domingo, 21 de agosto de 2011

Até a última gota

Como o Esclarecimento tornou-se mito e a promessa de liberdade converteu-se em “total empulhação das massas”(...)

A dominação da natureza por intermédio dos homens-senhores pressupõe que o homem degrade o próprio homem a mero objeto da natureza: “O despertar do sujeito é comprado com o reconhecimento do poder como princípio de todas as relações”. Ora, isso, sem dúvida, descreve uma correlação negativa que possuía validade muito antes da sociedade burguesa moderna.

Disso têm plena consciência Horkheimer e Adorno: “De fato, as linhas de razão, liberalidade e burguesismo estendem-se incomparavelmente mais do que supõe a noção histórica, que data o conceito de burguês só a partir do fim do feudalismo da Idade Média”. Os mais antigos esboços de vontade (ainda impotentes) de dominação sobre a natureza remontam à pré-história - no próprio “pré-animismo” já se acha “a separação entre sujeito e objeto”. Mas se o homem pré-histórico ainda se enchia de um implacável medo diante da natureza predominante e buscava conjurar sua impotência com assimilações mágicas de objetos naturais (mimese), o mito, por sua vez, dá início à objetivação: “O mito já é Esclarecimento”, e “Esclarecimento é a angústia mítica tornada radical”.

Essa angústia deve ser extinta no mito pelo fato de se objetivar a natureza e, na medida do possível, “não existir mais nada desconhecido”. Nesse aspecto, as figuras mitológicas aparecem como os arquétipos do sujeito burguês, abstrato e objetivante. Horkheimer e Adorno tentam mostrá-lo no exemplo do mito de Ulisses - e, isso, lastreados inconfundivelmente na teoria da cultura de Sigmund Freud. O herói homérico das aventuras tem de reprimir os seus próprios impulsos, a fim de se tornar sujeito da dominação. A sedução dos impulsos naturais, representado mitologicamente pelo canto envolvente das sereias, é emudecido para os servos pelo fato de lhes tamparem os ouvidos com cera; Ulisses, como dominante, permite-se, no entanto, ouvir o canto, previamente atado com cordas ao mastro da nau, para que não sucumba ao chamariz.

Tal arquétipo mostra como a própria subjetividade, um última instância, tem de se tornar objeto, a fim de poder objetivar a natureza e os outros homens por meio da dominação. Já o mito, portanto, “pôs em cena o processo infinito do Esclarecimento”. Nesse processo, são progressivamente destruídas, junto com os deuses, as qualidades do mundo, pois o “programa de desencantamento do mundo”, que repousa na dominação, decompõe, com o seu “pensamento ordenador”, tudo o que é próprio e o que, nos homens e nas coisas, não se resolve na investida objetivante: “O que não se quer adaptar à medida da calculabilidade e da utilidade é tomado como suspeito pelo Esclarecimento”.Ele é por princípio totalitário, na medida que submete a natureza e a sociedade despidas de qualidade ao cálculo da mera quantificação, à matemática da dominação: “A lógica formal foi a grande escola da uniformização. Ela forneceu aos esclarecidos o esquema da calculabilidade do mundo (...), o número tornou-se o cânon do Esclarecimento”.(...)

Robert Kurz, especial para a Folha de São Paulo (24/08/97, p.5/5).

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