Com
Di Fiori podemos falar numa filosofia da história, no tempo estruturado, como
na Árvore de Jessé, e escandido em três tempos progressivos rumo à apoteose
Por seu turno, ao iniciar a "História da Guerra
do Peloponeso", Tucídides retoma o "topos" de Heródoto,
declarando que narrará a guerra, ainda em curso, por se tratar do maior
movimento jamais realizado pelos helenos. Há, no entanto, dois aspectos novos
na narrativa de Tucídides, se comparada à de Heródoto: em primeiro lugar, não
só é ele testemunha ocular da guerra, mas também tem dela uma visão pessimista,
pois a vitória de qualquer um dos lados significa a derrota da própria Hélade;
em segundo lugar, e sobretudo, Tucídides introduz a idéia de que é preciso
encontrar as causas da guerra, perceber seus sinais muito antes que ela
começasse e, portanto, será preciso mostrar que a guerra estava inscrita desde
o momento em que se inicia o imperialismo de Atenas. Dessa maneira, embora o
historiador narre o que é memorável, sua narrativa não se detém nos fatos
imediatos da guerra, mas percorre o passado para nele ler uma guerra que virá.
A dupla lição de Heródoto e de Tucídides é apanhada
com vigor por Políbio quando escreve a "Ascensão e Queda do Império
Romano". Como Heródoto, Políbio procura dar igual lugar de grandeza a
cartagineses e romanos e sublinha o papel da fortuna na história de Roma;
porém, como Tucídides, vai em busca das causas que determinaram a subida e a
queda do império, pois, embora pareça que somente a fortuna poderia explicar
que, em 50 anos, se formasse o maior poderio de uma cidade de que se tem
notícia, será preciso ler no próprio movimento de ascensão a queda que se
prepara inevitavelmente.
As obras de Heródoto, Tucídides e Políbios nos
permitem observar que a história nasce não somente sob o signo da memória, mas
também sob o signo de uma dupla determinação: a da fortuna, isto é, da
contingência que percorre as ações humanas, e a da necessidade, isto é, da presença
de causas que determinam o curso dos acontecimentos, independentemente da
vontade humana. A fortuna é justa porque caprichosa e aparentemente arbitrária,
pois sua justiça consiste perpetuamente em elevar os rebaixados e em rebaixar
os elevados. A necessidade é implacável porque segue seu curso próprio, uma vez
que, num primeiro ato de vontade, os homens desencadearam um processo que não
poderão controlar.
História e esperança profética
Ora, o surgimento do cristianismo produz um efeito
inesperado sobre a concepção da história. Se é verdade que a noção de
Providência divina reúne, num único ser, Deus, a contingência da vontade (a
fortuna) e a necessidade do processo (o decreto divino), todavia, herdeiro do
judaísmo, o cristianismo introduz a idéia de que a história segue um plano e
possui uma finalidade que não foram determinados apenas pela vontade dos
homens.
A Antiguidade _tanto oriental como ocidental_ concebia o tempo cósmico como ciclo de retorno perene e o tempo dos entes como reta finita, marcada pelo nascimento e pela morte. No primeiro caso, o tempo é repetição e a forma da eternidade; no segundo caso, é devir natural de todos os seres, aí incluídos os impérios e as cidades. O tempo dos homens, embora linear e finito, é medido pelo tempo circular das coisas, pois a repetição eterna é o "métron" de tudo quanto é perecível: movimento dos astros, sequência das estações, germinar e desenvolver das plantas. Eterno retorno e/ou sucessão que imita o retorno, o tempo é essencialmente embate do Ser e do Não-Ser ou, como vemos nas "Metamorfoses" de Ovídio, o tempo é o faminto e feroz devorador que tudo destrói _"tempus edax omnium rerum"_, mas também o regenerador perene de tudo quanto nasce e vive, e por isso Ovídio o apresenta na imagem da Fênix sempre rediviva.
A Antiguidade _tanto oriental como ocidental_ concebia o tempo cósmico como ciclo de retorno perene e o tempo dos entes como reta finita, marcada pelo nascimento e pela morte. No primeiro caso, o tempo é repetição e a forma da eternidade; no segundo caso, é devir natural de todos os seres, aí incluídos os impérios e as cidades. O tempo dos homens, embora linear e finito, é medido pelo tempo circular das coisas, pois a repetição eterna é o "métron" de tudo quanto é perecível: movimento dos astros, sequência das estações, germinar e desenvolver das plantas. Eterno retorno e/ou sucessão que imita o retorno, o tempo é essencialmente embate do Ser e do Não-Ser ou, como vemos nas "Metamorfoses" de Ovídio, o tempo é o faminto e feroz devorador que tudo destrói _"tempus edax omnium rerum"_, mas também o regenerador perene de tudo quanto nasce e vive, e por isso Ovídio o apresenta na imagem da Fênix sempre rediviva.
Enquanto o tempo cíclico exclui a idéia de história
como aparição do novo, pois não faz senão repetir-se, o tempo linear dos entes
da Natureza introduz a noção de história como memória.
O primeiro se colocará sob o signo de Tychê-Fortuna,
cuja roda faz inexoravelmente subir o que está decaído e decair o que está no
alto; o segundo, posto sob a proteção de Mnemosyne-Memória, garante
imortalidade aos mortais que realizaram feitos dignos de serem lembrados,
tornando-os memoráveis e exemplos a serem imitados, a perenidade ao passado
garantindo-se por sua repetição, no presente e no futuro, sob a forma da
mímesis ou da repetição dos grandes exemplos. "Historia magistra
vitae", "a história é mestra da vida", dirá Cícero. O tempo da
história grega é épico, narrando os grandes feitos de homens e cidades cuja
duração é finita e cuja preservação é a comemoração.
Diferentemente desse tempo cósmico e épico, o tempo
bíblico é dramático, pois a história narrada é não somente sagrada, mas também
o drama do afastamento do homem de Deus e da promessa de reconciliação de Deus
com o homem. Relato da distância e proximidade entre o homem e Deus, o tempo
não exprime os ciclos da natureza e as ações dos homens, mas a vontade de Deus
e a relação do homem com Deus: o tempo judaico e de seu herdeiro, o tempo
cristão, é expressão da vontade divina que o submete a um plano cujos
instrumentos de realização são os homens afastando-se Dele e dele se
reaproximando por obra Dele.
No hebraico, "tikwah", esperança, é a expectativa de um bem que se articula à Promessa, nascida da aliança de Deus com seu Povo, e, portanto, à espera do Messias como salvador coletivo que restaura a integridade, grandeza e potência de Israel. O tempo cíclico da repetição cede lugar à flecha do tempo em que o tempo futuro redime o tempo passado, pois a promessa divina de redenção resgata a falta originária.
No hebraico, "tikwah", esperança, é a expectativa de um bem que se articula à Promessa, nascida da aliança de Deus com seu Povo, e, portanto, à espera do Messias como salvador coletivo que restaura a integridade, grandeza e potência de Israel. O tempo cíclico da repetição cede lugar à flecha do tempo em que o tempo futuro redime o tempo passado, pois a promessa divina de redenção resgata a falta originária.
A cristologia nasce em dois movimentos sucessivos:
no primeiro, o Antigo Testamento (AT) é interpretado como profecia,
prefiguração e tipologia do Advento; no segundo, o Novo Testamento (NT) é
interpretado como profecia do Segundo Advento e do Tempo do Fim. Retirando do
AT a dimensão teocêntrica para dar-lhe um conteúdo cristocêntrico, o NT
considera realizada a Profecia. No entanto, ao transformar o NT em enigma a ser
decifrado, o cristianismo reabre o campo profético, referido agora à Segunda
Vinda do Cristo.
Realização da Promessa
O vínculo que unifica judaísmo e cristianismo é a
concepção do tempo. Por ser tempo da queda e da promessa, é tempo profético, e
o plano divino pode ser decifrado por aqueles aos quais foi dado o dom da
profecia. O tempo é sempre realização da Promessa e, por ser profético, não
está voltado para a lembrança do passado, e sim para esperança no futuro como
remissão da falta e reconciliação com Deus. O tempo não é simples escoamento,
mas passagem rumo a um fim que lhe dá sentido e orienta seu sentido, sua
direção.
História é, pois, a operação de Deus no tempo. Donde
suas características fundamentais:
1) providencial, unitária e
contínua porque é manifestação da vontade de Deus no tempo, que é dotado de
sentido e finalidade, graças ao cumprimento do plano divino;
2) teofania, isto é,
revelação contínua, crescente e progressiva da essência de Deus no tempo;
3) epifania, isto é, revelação
contínua, crescente e progressiva da verdade no tempo;
4) profética, não só como
rememoração da Lei e da Promessa, mas como expectativa do porvir ou, como disse
o Padre Vieira, a profecia é "história do futuro". A profecia traz um
conhecimento do que está além da observação humana, oferecendo aos homens a
possibilidade de conhecer a estrutura secreta do tempo e dos acontecimentos;
isto é, de ter acesso ao plano divino;
5) salvífica ou
soteriológica, pois o que se revela no tempo é a promessa de redenção e de
salvação, obra do próprio Deus;
6) escatológica (do grego,
"tà eschatoi", as últimas coisas ou as coisas do fim), isto é, está
referida não só ao começo do tempo, mas sobretudo ao fim dos tempos e ao Tempo
do Fim, quando a Promessa estará plenamente cumprida. A dimensão escatológica
da história é inaugurada com o livro da Revelação de Daniel, capítulo 12,
primeiro texto sagrado a falar num tempo do fim, descrito como precedido de
abominações e como promessa de ressurreição e salvação dos que estão "inscritos
no Livro", como tempo do aumento dos conhecimentos com a abertura do
"livro dos segredos do mundo", e, sobretudo, como tempo cuja duração
está predeterminada: "Será um tempo, mais tempos e a metade de um
tempo" que se iniciará após "mil e duzentos dias" de abominação
e durará "mil trezentos e trinta e cinco dias", depois dos quais os
justos estarão salvos;
7) apocalíptica (do grego,
"apocalypse", revelação direta da verdade pela divindade), pois, com
Daniel, primeiro, e João, depois, o segredo da história é uma revelação divina
feita diretamente pelo próprio Deus ao profeta e ao evangelista. Essa revelação
diz respeito prioritariamente ao Tempo do Fim ou ao Dia do Senhor, como escreve
São Paulo aos tessalônicos. Nesse tempo do fim, quando o Cristo virá pela
segunda vez e vencerá o Anticristo, haverá um Reino de Mil Anos de felicidade e
abundância que prepara os santos para o Juízo Final e a entrada na Jerusalém
Celeste, fora do tempo ou na eternidade.
Terminada e por acontecer
O cristianismo conhece duas visões rivais da
história: a da ortodoxia e a milenarista. A diferença entre ambas se refere a
um ponto preciso: entre a primeira e a segunda vinda de Cristo acontece alguma
coisa, o tempo realiza progresso, as ações humanas contam, há novas revelações,
há uma história propriamente? Ou não? Isto é, com o Primeiro Advento, tudo está
consumado, e os homens devem apenas aguardar a plenitude final do tempo, que se
dará com o Juízo Final e o Jubileu eterno, ou o Segundo Advento supõe um tempo
aberto aos acontecimentos que preparam o Tempo do Fim?
Para a ortodoxia, o percurso temporal inicia-se com
a Criação do mundo e termina com a Encarnação de Cristo; entre esta e o momento
do Juízo Final, nada mais acontece, senão a espera de Cristo, pelo Povo de
Deus, e a decadência contínua do século para todos os que se afastam de Deus e
se abandonam ao Demônio. A revelação está consumada, e o tempo é somente uma
vivência individual e psicológica, narrando o caminho da alma rumo a Deus ou
distanciando-se Dele, na direção do Mal. Desaparece a escatologia do Tempo do
Fim quer como algo iminente, quer como algo novo e decisivo na história.
Nessa perspectiva, a história se realiza em três
tempos e sete eras. Os três tempos são a ação da Trindade no tempo: tempo do
Pai (dos judeus sob Noé e Abraão até Moisés), tempo do Filho (a Encarnação do
Cristo, quando começa a nova Aliança ou a nova lei) e tempo do Espírito Santo
(a comunidade cristã, quando a lei está escrita no coração de cada homem, que
dela toma conhecimento pela graça divina). As sete eras formam a Semana
Cósmica, na qual seis eras são temporais, isto é, referem-se à operação da
vontade divina no tempo (Criação, Queda, Dilúvio, Patriarcas, Moisés e
Encarnação), mas a sétima era, ou o Sétimo Dia, é o Juízo Final, já fora do
tempo. O Oitavo Dia é o Jubileu eterno.
Essa cronologia esvazia a questão antiga sobre o que
se passa no intervalo de tempo entre o Primeiro e o Segundo Advento e no
intervalo de tempo entre a vinda do Filho da Perdição (o Anticristo) e o Juízo
Final. Em outras palavras, o que acontece no que Daniel designara como "o
tempo, os tempos e a metade do tempo" e São João como o "silêncio de
meia hora no céu", entre a abertura do sexto e do sétimo selos? Eram esses
intervalos que abrigavam o centro da história escatológica, pois neles haveria
nova revelação, inovação, acontecimento e preparação para o fim do tempo.
Desordem do mundo
Pouco a pouco, porém, a concepção milenarista
retorna até que, no século 12, se consolida na obra do abade calabrês Joaquim di
Fiori. A grande renovação intelectual e religiosa do século 12 foi
contemporânea de acontecimentos que abalaram a cristandade e por isso não
poderia deixar intacta a necessidade de conciliar acontecimento e plano divino,
mudança e ordem, estabilidade e contingência. Precisou dar conta da desordem no
mundo: Islã, cruzadas, cismas eclesiásticos, guerras entre império e papado.
A busca da ordem no mundo teve que enfrentar
acontecimentos cujo sentido não estava dado, mas que não podiam escapar à ordem
providencial. Tornou-se imperiosa a procura do conhecimento da estrutura
secreta do tempo e de seu sentido. A reordenação teológica do tempo se fez pela
interpretação apocalíptico-escatológica da história profética e milenarista.
A novidade maior dessa elaboração é a de que a obra do tempo é operação da Trindade: a unidade das Três Pessoas garante a ordem imutável, enquanto a diferença entre as operações de cada uma delas explica a variação temporal. Com isso, a Encarnação deixa de ser o término da história para tornar-se seu centro, o que significa que algo mais ainda deve acontecer antes do Juízo Final. Esse algo mais é um tempo duplamente facetado: é o do aumento da desordem e dos males, porque tempo do Anticristo, mas é também o do aumento da perfeição e da graça, sob a ação do Espírito Santo, como profetizou Daniel.
A novidade maior dessa elaboração é a de que a obra do tempo é operação da Trindade: a unidade das Três Pessoas garante a ordem imutável, enquanto a diferença entre as operações de cada uma delas explica a variação temporal. Com isso, a Encarnação deixa de ser o término da história para tornar-se seu centro, o que significa que algo mais ainda deve acontecer antes do Juízo Final. Esse algo mais é um tempo duplamente facetado: é o do aumento da desordem e dos males, porque tempo do Anticristo, mas é também o do aumento da perfeição e da graça, sob a ação do Espírito Santo, como profetizou Daniel.
Está pavimentado o caminho para o abade calabrês
Joaquim di Fiori, com quem surge a imagem da apoteose terrena dos Mil Anos e a
idéia de que a história é a operação da Trindade no tempo, no qual uma última e
decisiva revelação-iluminação está reservada para a Sexta Era e para o Tempo do
Fim: a plenitude do tempo coincidirá com a plenitude do Espírito ou do saber.
Com Joaquim di Fiori podemos falar numa filosofia da
história, isto é, no tempo estruturado e escandido em três tempos progressivos
rumo à apoteose. Essa filosofia da história se oferece como concepção
trinitária, progressiva e orgânica da história como desenvolvimento de
estruturas invisíveis. Trinitária: a história é obra do Espírito através do Pai
e do Filho, até a revelação final do Espírito. Progressiva: a história é o
desenvolvimento temporal do aumento do saber, cuja plenitude coincide com o
tempo do fim, quando será aberto "o livro dos segredos do mundo".
Orgânica: a estrutura do tempo, simbolizada pela Árvore de Jessé, significa que
o tempo não é ciclo perpétuo de tribulações, não é agonia nem afastamento do
absoluto, mas arbusto florescente onde frutifica a semente divina da verdade
efetuando-se como eternidade temporal.
Será impossível não reconhecer traços joaquimitas em
toda a filosofia da história posterior. Joaquim introduz dois símbolos não
escriturísticos e que são suas profecias próprias: o papa Angélico (que prepara
o caminho para o encontro final entre Cristo e o Anticristo) e os homens
espirituais (duas novas ordens monásticas de preparação para o Tempo do Fim, a
ativa ou dos pregadores, e a contemplativa ou dos monges eremitas).
No centro da herança joaquimita encontra-se a idéia
de que haverá ainda uma fase final da história, um tempo abençoado ainda por
vir. O apogeu da história, preenchimento do intervalo da "metade do
tempo" e do "silêncio de meia hora no céu", ou plenitude do
tempo, será sinalizado pelo aumento da espiritualidade no mundo, antes do Juízo
Final. Será a era do Espírito Santo, tempo do intelecto e da ciência.
Novo Mundo
"Para a empresa das Índias não me aproveitou
razão nem matemática nem mapa-mundos; plenamente cumpriu-se o que disse
Isaías" (Colombo, "Carta aos Reis", 1501).
"Porque não é em vão, mas com muita causa e
razão, que isto se chama Novo Mundo, e não por se ter achado há pouco tempo,
senão porque é em gentes e em tudo como foi aquele da idade primeira"
("Carta de Vasco da Quiroga", 1535).
"... que falou Isaías da América e do Novo
Mundo, se prova fácil e claramente (...). Digo, primeiramente, que o texto de
Isaías se entende do Brasil (...)" (Padre Vieira, "História do
Futuro", 1666).
No dia 6 de janeiro de 1492, Fernando e Isabel
entram em Granada e recebem das mãos do califa as chaves da Alhambra. Fazem
hastear o estandarte real e erguer o crucifixo no mais alto parapeito.
As profecias de Daniel e de Isaías, cumpridas com a
descoberta do Brasil, são fatos e provas da consumação da revelação e do tempo:
nós somos a história consumada
O mito do país-paraíso nos persuade de que nossa
identidade e grandeza se acham predeterminadas no plano natural: somos
sensuais, alegres e não-violentos
De Barcelona, os embaixadores genoveses enviam uma
carta de louvor às majestades católicas: "Não é indigno nem sem razão que
vos asseveramos, reis grandíssimos, que lemos o que predisse o abade Joaquim
Calabrês, que a restauração da Arca de Sião seria feita pela Espanha".
De fato, o abade Joaquim afirmara que o Reino de
Deus na Terra, a era do Espírito Santo, começaria com a vitória de Cristo
contra o Anticristo, identificado por ele com Saladino, que acabara de invadir
a Espanha no mesmo momento em que Jerusalém caía nas mãos dos árabes. Assim, os
embaixadores de Gênova saúdam menos a expulsão dos mouros e mais o primeiro
sinal do milênio, do tempo do fim do tempo, aberto pela vitória de Castela.
No dia 3 de agosto desse mesmo ano, Colombo parte de
Palos. O relato da primeira viagem abre-se com a exposição de motivos: os reis
o enviaram ao Oriente pelo Ocidente para "combater a seita de Maomé e
todas as idolatrias e heresias" e para, nas regiões da Índia e da China,
ver príncipes, povos e a "disposição deles" para que encontrasse
meios de convertê-los "à nossa fé".
Cálculos do Fim
Em 1500, enquanto Pedro Álvares Cabral se dirige ao
que viria ser o Brasil, o Almirante do Mar Oceano, Don Cristobal Colón, oferece
aos reis católicos o relato de sua terceira viagem, em que assegura ter
descoberto a localização do Paraíso Terrestre, graças às indicações dos autores
antigos e do profeta Isaías que, segundo interpretação do abade Joaquim,
afirmara "que da Espanha lhe seria elevado seu Santo Nome". Numa
carta aos reis, de 1501, e numa carta de 1502, ao papa, Cristóvão Colombo
reafirma a descoberta do Paraíso, sente-se instrumento das profecias do abade
Joaquim e oferece os cálculos do tempo que resta até o Tempo do Fim: 155 anos.
Sabemos que um traço marcante da mentalidade do
final da Idade Média e da Renascença foi o sentimento da caducidade do mundo e
da necessidade de seu renascimento ou de passar do "outono do mundo"
a uma nova primavera, concebendo o Tempo do Fim como retorno à origem perdida.
Em seu clássico "Visão do Paraíso", Sérgio
Buarque de Holanda escreve: "Colombo, sem dissuadir-se de que atingira
pelo Ocidente as partes do Oriente, julgou-se em outro mundo ao avistar a costa
do Pária, onde tudo lhe dizia estar o caminho do verdadeiro Paraíso Terreal.
Ganha com isso o seu significado pleno aquela expressão 'Novo Mundo' (...) para
designar as terras descobertas. Novo não só porque ignorado, até então, das
gentes da Europa (...), mas porque parecia o mundo renovar-se ali e
regenerar-se, vestido de verde imutável, banhado numa perene primavera, alheio
à variedade e aos rigores das estações, como se estivesse verdadeiramente
restituído à glória dos dias da Criação" ("Visão do Paraíso",
São Paulo, 1992, pág. 204).
Menos um conceito geográfico, ainda que para os
conquistadores fosse um conceito geopolítico, militar e econômico, a América
foi para viajantes, evangelizadores e filósofos uma construção imaginária e
simbólica. Diante de sua absoluta novidade, como explicá-la? Como
compreendê-la? Como ter acesso ao seu sentido? Colombo, Vespúcio, Pero Vaz de
Caminha, Las Cazas dispunham de um único instrumento para aproximar-se do Mundo
Novo: livros.
Quando lemos cartas, diários de viagem, relatos da
vida americana, perspectivas filosóficas e políticas dedicadas ao Novo Mundo,
podemos notar que os textos são muito menos descrições e interpretações de
experiências novas diante do novo e muito mais comentários, exegeses de outros
livros, antigos, que teriam descrito e interpretado as terras e gentes novas. O
Novo Mundo já existia, não como realidade geográfica e cultural, mas como
texto, e os que para aqui vieram ou os que sobre aqui escreveram não cessam de
"conferir" a exatidão dos antigos textos e o que aqui se encontra.
Paraíso Terrestre
Antes de ser designado como América ou como Brasil,
o "aqui" se chamava Oriente, um símbolo bifronte: sede econômica e
política dos grandes impérios da Índia e da China (descritas nas viagens
maravilhosas de Marco Polo e Mandeville), mas também sede imaginária do Paraíso
Terrestre, preservado das águas do dilúvio e descrito no Gênese como terra
austral e oriental, cortada por quatro rios imensuráveis, rica em ouro e pedras
preciosas, de temperatura sempre amena, numa primavera eterna.
Terra profetizada pelo profeta Isaías, quando
escreveu: "Assim, tu chamarás por uma nação que não conheces, sim, uma
nação que não te conhece acorrerá a ti" (Is. 55, 6). "Sim, da mesma
maneira que os novos céus e a nova terra que estou para criar subsistirão na
presença, assim substituirá a vossa decência e o vosso nome" (Is. 66, 20).
No entanto, não é apenas Isaías que projeta sua
sombra sobre os navegantes. De igual importância será o profeta Daniel, não só
porque o livro das Revelações anuncia o Tempo do Fim, mas também porque esse
tempo final será o advento da Quinta Monarquia ou, como dirão os cristãos, do
Quinto Império do Mundo, durando mil anos de felicidade porque reino
messiânico. No imaginário da conquista do Brasil, Daniel é menos aquele que
anuncia novas terras e mais aquele que anuncia o novo tempo como Reino de Deus
e tempo do saber, quando o homem esquadrinhará a Terra na direção dos quatro
ventos e será aberto o Livro dos Segredos do Mundo: "Os ímpios agirão com
perversidade, mas nenhum deles compreenderá, enquanto os sábios
compreenderão" (Dan. 12, 10). "Feliz quem esperar e alcançar mil
trezentos e trinta e cinco dias. Quanto a ti, vai até o fim. Repousarás e te
levantarás para tua parte da herança, no Tempo do Fim" (Dan. 12, 12-13).
Entre 1647 e 1666, o Padre Vieira escreve
"História do Futuro", obra que lhe valerá a condenação de
"herética e judaizante" pelo tribunal da Inquisição, pois
"promete o reino de Deus nesta vida e muito cedo", à maneira dos
judeus que "o esperam nesta vida presente de seus Messias e perpétuo para
sempre". A origem da condenação é o livro "Esperanças de
Portugal", parte da trilogia que inclui a "Chave dos Profetas" e
a "História do Futuro", inspirada em Daniel, no capítulo 18 de
Isaías, nas "Trovas do Bandarra" (em que o Encoberto d. Sebastião
será o Imperador dos Últimos Dias, vencedor das primeiras batalhas contra o
Anticristo) e no milenarismo trinitário de Joaquim di Fiori.
A obra prevê a união de portugueses e judeus, o
Reino de Mil Anos e o retorno triunfal dos judeus a Israel. A interpretação do
capítulo 18 de Isaías, possivelmente recebida pelo jesuíta das obras do
franciscano peruano Gonzalo Tenório, demonstra que Isaías profetizou não só a
América, mas, pela quantidade de detalhes e particularidades, profetizou o
Brasil, e não o Peru, como julgara Tenório. Ambos, porém, interpretam as
"gentes convulsas", as "gentes dilaceradas" e as
"gentes terríveis", de que fala Isaías, como sendo as Dez Tribos
Perdidas de Israel, e o motivo fundamental para essa interpretação é uma outra
profecia de Isaías, segundo a qual a redenção do "resto de Israel" só
se dará depois que todo Israel se houver dispersado na direção dos quatro
ventos e, evidentemente, a última direção somos nós.
Os futuros
Jesuítas e franciscanos se consideram as duas ordens
monásticas profetizadas por Joaquim di Fiori e por isso escrevem movidos pela
certeza do fim da história e do tempo do fim como tempo do Espírito Santo
inteiramente revelado ao Reino de Deus. O profetismo messiânico que os move os
faz reafirmar, diante da Bíblia, que os "modernos são pigmeus sentados nos
ombros de gigantes" e que, se podem ver mais longe do que os antigos, é
porque estes, mais próximos da revelação originária, sustentam em seus braços
os anões modernos. Grandes foram os que profetizaram. Pequenos os que sabem
reconhecer a realização das profecias. "Os futuros", diz Vieira,
"quanto mais vão correndo, tanto mais se vão chegando a nós e nós a
eles".
O Brasil não é apenas "novos céus e novas
terras" cumprindo a profecia do alargamento da ciência e o anúncio do
milênio como Era do Espírito: o Brasil é condição e parte integrante do
milênio, isto é, do Último Império. As profecias de Daniel e de Isaías,
cumpridas com a descoberta e a conquista do Brasil, são fatos e provas da
consumação da revelação e do tempo. Nós somos a história consumada.
O mito fundador
Vivemos na presença difusa de uma narrativa da
origem. Essa narrativa, embora elaborada no período da conquista, não cessa de
se repetir porque opera como nosso mito fundador. Mito no sentido
antropológico: solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que
não encontram caminhos para serem resolvidos na realidade. Mito na acepção
psicanalítica: impulso à repetição por impossibilidade de simbolização e,
sobretudo, como bloqueio à passagem à realidade. Mito fundador porque, à
maneira de toda "fondatio", impõe um vínculo interno com o passado
como origem, isto é, com um passado que não cessa, que não permite o trabalho
da diferença temporal e que se conserva como perenemente presente. Um mito
fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se,
novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece
ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.
Pelas circunstâncias históricas de sua construção
inicial, nosso mito fundador é elaborado segundo a matriz teológico-política, e
nele quatro constituintes principais se combinam e se entrecruzam, determinando
não só a imagem que possuímos do país, mas também nossa relação com a história
e a política. O primeiro constituinte, para usarmos ainda uma vez a expressão
de Sérgio Buarque de Holanda, é a "visão do paraíso"; o segundo é oferecido
pela história teológica, elaborada pela ortodoxia cristã, isto é, a perspectiva
providencialista da história; o terceiro provém da história teológica profética
cristã, ou seja, do milenarismo de Joaquim di Fiori; e o quarto é proveniente
da elaboração jurídico-teocrática da figura do governante como "rei pela
graça de Deus".
O Brasil Jardim do Paraíso
Diários de bordo e cartas dos navegantes e dos
evangelizadores não cessam de referir-se às novas terras falando da formosura
de suas praias imensas, da grandeza e variedade de seus arvoredos e animais, da
fertilidade de seu solo e da inocência de suas gentes que "não lavram nem
criam (...) e andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto,
com quanto trigo e legumes comemos", como se lê na "Carta de Pero Vaz
de Caminha a El Rei Don Manuel Sobre o Achamento do Brasil". É dessa carta
a passagem celebrada: "Águas são muitas; infindas. E em tal maneira
graciosa que, querendo-se aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que
tem".
Quando se examinam relatos aparentemente
descritivos, não se pode deixar de notar que certos lugares-comuns se encontram
em todos eles. O Brasil é sempre descrito como imenso jardim perfeito: a
vegetação é luxuriante e bela (flores e frutos perenes), as feras são dóceis e
amigas (em profusão inigualável), a temperatura é sempre amena ("nem muito
frio, nem muito quente", repete toda a literatura e Pero Vaz de Caminha),
aqui reina a primavera eterna contra o "outono do mundo", o céu está
perenemente estrelado, os mares são profundamente verdes, e as gentes vivem em
estado de inocência, sem "esconder suas vergonhas" (diz Pero Vaz),
sem lei e sem rei, sem crença e pronta para a evangelização. Esses
lugares-comuns literários possuem um sentido preciso que não escaparia a nenhum
leitor dos séculos 16 e 17: são os sinais do Paraíso Terrestre reencontrado.
Nascido sob o signo do Jardim do Éden, o mito
fundador não cessará de repô-lo. Três exemplos podem ajudar-nos a perceber a
permanência dessa, muito depois de encerrada a exegese mítica da
descoberta-conquista.
Praticamente quase todas as bandeiras nacionais,
criadas nos vários países durante o século 19 e início do século 20, são
bandeiras herdeiras da Revolução Francesa. Por isso são tricolores (algumas
poucas são bicolores), as cores narrando acontecimentos sócio-políticos dos
quais a bandeira é a expressão. A bandeira brasileira é a única não-tricolor
produzida nesse período. Possui quatro cores. Ora, quando se pergunta qual o
significado dessas cores, não se responde que o verde, por exemplo,
simbolizaria lutas camponesas pela justiça, mas sim que representa nossas
imensas e inigualáveis florestas; o amarelo não simboliza a busca da Cidade do
Sol, utopia de Campanella da cidade ideal, mas representa a inesgotável riqueza
natural do solo pátrio; o azul não simboliza o fim da monarquia dos Bourbons e
Orléans, mas a beleza perene de nosso céu estrelado, onde resplandece a imagem
do Cruzeiro, sinal de nossa devoção a Cristo Redentor; e o branco não simboliza
a paz conquistada pelo povo, mas a ordem (com progresso, evidentemente). A
bandeira brasileira não exprime a política nem a história. É um símbolo da
Natureza: floresta, ouro, céu, estrela e ordem. É o Brasil-jardim, o
Brasil-paraíso terrestre. O mesmo fenômeno pode ser observado no Hino Nacional,
que canta mares mais verdes, céus mais azuis, bosques com mais flores e nossa
vida de "mais amores". O gigante está "deitado eternamente em
berço esplêndido", isto é, na Natureza como paraíso ou berço do mundo, e é
eterno em seu esplendor.
E, terceiro exemplo, a poesia ufanista que toda
criança aprende a recitar na escola, como o poema do conde Afonso Celso,
"Porque Me Ufano de Meu País", ou os sonetos parnasianos de Olavo
Bilac: "Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!/ Criança, jamais
verás país como este!/ Olha que céu, que mar que floresta!/ A natureza, aqui
perpetuamente em festa,/ É um seio de mãe a transbordar carinhos".
Essa produção mítica do país-paraíso nos persuade de
que nossa identidade e grandeza se encontram predeterminadas no plano natural:
somos sensíveis e sensuais, carinhosos e acolhedores, alegres e sobretudo somos
essencialmente não-violentos. O primeiro elemento da construção mítica nos
lança e conserva no reino da Natureza, deixando-nos fora do mundo da História.
A história providencialista
O segundo elemento na produção do mito fundador vai
lançar-nos na história, depois de nos haver tirado dela. Trata-se, porém, da
história teológica ou providencialista, realização do plano de Deus ou da
vontade divina em que o tempo é teofania (revelação de Deus no tempo) e
epifania (revelação da verdade divina no tempo). É história profética
(cumprimento da vontade de Deus no tempo) e soteriológica (promessa de redenção
no tempo). Essa história já está consumada com a vinda de Cristo e, portanto,
se o Brasil é "terra abençoada por Deus", Paraíso reencontrado, é
porque estamos numa história que se realiza sem tempo e fora do tempo _o
gigante está "deitado eternamente em berço esplêndido", pois fazemos
parte do plano providencial de Deus.
Ora, se somos parte essencial do plano de Deus,
então nosso futuro encontra-se desde sempre e para sempre assegurado. Por isso
mesmo podemos afirmar que, de direito, somos "o país do futuro". E
nossa segurança é tanto maior porque Deus nos ofereceu o signo do porvir: a
Natureza paradisíaca, sinal da Providência que nos escolheu como novo Povo
Eleito.
A história profético-milenarista
No entanto, contraposta à história providencialista
já consumada, existe, como vimos, uma outra, que constitui o terceiro elemento
da elaboração mítica do Brasil: a história profética, messiânica e milenarista,
inspirada em Joaquim di Fiori.
Dois, como vimos, são os traços principais desta
história: a divisão do tempo em três eras _do Pai, do Filho e do Espírito, ou
da lei, da graça e da ciência_ e o embate final entre o Anticristo e Cristo,
durante a era messiânica do Segundo Advento, com a vitória de Cristo e a
instalação de um Reino de Mil Anos de felicidade no Tempo do Fim, que é também
fim dos tempos, no qual se preparam o Juízo Final e a instauração do Reino
Celeste de Deus.
Antecedendo a Segunda Vinda de Cristo e preparando o terreno para o embate final, é enviado o Salvador Terreno dos Últimos Dias, que o Padre Vieira, no século 17, e Antônio Conselheiro, no século 19, identificaram com d. Sebastião.
Antecedendo a Segunda Vinda de Cristo e preparando o terreno para o embate final, é enviado o Salvador Terreno dos Últimos Dias, que o Padre Vieira, no século 17, e Antônio Conselheiro, no século 19, identificaram com d. Sebastião.
Enquanto a história providencialista é apropriada
pelas classes dominantes e camadas dirigentes (pois assegura que as
instituições existentes são o plano divino realizado), a história profética é
apropriada por todos os dissidentes cristãos e pelas classes populares,
formando o fundo milenarista de interpretação da vida presente como miséria à
espera dos "sinais dos tempos" que anunciarão a chegada do Anticristo
e do combatente vitorioso.
É com essa história profética que as classes
populares brasileiras têm acesso à política, percebida por elas como embate
cósmico entre a luz e a treva, ou entre o bem e o mal, e na qual a questão não
é a do poder, mas a da justiça e da felicidade. O elemento essencial nessa
fervorosa expectativa do milênio é a figura do combatente que prepara o caminho
de Cristo, pré-salvador que surge nas vestes do dirigente messiânico em quem
são depositadas todas e as últimas esperanças. É esta a figura assumida pelo
bom governante perante as classes populares brasileiras.
Graça de Deus, artes do Maligno
Finalmente, o quarto elemento componente da matriz
mítica fundadora encontra-se na elaboração jurídico-teocrática do governante
pela graça de Deus. Essa matriz depende de duas formulações diferentes, mas
complementares.
A primeira delas afirma que, pelo pecado, o homem
perdeu todos os direitos e, portanto, perdeu o direito ao poder. Este pertence
exclusivamente a Deus, pois, como lemos na Bíblia: "Todo poder vem do
Alto/ Por mim reinam os reis e governam os príncipes". É por uma decisão
misteriosa e incompreensível, por uma graça especial, que Deus concede poder a
alguns homens. A origem do poder humano é, assim, um favor divino àquele que O
representa. O governante, portanto, não representa os governados, e sim a fonte
transcendente do poder (Deus), e governar é realizar ou distribuir favores.
A segunda formulação, sem abandonar a noção de
favor, introduz a idéia de que o governante representa Deus porque possui uma
natureza mista como a de Jesus Cristo. O governante possui dois corpos: o corpo
empírico, mortal, humano, e o corpo político, místico, eterno, imortal, divino.
Por receber o corpo político, o governante recebe a marca própria do poder: a
vontade pessoal, absoluta, divina. Donde o adágio jurídico: "O que apraz
ao rei, tem força de lei". A teoria do corpo político místico transforma a
"res publica" em "dominium" e "patrimonium" do
governante: a terra e os fundos públicos se transformam em membros do corpo do
governante e se tornam patrimônio privado que se transmite aos descendentes e
pode ser distribuído sob a forma do favor e da clientela.
Em qualquer dos casos, um ponto é idêntico: o poder
político, isto é, o Estado, antecede a sociedade e tem sua origem fora dela,
primeiro, nos decretos divinos, e, depois, pelos decretos do governante.
Isso explica um dos componentes principais de nosso
mito fundador, qual seja, a afirmação de que a história do Brasil foi e é feita
sem sangue, pois todos os acontecimentos políticos não parecem provir da sociedade
e de suas lutas, mas diretamente do Estado, por decretos: capitanias
hereditárias, governos gerais, Independência, Abolição, República. Donde também
uma outra curiosa conseqüência: os momentos sangrentos dessa história são
considerados meras conspirações ("inconfidências") ou fanatismo
popular atrasado (Praieira, Canudos, Contestado, Pedra Bonita, Farroupilhas,
MST).
Desta maneira, o mito fundador opera de modo
socialmente diferenciado:
1) do lado dos dominantes,
opera com a visão de seu direito natural ao poder e na legitimação desse
pretenso direito natural por meio do ufanismo nacionalista e
desenvolvimentista, expressões laicizadas do Paraíso Terrestre e da teologia da
história providencialista, assegurando a imagem do Brasil como comunidade una e
indivisa, ordeira e pacífica, rumando para seu futuro certo, pois escolhido por
Deus;
2) do lado dos dominados, se
realiza pela via profético-milenarista, que produz dois efeitos principais: a
visão do governante como salvador e a sacralização-satanização da política. Em
outras palavras, uma visão da política que possui como parâmetro o núcleo
profético-milenarista do embate final, cósmico, entre luz e treva, bem e mal,
de sorte que o governante ou é sacralizado (luz e bem) ou satanizado (treva e
mal).
É evidente, portanto, que o mito fundador opera com
uma contradição insolúvel: o país-jardim é sem violência e, pela história
providencialista, ruma certeiro para seu grande futuro; em contrapartida, o
país profético está mergulhado na injustiça, na violência e no inferno, à
procura de seu próprio porvir, na batalha final em que vencerá o Anticristo.
Entre ambos, cava fundo o humor da ruas: "Quem foi que descobriu o
Brasil?/ Foi seu Cabral, foi seu Cabral/ No dia 22 de abril/ Dois meses depois
do Carnaval!".
Marilena Chaui é filósofa e professora do departamento de filosofia da USP, autora de "Cultura e Democracia" (Ed. Cortez) e "A Nervura do Real" (Companhia das Letras), entre outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário