gente sofre... muito tempo?

Oh! Quando... ? Não – respondeu o outro com voz paternal -, acaba logo.

Parecia consolar um cliente.

Mas eu... disseram-me... que era preciso sempre dar duas descargas.

Às vezes – respondeu o belga, sacudindo a cabeça. – Pode acontecer que a primeira descarga não atinja qualquer órgão vital.

Então é preciso recarregar os fuzis e atirar de novo? Refletiu um momento e acrescentou com voz rouca:

Isso toma muito tempo!

Juan sentia um medo terrível de sofrer, não pensava senão nisso; era próprio da idade. Eu já não pensava muito no assunto, e não era o medo de sofrer que me fazia transpirar.

Levantei-me e andei até o monte de pó de carvão. Tom sobressaltou-se e me lançou um olhar de raiva. Eu o aborrecia porque meus sapatos rangiam. Perguntava-me se teria o rosto tão terroso quanto o dele. Percebi que ele também suava. O céu estava lindo. Nenhuma luz se insinuava nesse canto som- brio, e bastava levantar a cabeça para avistar a Ursa Maior. Mas já não era como antes; na antevéspera, do calabouço do arcebispado, eu podia ver um grande pedaço do céu, e cada hora do dia me trazia uma lembrança diferente. De manhã, quando o céu estava azul, de um azul duro e leve, pensava nas praias às margens do Atlântico; ao meio-dia, via o sol e me lembrava de um bar de Sevilha onde bebia manzanilla comendo anchovas e azeitonas; à tarde, na penumbra, pensava na sombra profunda que se estende sobre a metade das arenas enquanto a outra metade cintila ao sol ; era verdadeiramente penoso ver assim a terra toda refletir-se no céu. Mas, agora, eu podia olhar para fora tanto quanto quisesse, pois o céu não me evocava mais nada. Preferia assim. Voltei a sentar-me perto de Tom. Um longo momento se passou.

Tom começou a falar em voz baixa. Era preciso que ele falasse sempre, sem o que não se reconheceria em seus pensamentos. Penso que era a mim que ele se dirigia, mas não me olhava. Sem dúvida tinha medo de me ver suarento e cor de cinza; estávamos iguais e mais terríveis do que espelhos um para o outro. Ele olhava o belga, o "vivo".

Você compreende? – perguntava ele. – Eu não compreendo nada.

Comecei também a falar em voz baixa. Olhava o belga.

Que é que há?

Vai nos acontecer alguma coisa que eu não posso compreender.

Havia um cheiro estranho ao redor de Tom. Tive a impressão de que eu estava mais sensível ao cheiro que de costume. Brinquei.

Você vai compreender daqui a pouco.

Não é nada claro – continuou ele com ar obstinado. – Sou capaz de ter coragem, mas seria preciso ao menos que eu soubesse... Escute, vão nos levar para o pátio. Os sujeitos vão se postar diante de nós. Quantos serão?

Eu não sei. Cinco ou oito. Mais do que isso, não.

Muito bem. Serão oito. Ouve-se um grito: "Apontar", e eu verei oito fuzis apontados para mim. Penso que desejarei penetrar no muro; empurrarei o muro com as costas e toda a minha força, e o muro resistirá, como nos pesadelos. Posso imaginar tudo isso. Ah! Se você soubesse como posso imaginar!

Eu também imagino!

Deve ser horrível. Você sabe que eles fazem pontaria nos olhos e na boca, para desfigurar o sujeito? – perguntou. – Eu já estou sentindo os ferimentos; há uma hora que estou com dores na cabeça e no pescoço. Não são dores verdadeiras, o que é o pior; são as dores que eu vou sentir amanhã. E depois?

Eu compreendia muito bem o que ele queria dizer, mas não desejava mostrar que compreendia. Quanto às dores, eu também as sentia em meu corpo, como uma porção de cutiladas. Eu não queria concordar, mas estava como ele.

Depois – atalhei com dureza -, você vai comer capim pela raiz.

Tom pôs-se a falar com seus botões: não tirava os olhos do belga, que não demonstrava estar ouvindo. Eu sabia o que ele tinha vindo fazer; o que nós pensávamos não lhe interessava; tinha vindo observar nossos corpos, que, vivos, agonizavam.

É como nos pesadelos – continuava Tom. – Quer-se pensar em alguma coisa e tem-se o tempo todo a impressão de que afinal a gente vai compreender, mas não, a coisa desliza, escapa, cai. Digo para mim mesmo: depois, não haverá mais nada. Não compreendo, porém, o que isso quer dizer. Há momentos em que quase chego a decifrar... e depois isso me escapa, recomeço a pensar nas dores, nas balas, nas detonações. Sou materialista, juro-lhe; e não estou ficando louco. Há alguma coisa porém que está destoando. Vejo meu cadáver; isto não é difícil, mas sou eu que o vejo, com meus olhos. Seria preciso que eu chegasse a pensar... a pensar que não verei mais nada, que não ouvirei mais nada e que o mundo continuará para os outros. Não somos feitos para pensar nisso, Pablo. Sabe, já me aconteceu ficar uma noite inteira acordado, esperando alguma coisa. Mas essa coisa que esperava não é parecida com isso; isso nos pegará desprevenidos, Pablo, e não teremos tempo de nos preparar.

Cale-se! Quer que eu chame um confessor?

Ele não respondeu. Já havia notado que ele tinha uma tendência para bancar o profeta e me chamar de Pablo com voz incolor. Eu não gostava daquilo, mas parece que todos os irlandeses são assim mesmo. Tinha uma vaga impressão de que ele cheirava a urina. No fundo não tinha muita simpatia por Tom e não via por que, sob o pretexto de que íamos morrer juntos, eu teria obrigação de aturá-lo. Com certos sujeitos isso seria diferente. Com Ramón Gris, por exemplo. Mas entre Tom e Juan, eu me sentia só. Aliás, preferia que fosse assim; com Ramón eu ficaria talvez comovido. Eu, porém, estava terrivelmente duro, nesse momento, e queria permanecer duro.

Tom continuou a engrolar, com uma espécie de distração. Certamente falava para não poder pensar. Tresandava a urina como os velhos prostáticos. Naturalmente eu pensava como ele, e tudo quanto me dizia eu poderia dizer-lhe: esse negócio de morrer não é nada natural. E, como eu ia morrer mesmo, nada mais me parecia natural, nem o monte de pó de carvão, nem o banco, nem a carantonha de Pedro. A verdade é que me aborrecia pensar sobre as mesmas coisas que Tom. Sabia muito bem que durante a noite toda continuaríamos a pensar no mesmo assunto, a suar e a ter calafrios ao mesmo tempo. Eu olhava-o de lado e, pela primeira vez, pareceu-me estranho; a morte estampava-se no seu rosto. Sentia-me machucado em meu orgulho; durante vinte e quatro horas havia vivido lado a lado com Tom, escutei-o, falei-lhe e sabia que nada tínhamos em comum. E agora. nós nos assemelhávamos como gêmeos, simplesmente porque iríamos estrebuchar juntos. Tom segurou-me pela mão, sem me olhar:

Pablo, estou pensando... estou pensando se é verdade que a gente é destruído.

Retirei minha mão da sua e respondi:

Olhe entre os seus pés, seu porco.

Havia uma poça d'água entre seus pés, e gotas continuavam a pingar de suas calças.

Que é isto? – perguntou com espanto.

Você urinou nas calças.

Não é possível – gritou ele, furioso -, não urinei, não senti nada.

O belga aproximou-se e perguntou com solicitude fingida:

O senhor está doente?

Tom não respondeu. O outro olhou a poça sem dizer nada.

Não sei o que é isto – disse Tom com ar furioso -, mas não sinto medo. Juro-lhe que não tenho medo.

O belga continuou mudo. Tom levantou-se, foi urinar num canto. Voltou depois, abotoando-se, tornou a sentar-se e não abriu mais a boca. O belga tomava notas.

Nós três o olhávamos porque ele estava vivo. Fazia gestos de gente viva, tinha as inquietações de um vivo; ele tiritava no porão, como deviam tiritar todos os vivos; possuía um corpo obediente e bem- nutrido. Nós não sentíamos mais nosso corpo – não o sentíamos como ele, em todo caso. Tinha vontade de tatear minhas calças, entre minhas pernas, mas não tinha coragem; olhava o belga, arqueado sobre as pernas, senhor de seus músculos – e que podia pensar no amanhã. Estávamos ali, três sombras sem sangue; olhávamos o belga e sugávamos sua vida como vampiros.

O médico acabou por se aproximar do pequeno Juan. Queria tocar sua nuca levado pela profissão ou obedecia a um impulso caridoso? Se agiu por caridade, foi pela primeira e única vez em toda a noite. Acariciou a cabeça e o pescoço de Juan. Este não se mexeu, mas não perdeu de vista o médico; depois, subitamente, pegou-lhe a mão e ficou olhando-a com ar abobalhado. Reteve a mão do belga entre as suas, e estas duas pinças cinzentas que prendiam aquela mão gorda e avermelhada nada tinham de agradável. Eu imaginava o que ia acontecer e Tom, também, sem dúvida; o belga, porém, não percebia nada e sorria paternalmente. No fim de um momento o pequeno levou a gorda pata à boca e tentou mordê-la. O belga desvencilhou-se rapidamente e recuou horrorizado até o muro. Durante um segundo ele olhou- nos com horror, devia ter compreendido de repente que não éramos mais homens como ele. Pus-me a rir, e um dos guardas sobressaltou-se. O outro adormecera, e seus olhos, grandes e abertos, estavam brancos.

Sentia-me cansado e superexcitado ao mesmo tempo. Não queria mais pensar no que ia acontecer de manhã cedinho, na morte. Aquilo não tinha sen- tido, não encontrava senão palavras, um vazio. Porém, assim que começava a pensar em outra coisa, via canos de fuzis apontados para mim. Vivi talvez umas vinte vezes seguidas minha execução; numa delas cheguei mesmo a pensar que o fuzilamento tinha ocorrido; devia ter dormido um minuto. Eles me carregavam para o muro enquanto me debatia; pedia-lhes perdão. Acordei em sobressalto e olhei o belga; . tive medo de ter gritado durante o sono. Ele, porém, alisava o bigode e não notara nada. Creio que se tivesse me esforçado teria dormido um pouco; havia quarenta e oito horas que estava desperto e me sentia esgotado. Mas não tinha vontade de perder duas horas de vida; viriam acordar-me mal amanhecesse, eu os seguiria tonto de sono e estrebucharia sem um ai; não queria morrer como um animal, queria compreender. Além disso, tinha medo de ter pesadelos. Levantei-me, andei de um lado para outro, e, para afastar aquelas idéias, comecei a pensar no passado. Uma onda de lembranças surgiu em confusão. Havia-as boas e más – ou pelo menos eu as considerava assim antes. Via rostos e fatos. Revi a fisionomia de um novillero que levara uma chifrada em Valência durante a féria, o rosto de um de meus tios, e o de Ramón Gris. Lembrei-me de alguns episódios: como passei quando estive desempregado durante três meses em 1926, como escapei de morrer de fome. Recordei-me de uma noite passada sobre um banco, em Granada; havia três dias que não me alimentava, sentia raiva e não queria morrer. Aquilo me fez sorrir. Com que ansiedade eu corria atrás da felicidade, atrás das mulheres, atrás da liberdade... A troco de quê? Tinha querido libertar a Espanha, admirava Pi y Margall, aderira ao movimento anarquista, discursava em comícios: levava tudo a sério, como se fosse imortal.

Nesse momento pareceu-me ter toda a vida pela frente e pensei: "É uma grande mentira". Não valia nada, pois havia acabado. Perguntei-me como tinha conseguido passeai, divertir-me com mulheres; não teria mexido um dedo se houvesse imaginado que 1ria acabai desse jeito. Tinha toda a vida diante de mim, fechada como um saco, e entretanto tudo quanto havia lá dentro continuava inacabado. Tentei, num momento, julgá-la. Quisera dizei: foi uma bela vida. Mas não se podia fazei um julgamento, pois ela era apenas um esboço; havia passado o tempo todo a fazer castelos para a eternidade, não compreendera nada. Não tinha saudades de nada; havia uma porção de coisas das quais poderia sentir saudades, do gosto da manzanilla, dos banhos que tomava no verão nu- ma enseadinha peito de Cádiz; a morte, porém, roubara o encanto de tudo.

De repente, o belga teve uma idéia luminosa.

Meus amigos – disse-nos -, posso encarregar-me – desde que o comando militar me dê licença para isso – de levar uma palavra de vocês, uma lembrança às pessoas queridas...

Tom grunhiu:

Não tenho ninguém.

Não respondi. Tom esperou um momento e depois me observou com curiosidade:

Não vai mandai dizei nada a Concha?

Não.

Detestava aquela terna cumplicidade. A culpa era minha, que tinha falado de Concha na noite anterior, deveria ter-me calado. Estava com ela havia um ano. Ainda na véspera daria meu braço direito para vê-la por cinco minutos. Foi por isso que falei, não pude me controlar, era mais forte do que eu. Agora, entretanto, não tinha vontade de revê-la, nada mais tinha a lhe dizer. Não quereria nem mesmo tomá-la em meus braços. Tinha horror do meu corpo, que se tornara cinzento e que suava – e não estava certo de não sentir asco pelo dela. Concha choraria quando soubesse de minha morte e durante meses não acharia gosto em viver. Assim mesmo quem ia morrer era eu. Pensei nos seus belos olhos ternos. Quando ela me olhava, alguma coisa passava dela para mim. Isso tinha terminado: se ela me olhasse agora, seu olhar continuaria em seus olhos, não viria até mim. Eu estava só.

Tom também estava só, mas não da mesma forma. Escarranchara-se sobre o banco e pusera-se a olhá-lo com uma espécie de sorriso, de ai abobalhado. Estendeu a mão e tocou na madeira com precaução, Como se tivesse medo de quebrar alguma coisa, depois retirou os dedos e arrepiou-se. Se eu fosse Tom, não gostaria de tocar no banco; era uma dessas coisas de irlandês, mas eu também achava que os objetos tinham um ar esquisito, estavam mais apagados, menos densos que de costume. Bastava olhar o banco, o lampião, o monte de carvão para sentir que ia morrer. Naturalmente não podia pensar claramente na minha morte, mas eu a via por toda parte, sobre as coisas, no jeito como as coisas tinham recuado e se conservado à distância, discretamente, como pessoas que sussurram à cabeceira do moribundo. Era a sua morte que Tom tinha tocado no banco.

No estado em que me achava, se viessem me avisar que eu poderia voltar tranqüilamente para casa, que minha vida estava salva, ficaria indiferente; algumas horas ou alguns anos de espera dão na mesma, quando se perdeu a ilusão de ser eterno. Não tinha mais amarras, em certo sentido estava calmo. Era, porém, uma calma horrível – por causa do corpo; enxergava com seus olhos, ouvia com seus ouvidos, mas não era mais eu; ele suava e tremia sozinho e eu não o reconhecia. Fui obrigado a tocá-lo e a olhá-lo para saber o que tinha acontecido com ele, como se fosse o corpo de outra pessoa. Sentia-o ainda por momentos, sentia como que deslizamentos, uma espécie de queda, como quando a gente está num avião a pique, ou então sentia bater meu coração. Isso tudo, porém, não me acalmava, pois o que vinha de meu corpo tinha um ar equívoco. Na maior parte do tempo ele permanecia tranqüilo, em silêncio, e eu não sentia mais nada senão uma espécie de peso, uma presença imunda; tinha a impressão de estar ligado a um montão de vermes. Apalpei minha calça e a senti úmida; não sabia se estava molhada de suor ou de urina, e por precaução fui urinar sobre o monte de pó de carvão.

O belga tirou o relógio, olhou e disse:

São três e meia.

Cachorro! Devia ter feito aquilo de propósito. Tom deu um salto. Não tínhamos percebido que o tempo corria; a noite nos envolvia como uma massa informe e sombria, já não me lembrava sequer de que ela havia começado.

Juan pôs-se a gritar. Torcia as mãos, suplicando:

Não quero morrer! Não quero morrer!

Correu por todo o porão, levantando os braços, depois atirou-se, em soluços, sobre uma esteira. Tom olhava-o com um olhar pesado, sem desejo de consolá-lo. Não valia mesmo a pena. O garoto fazia mais barulho que nós, mas sofria menos; era como um doente que combate o mal com a febre, e quando esta acaba a coisa fica pior.

Ele chorava: eu percebia que ele tinha pena de si próprio; não pensava na morte. Por um segundo, um único segundo, também tive vontade de chorar, de chorar de pena de mim. O que aconteceu foi o contrário; dei uma olhadela no garoto, vi seus magros ombros arquejantes e senti-me inumano; não podia ter pena nem dos outros nem de mim mesmo. Disse com meus botões: "Quero morrer firme".

Tom tinha se levantado, colocou-se bem debaixo da abertura redonda e pôs-se a espreitar o dia. Eu estava resolvido, queria morrer de pé e só pensava nisso. Mas depois que o médico anunciou aquela hora, senti o tempo passando, escorrendo gota a gota. Ainda estava escuro quando ouvi a voz de Tom.

Está ouvindo?

Estou.

Ouviam-se passos vindos do pátio.

Que é que eles querem? Eles não podem atirar no escuro.

Passado um instante, não ouvimos mais nada. Disse a Tom:

Está amanhecendo.

Pedro levantou-se cambaleando e veio apagar O lampião. Falou com o companheiro:

Frio besta.

O porão tornara-se inteiramente cinzento. Ouvíamos tiros ao longe.

Começou – disse a Tom -, eles fazem isso no pátio de trás.

Tom pediu um cigarro ao médico. Eu não queria, não desejava nem cigarro nem álcool. Depois daquele momento não pararam mais de dar tiros.

Está percebendo? – perguntou Tom.

Queria acrescentar alguma coisa, mas calou-se. Olhava fixamente a porta, que se abriu, deixando entrar um tenente acompanhado de quatro soldados. Tom deixou cair o cigarro.

Steinbock?

Tom continuava mudo. Foi Pedro quem o mostrou.

Juan Mirbal?

É aquele que está na esteira.

Levante-se ! – ordenou o oficial.

Juan não se mexeu. Dois soldados o agarraram pelas axilas e o puseram de pé, mas assim que o largaram ele desabou. Os soldados hesitaram.

Não é o primeiro nessas condições – disse o tenente -, levem-no carregado, lá se dará um jeito.

Virou-se para Tom:

Vamos embora.

Tom saiu escoltado por dois soldados. Dois outros iam atrás levando o garoto pelas axilas e pernas. Ele não tinha desmaiado; seus olhos estavam arregalados e lágrimas deslizavam-lhe pelas faces. Quando eu quis sair o tenente me impediu:

Ibbieta é você?

Sim.

Espere aqui, daqui a pouco virão buscá-lo.

Saíram. O belga e os dois carcereiros saíram também. Fiquei sozinho. Não compreendia o que estava acontecendo, mas preferia que tivessem acabado com tudo logo. Ouvi as salvas a intervalos quase regulares: a cada uma delas eu estremecia. Tinha vontade de urrar e de arrancar os cabelos. Mas cerrava os dentes e afundava as mãos no bolso porque queria continuar firme.

Ao fim de uma hora vieram me buscar e me conduziram ao primeiro andar, em uma salinha tresandando a cigarro e cuja temperatura me pareceu sufocante. Dois oficiais fumavam, sentados em poltronas, com papéis sobre os joelhos.

Você se chama Ibbieta?

Sim.

Onde está Ramón Gris?

Não sei.

O que me interrogava era baixo e atarracado. Tinha uns olhos duros atrás dos óculos. Mandou que eu me aproximasse.

Aproximei-me. Levantou-se e segurou-me pelo braço, olhando-me como se quisesse enterrar-me. Ao mesmo tempo apertava meu bíceps com toda a força. Não fazia aquilo por maldade, mas era um golpe; queria dominar-me. Julgava necessário também lançar seu hálito azedo no meu rosto. Ficamos um mo- mento assim, eu com vontade de dar risada. É preciso muito mais para intimidar um homem que vai morrer. Aquilo não bastava. Empurrou-me com violência e tornou a sentar-se.

Sua vida pela vida dele. Ficará livre se disser onde ele está.

Aqueles dois sujeitos agaloados, com seus chicotes e botas, eram, no entanto, homens que também iam morrer. Um pouco mais tarde do que eu, mas não muito. Eles se ocupavam em procurar alguns nomes em sua papelada inútil, correr atrás de outros homens para prendê-los ou eliminá-los; tinham opiniões sobre o futuro da Espanha e sobre outros assuntos. Suas atividadezinhas me pareciam chocantes e burlescas; não consegui colocar-me em seus lugares; tinha a impressão de que estavam loucos.

O baixinho atarracado olhava-me sempre, chicoteando as botas. Todos os seus gestos tinham sido estudados para lhe dar um aspecto de animal vivo e feroz.

E então? Compreendeu?

Não sei onde está Gris – respondi. – Pensava que estivesse em Madri.

O outro oficial levantou a mão pálida com indolência. Também aquela indolência era calculada. Via todas as suas manhas e estava estupefato por haver homens capazes de se divertir com isso.

Você tem um quarto de hora para refletir – disse ele lentamente. – Levem-no e tragam-no de volta daqui a quinze minutos. Se persistir na recusa, será fuzilado imediatamente.

Eles sabiam o que faziam. Eu passara a noite à espera; depois disso tinham-me feito ainda esperar uma hora no porão, enquanto fuzilavam Tom e Juan, e agora fechavam-me na rouparia; com certeza tinham preparado aquele golpe na véspera. Sabiam que os nervos se gastam e pensavam dominar-me assim. Enganavam-se, porém. Sentei-me sobre um banquinho porque me sentia muito fraco e pus-me a refletir. Mas não na proposta. Naturalmente eu sabia onde estava Gris; escondera-se em casa de seus primos, a quatro quilômetros da cidade. Sabia também que não revelaria seu esconderijo, salvo se me torturassem (não parecia, porém, que quisessem fazê-lo). Tudo aquilo estava perfeitamente regulado, definitivo e não me interessava absolutamente. Queria, contudo, compreender a razão da minha conduta. Preferia morrer a denunciar Gris. Por quê? Eu já não gostava de Ramón Gris. Minha amizade por ele tinha morrido um pouco antes de amanhecer, juntamente com meu amor a Concha, com meu desejo de viver. Eu o estimava, sem dúvida; era um sujeito duro. Não era por esta razão, porém, que eu ia morrer em seu lugar; sua vida não tinha mais valor do que a minha; nenhuma vida tinha valor. Encostavam um homem num muro, atiravam nele até que morresse – eu, ou Gris ou outro qualquer era a mesma coisa. Sabia que ele era mais útil do que eu à causa da Espanha, mas a Espanha e a anarquia que fossem pro diabo; nada mais tinha qualquer importância. Entretanto eu estava ali, podia salvar a pele entregando Gris e me recusava a fazê-lo. Achava tudo aquilo muito cômico; era pura obstinação. Pensei: " Já é ser cabeçudo" ; e uma hilaridade esquisita me invadiu.

Vieram buscar-me e reconduziram-me aos oficiais. Um rato correu perto de nossos pés, o que me divertiu. Virei-me para um dos falangistas e perguntei:

Viu o rato?

Ele não respondeu. Estava sombrio, levava-se a sério. Eu tinha vontade de rir e me controlava porque se começasse não pararia mais. O falangista usava bigodes. Disse-lhe ainda:

É preciso raspar os bigodes, gorducho.

Achava engraçado que uma pessoa viva deixasse os pêlos tomarem conta do rosto. Deu-me um ponta-pé sem muita convicção e eu calei-me.

Pois bem – disse o oficial gordo -, refletiu?

Olhei-os com curiosidade, como se fossem insetos de uma espécie muito rara, e disse:

Sei onde ele está. Está escondido no cemitério, em um túmulo ou na cabana dos coveiros.

Disse aquilo para lhes pregar uma peça. Queria vê-los levantar-se, apertar seus cinturões e dar ordens Com ar atarefado.

Puseram-se em pé.

Vamos. Moles, vá pedir quinze homens ao tenente López. Você – observou o gordinho -, se disse a verdade, cumprirei o prometido. Mas se mentiu vai pagar caro.

Partiram com estardalhaço e eu esperei pacatamente sob a guarda dos falangistas. De quando em quando sorria porque imaginava a cara que eles iam fazer. Sentia-me embrutecido e malicioso. Imaginava-os levantando as lápides, abrindo, uma a uma, a porta dos túmulos. Eu me representava a situação como se fosse outro – esse prisioneiro obstinado a bancar o herói, esses graves falangistas com seus bigodes e esses homens uniformizados correndo entre os túmulos, tudo era de uma comicidade irresistível.

No fim de uma meia hora o gorduchinho voltou só. Pensei que ia dar a ordem de fuzilamento. Os outros deviam ter ficado no cemitério. O oficial me olhou sem aquele ar confuso.

Levem-no para o pátio grande,_ com os outros. No fim das operações militares um tribunal regular decidirá sua sorte.

Pensei que não tivesse compreendido. Perguntei-lhe:

Então não vão me... não me fuzilarão mais?

Por enquanto, não. Depois, não é mais comigo.

Não compreendia nada. Perguntei-lhe:

Mas por quê?

Sacudiu os ombros sem responder, e os soldados me levaram. No grande pátio havia uma centena de prisioneiros, mulheres, crianças, alguns velhos. Pus-me a dar voltas ao redor do canteiro central, estava bestificado. Ao meio-dia levaram-me ao refeitório. Dois ou três sujeitos me interpelaram. Devia conhecê-los, mas não lhes respondi; eu não sabia sequer onde estava.

Pela noitinha jogaram no pátio uma dezena de novos prisioneiros. Reconheci García, o padeiro, que me disse:

Maldito felizardo! Pensei que não voltaria a vê-lo com vida.

Eles me condenaram à morte, depois mudaram de idéia. Não sei por quê. – Pegaram-me há duas horas – disse García.

Por quê?

García não se metia em política.

Não sei – respondeu. – Eles prendem todos os que não pensam como eles.

Abaixou a voz:

Pegaram Gris.

Comecei a tremer.

Quando?

Esta manhã. Ele fez besteira. Deixou o primo terça-feira porque tiveram uma briga. Não faltaria quem se dispusesse a escondê-lo, mas ele não queria comprometer ninguém. "Ia me esconder na casa de Ibbieta" – disse –, "mas como ele foi preso, vou me esconder no cemitério."

No cemitério?

Sim. Foi uma besteira. Naturalmente, esta manhã eles foram até lá, tinha de acontecer. Encontraram-no na cabana dos coveiros. Ele atirou e o abateram.

No cemitério!

Tudo se pôs a girar, e me surpreendi sentado no chão – ria tanto que as lágrimas me vieram aos olhos.

SARTRE, Jean-Paul. O Muro. São Paulo: Círculo do Livro, 1990, pp.9-33.