domingo, 21 de agosto de 2011

Limites da Utopia

A certa altura de minhas leituras, deparei-me naturalmente com as principais obras de Maquiavel. Elas provocaram em mim uma impressão profunda e duradoura, acabando por abalar minha antiga crença. Delas apreendi não os ensinamentos mais óbvios, ou seja, como chegar ao poder político e conservá-lo, a que força ou astúcia devem recorrer os governantes se desejam regenerar suas sociedades ou proteger a si próprios e a seus Estados de inimigos internos e externos, quais as principais virtudes que devem ser ostentadas pelos governos, de um lado, e pelos cidadãos, de outro, se desejam que seus Estados floresçam - mas algo diverso. Maquiavel não era um adepto do historicismo: ele achava ser possível a restauração de algo como a República romana ou a Roma do início do Principado. Ele achava que, para se fazer isso, era preciso uma classe dominante composta por homens valentes, engenhosos, inteligentes e talentosos que soubessem reconhecer e usar as oportunidades, e por cidadãos que fossem adequadamente protegidos, mostrando-se patrióticos, orgulhosos de seu Estado, verdadeiros epítomes das virtudes viris e pagãs. Foi assim que Roma chegou ao poder e conquistou o mundo, e foi a ausência desse tipo de sabedoria, vitalidade e coragem na adversidade, das qualidades tanto do leão quanto da raposa, que acabaram por provocar sua queda. Os Estados decadentes foram conquistados por vigorosos invasores que haviam preservado tais virtudes.

Mas Maquiavel, ao lado disso, também salienta a noção das virtudes cristãs - humildade, aceitação do sofrimento, desapego em relação a mundo, esperança de salvação após a morte - e observa que, se se deseja estabelecer, como ele mesmo defende, um Estado do tipo romano, tais virtudes não são as mais apropriadas: aqueles que vivem segundo os preceitos da moralidade cristã estão destinados a serem suplantados pela impiedosa busca do poder por parte dos homens que podem recriar e dominar a república vislumbrada pelo autor de O príncipe. As virtudes cristãs não são por ele condenadas. Maquiavel limita-se a observar que as duas moralidades são incompatíveis, e não reconhece nenhum critério superior que nos permita decidir qual é a vida correta a ser vivida pelos homens. A combinação de virtú e valores cristãos, para ele, é impossível. Ele simplesmente deixa a nós a escolha - sua preferência, ele a conhece bem.

A idéia que isso plantou em minha mente foi a percepção, coisa que surgiu como um choque, de que nem todos os valores supremos buscados pela humanidade agora e no passado eram necessariamente compatíveis entre si. Tal idéia abalou minha antiga suposição, baseada na philosophia perennis, de que não podia haver nenhum conflito entre os verdadeiros fins, ou seja, as verdadeiras respostas aos problemas básicos da vida.

(...)

Tanto a liberdade quanto a igualdade estão entre os objetivos básicos procurados pelos seres humanos durante muitos séculos; mas a liberdade total para os lobos é a morte dos cordeiros; a liberdade total dos poderosos, dos talentosos, não é compatível com o direito a uma existência decente para os fracos e os menos talentosos. Um artista, a fim de criar uma obra-prima, pode levar um tipo de vida que arrasta sua família para a miséria e a imundície, coisas que são indiferentes para ele. Podemos condená-lo e declarar que a obra-prima deveria ser sacrificada em favor das necessidades humanas; também podemos defender sua posição - mas as duas atitudes supõem valores que para alguns homens e mulheres são os mais importantes, bem como compreensíveis por todos nós se tivermos algum tipo de condescendência, imaginação ou compreensão para com os seres humanos. A igualdade pode exigir a restrição da liberdade daqueles que desejam dominar; a liberdade - sem um mínimo da qual não existe escolha nem, portanto, possibilidade de se permanecer humano, no sentido que atribuímos a essa palavra - está sujeita a restrições a fim de abrir espaço ao bem-estar social, para que o faminto seja alimentado, o destituído seja agasalhado, o sem-teto seja alojado, e abrir espaço à liberdade de outrem, para que possa ser exercida a justiça ou a probidade.

Esses choques de valores constituem a essência do que eles são e do que nós somos. Se nos dizem que tais contradições serão dissipadas em um mundo perfeito no qual todas as coisas boas podem, em princípio, ser harmonizadas, então devemos responder aos que afirmam isso que o sen- tido dos termos denotativos dos valores conflitantes não é o mesmo para nós e para eles. Devemos dizer que se encontra totalmente fora de nossa compreensão um mundo no qual não esteja em conflito aquilo que vemos como valores incompatíveis; que os princípios em harmonia nesse outro mundo não são os princípios com que estamos familiarizados em nossa vida diária; se eles se mostram diferentes, é porque foram transformados em concepções por nós desconhecidas neste mundo. Mas é neste mundo que vivemos, e é aqui que devemos crer e agir. A noção do todo perfeito, a solução final, em que todas as coisas boas coexistem, não me parece apenas inatingível - isso é um truísmo -, mas conceitualmente incoerente; não sei o que significa uma harmonia desse tipo. Alguns dos Grandes Bens não podem estar em convivência. Essa é uma verdade conceitual. Somos condenados a escolher, e cada escolha traz o risco de uma perda irreparável. Felizes os que vivem sob disciplina que aceitam sem questionar, que obedecem espontaneamente às ordens de seus líderes, espirituais ou temporais, cuja palavra aceitam como lei infrangível; igualmente felizes os que, através de seus próprios métodos, chegaram a convicções claras e inabaláveis com relação ao que fazer e o que ser, sem a menor sombra de dúvida. Só posso dizer que os que se instalam nesses confortáveis leitos do dogma são vítimas de uma miopia auto-imposta, antolhos que podem trazer contentamento, mas não a compreensão do que significa a humanidade do ser.

In: BERLIN, Isaiah. Limites da Utopia: capítulos de história das idéias. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.18-23.

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