A idéia da felicidade, enquanto questão filosófica, surge com Sócrates, junto com a idéia de psyché. Ele sabia que as duas idéias estariam ligadas entre si e à realização de ser humano. Em Ética a Nicômaco, Aristóteles elabora um conceito, no qual afirma que a felicidade é a atividade conforme à virtude. Assim, nasce o princípio vital: psyché, alma, anima... A vitalidade se expressa através da atividade, e esta deve acontecer conforme à virtude. Portanto, a felicidade é algo que se busca, e viver significa ser-em-ação. Desta forma, a atividade adquire seu sentido pela virtude, da qual ela é efeito. Viver é estar em ação; viver é buscar. A essência da vida é a busca. A importância está no processo. Vida evoca finitude, e “a finitude da nossa existência mantém-nos em dependência com relação ao mundo, dependemos do acaso dos encontros, e das possibilidades e limites das situações. Sempre dependemos do outro” (Sto. Agostinho). Sempre estamos em ação, sempre buscamos. A busca é a essência da nossa existência. Ninguém compreendeu isso melhor do que Platão, que, aliás, sempre teve a preocupação de não definir as coisas últimas.
O senso comum da modernidade vê a felicidade de outra forma. As definições de dicionários – inclusive os de filosofia – dizem: estado de..., de satisfação plena e completa, de plenitude, de estabilidade, de contentamento, e assim por diante. Conceito que não procede. Perdemos o Paraíso, a plenitude, a estabilidade; não há estado de... mesmo a “filosofia perenis” não passa de um nominalismo. Entre o nascer e morrer está o viver. O homem está no mundo, ser humano é ser-no-mundo, é ser-em-ato (Heidegger), o sentido da nossa existência certamente não é alcançar um estado, e sim, viver.
Encontramos em Rousseau um pequeno trecho do seu segundo discurso. Lê-se: “(...) Adquiriu-se o costume de reunir-se diante das cabanas ou ao redor de uma árvore: o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se o divertimento e sobretudo a ocupação dos homens e das mulheres ociosos e arrebanhados. Cada um começou a olhar os outros e a querer ser olhado, e a estima pública passou a ter valor. Quem cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais hábil, ou o mais eloqüente, tornou-se o mais considerado (...)”. Gostar de olhar e gostar de ser olhado. Auto-estima e estima pública. O que condiciona o quê? Na moderna economia de mercado, a sociedade é de posse, de bens. Os shoppings são um exemplo de espaços onde – entre a vaidade e a gula – as pessoas olham e são olhadas. Essas fortalezas da solidão pós-moderna abrigam centenas e centenas de crianças, jovens e adultos perambulando entre lojas e praças, tagarelando em seus celulares, sempre ligados, e ao mesmo tempo sozinhos, buscando a felicidade no consumo. “Consumo, logo sou”. Assim fala R. Kurz.
Observamos que na modernidade a linguagem mudou, no sentido de que o verbo é cada vez mais substituído pelo substantivo (E. Fromm). É patente: coisas podem ser representadas mais adequadamente pelo substantivo – a atividade, pelo verbo. E as mudanças na linguagem mostram que a importância maior está na coisa olhada, e não no olhar. Insistimos em expressões do tipo “bens duráveis”, em vão: não são duráveis, e a felicidade proposta pela aquisição dos mesmos menos ainda. E se ainda fosse, a felicidade dependeria de algo material, de algo fora de nós. Estimula-se a ansiedade da mesma forma que as necessidades são estimuladas pela propaganda de consumo. Ora, a ansiedade e o medo partem da mesma raiz ontológica (P. Tillich). A posse de bens que está ligada à ansiedade, também tem uma relação com o medo. A classe média é a classe que mais se identifica com o consumo e a posse, é a mais atingida por crises econômicas, e a que mais as teme.
Francisco de Assis saiu nu de casa, livrando-se, dessa forma, de toda posse possível. E partiu para uma vida de ação. Vivia feliz. Na Arca de Noé de Vinícius de Morais, encontramos uma letra sobre São Francisco: Lá vai São Francisco/Pelo caminho/De pé descalço/Tão pobrezinho/Dormindo à noite/.../Lá vai São Francisco/De pé no chão/levando nada/No seu surrão/Dizendo ao vento/...” São Francisco filho de família de comerciantes, não era pobre por ter renunciado à posse – nem pobrezinho. O autor aplica o conceito moderno de felicidade que, consequentemente, considera pobre quem não possui. Pobre e infeliz. Mas o pobrezinho da Umbria era feliz.
A.G.
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